Iraquiana conta a rotina de horror em um mercado de mulheres
Yan Boechat
Colaboração para o UOL em Mossul, no Iraque
Baran Qassim, 55, foi uma das mais de 6.000 mulheres da minoria étnica yazidi capturadas pelo Estado Islâmico na cidade de Sinjar e seus arredores, no Iraque. Ela passou seis meses vivendo em um mercado de escravas sexuais.
Por ser muito velha, não foi comprada por ninguém, mas acompanhou de perto o drama de centenas de mulheres yazidis.
"Fui capturada pelo Estado Islâmico numa tarde quente e de sol forte no início de agosto de 2014. Estávamos na casa de um dos meus filhos. Nos dias anteriores, quase todos os moradores de Sinjar, nossa cidade, decidiram fugir para as montanhas com a notícia de que o Estado Islâmico estava se aproximando.
Nós achamos um exagero, apesar de sabermos que poderíamos ter problemas com eles por não sermos muçulmanos. Decidimos ir para uma vila a alguns quilômetros de Sinjar, onde acreditamos que estaríamos seguros.
Primeiro chegaram dois homens, armados com AK-47, um bastante branco e outro muito moreno. Separaram os homens das mulheres e nos colocaram numa espécie de micro-ônibus.
Éramos 14 no total. Eu, meu marido, meus dois filhos e suas mulheres, minha filha e seu marido e meus seis netos. Fomos levados para uma escola em Tal Afar, perto da fronteira com a Síria. Levaram os homens e os meninos para o lado de fora. Ouvimos tiros, mas não sei ao certo o que houve.
Passamos 10 dias ali apanhando sem razão nenhuma. Eles vinham e nos batiam. Cuspiam em nossa comida, colocavam suas meias sujas em nossas águas. Logo minhas noras e minha filha foram levadas. Eles vieram e as escolheram.
Minha filha tentou se agarrar em mim, puxava minha perna, enquanto eles a puxavam pelo cabelo e lhe batiam. Eu me agarrei em uma pilastra, mas me bateram tão forte no braço que fiquei mais de 10 dias sem poder fechar a mão. Minha filha e minha nora se foram com os soldados. Não sei onde estão.
Outras mulheres mais velhas e eu ficamos nesta escola por mais alguns dias. E então nos levaram para Raqqa, na Síria.
Ficamos presas em uma sala grande, no segundo andar de um edifício. Logo outras mulheres foram chegando e percebemos que estávamos vivendo em uma espécie de mercado de escravas sexuais. Éramos ao todo quase 100 mulheres, divididas em três grandes quartos.
Os homens vinham, inspecionavam as mulheres, e levavam as que eles gostavam mais. Sempre que o estoque de mulheres caia, eles repunham.
Eu era a mais velha, e ninguém quis me comprar. Passei a ser uma espécie de mãe para as meninas, quase todas yazidis. Eu cozinhava, conversava e tentava acalmá-las. Mas era horrível, toda vez que uma era vendida era a mesma coisa. Elas se agarravam a mim, gritavam. E os homens batiam nelas, puxavam elas pelo cabelo. Podíamos ver pela janela eles chutando elas até fazer elas entrarem nos carros ou caminhões.
Logo algumas meninas começaram a tentar se matar cortando os pulsos. Mas eu tentava impedir, tinha medo de que, se alguma delas morresse, algo pudesse acontecer comigo também.
Mas era sofrimento demais e logo comecei a torcer para ser vendida, não aguentava mais ficar ali, naquela vida. Um homem até veio me ver, disseram a ele que eu tinha 40 anos e ele queria comprar uma mulher mais velha. Mas quando me viu percebeu que eu não tinha 40 anos e não quis me comprar.
Uma noite uma mulher yazidi que vivia em um outro quarto conseguiu seduzir o guarda que cuidava de nós e lhe roubou a chave. Fugimos as duas, numa noite chuvosa. Caminhamos por duas horas até que encontramos uma vila.
Pedimos ajuda, achávamos que as pessoas não concordavam com o fato de haver um mercado de escravas sexuais. Nos ofereceram comida, uma cama e nos prometeram ajuda pela manhã.
Mas em vez disso nos levaram de volta.
Minha amiga apanhou muito e foi dada para os soldados que lutam na frente de batalha. Comigo não aconteceu nada.
Depois de cinco meses de intensa atividade, o número de mulheres começou a cair. As que eram vendidas não eram mais repostas e, no final, fiquei sozinha vivendo lá. Um dia disseram que eu havia sido comprada por uma família yazidi que havia se convertido ao islã. Eles precisavam de uma escrava para cuidar da casa, cozinhar, limpar as coisas. E me levaram de volta para Tal Afar, no Iraque.
Tive sorte. Chegando lá, a família me disse que havia apenas fingido se converter para sobreviver. Eu poderia ficar com eles, mas teria agir como uma muçulmana. E assim fiz por um ano e meio. Usei o niqab, rezei cinco vezes por dia, vivi como eles. Mas por dentro eu continuava yazidi.
No dia 24 de novembro, o Estado Islâmico começou a enviar as suas famílias para a Síria, com medo de um ataque a Tal Afar. Era meia-noite e nos juntamos a eles. No meio do caminho, escapamos pelas montanhas, até encontrar os soldados curdos. Estávamos livres.
Ainda não sei o que houve com parte da minha família, meus filhos, meu marido, minhas noras, meus netos, minha filha. Tenho dificuldade para dormir. E sempre sonho que eles estão chegando para me pegar e me levar novamente para ser vendida."
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