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sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

‘Leis restritivas não impedem o aborto’

A Calle2 conversou com a ativista feminista Lilian Abracinskas sobre os avanços do Uruguai após a legalização do aborto e sobre os atuais desafios latino-americanos

por Luiz Felipe Silva em 28/09/2016  
Na América Latina, são realizados 6,5 milhões de abortos por ano, segundo o Guttmacher Institute (organização norte-americana voltada para direitos sexuais e reprodutivos) – a grande maioria são clandestinos, já que 97% da população vive sob leis restritivas. Os abortos são a causa de 10% das mortes maternas e da internação de 760 mil mulheres por ano por complicações resultantes de procedimentos inseguros.
Um dos únicos países latinos em que o procedimento pode ser feito de maneira legal e segura é o Uruguai, que legalizou o procedimento em 2012. Pesquisas mostram que, após a legalização, a procura pelo procedimento caiu 30%.
Lilian Abracinskas é a ativista feminista que coordena o Mujeres y Salud em Uruguay (MYSU). Ela é uma das agentes mais importantes na batalha pela defesa dos direitos da mulher, sobretudo nos temas referentes à vida sexual e reprodutiva, atuando já há 20 anos nas questões de gênero mais prioritárias na sociedade uruguaia.
Abracinskas concedeu uma entrevista à Calle2, em que diz que a situação do país ainda não é ideal. “A lei, até agora, não conseguiu corrigir situação de injustiças sociais. As mulheres que já tinham condições materiais ou simbólicas seguem podendo resolver uma gravidez inesperada, agora com condições adequadas. O problema é que não conseguimos garantir a universalidade do serviço em todo o país. As mulheres da área rural têm que ir a outra cidade para resolver um direito consagrado por lei.”
A ativista denuncia ainda que, na América Latina, a esquerda – que normalmente batalha pelos direitos das minorias – costuma não bancar a luta pela legalização do aborto. “Há um princípio ideológico nessas esquerdas que não combina com o discurso de liberdades e autonomia. Se relativizam os direitos quando se tratam dos direitos das mulheres.”
Confira abaixo os melhores trechos dessa conversa:
A lei uruguaia
“O mais positivo é ter conseguido serviços legais de aborto porque a clandestinidade em uma prática de saúde é sempre prejudicial. O problema é que a lei, até agora, não conseguiu corrigir situação de injustiças sociais. As mulheres que já tinham condições materiais ou simbólicas seguem podendo resolver uma gravidez inesperada, agora no sistema oficial de saúde, com condições adequadas. O problema é que não conseguimos garantir a universalidade do serviço em todo o país, em todas as policlínicas e centros de saúde. As mulheres da área rural têm que ir a outra cidade para resolver um direito consagrado por lei.”
Abortos clandestinos
“O que acontece é que se clandestinizou o que já era clandestino. Antes, quando era clandestino todos sabiam quem fazia e quem não fazia aborto, hoje se clandestinizou e ninguém fala sobre isso. A nossa percepção é que permanece o circuito clandestino de forma importante. Se nos basearmos em pesquisas oficiais há também uma brecha entre as estimativas e o quadro atual: havia cerca de 30 mil abortos anuais e hoje são pouco mais de 8,5 mil abortos legais. E não há nenhum indício de queda de gestações por ano, que é outro número a ser analisado. O número legal de abortos não parece ser suficiente em relação à realidade. Não há propaganda sobre a lei, muitas mulheres duvidam de que ele exista de verdade, então é de se prever que ainda haja um aumento da demanda de aborto legal.”
Violência às mulheres
“Seguimos tendo índices altíssimos de violência de gênero contra as mulheres. É possível prever ainda que haja muita gravidez não consensual em relações não protegidas. Quando há situação de relação violenta entre o casal é muito mais provável que isso ocorra. Já tivemos mulheres processadas por aborto. Três apenas no ano passado, no departamento de Maldonado, incluindo a mulher que auxiliou no aborto e a mãe da mulher que abortou – e quem as denunciou foi a comunidade.
'Todo mundo se sente no direito de interferir e de julgar sobre a decisão individual da mulher. Qual é sua autonomia sobre uma decisão tão íntima como essa?'
Em estados laicos, como é o Uruguai, há que se garantir que não se imponha crenças de ninguém a ninguém.”
Aborto por medicamentos
“O aborto por medicamentos reduz o risco de morte para as mulheres. É muito mais seguro para a mulher fazer o procedimento com remédios do que, por exemplo, agulha de costura ou outras práticas, com profissionais não idôneos. É verdade que o mysoprostol [no Brasil conhecido como Citotec] reduz o número de mortes por aborto pelo mundo.
'O problema do aborto ser exclusivamente por medicamento é que ele não dá opção: não posso escolher se quero um aborto cirúrgico ou por medicamento. O aborto cirúrgico é ambulatorial e em duas horas estou liberada clinicamente; no caso dos abortos por medicamento, pode ocorrer de passar 72 horas sob efeito da medicação e estou na minha casa, lugar que não sei se tenho todas as condições de segurança. Faço o procedimento em casa, passo dias sozinha com hemorragia, com medo.'
O ideal é que nenhum método fosse imposto.”
Prevenção
“A educação sexual não é generalizada, os métodos anticonceptivos não são 100% acessíveis para todos, a masculinidade violenta segue existindo. Portanto há uma série de indicadores que mostram que não abaixaram os índices de gravidez.
'Temos uma pesquisa em que mulheres desde 15 a 49 anos nos disseram que mais de 40% delas tem dificuldade de negociar uso de métodos contraceptivos com seu parceiro. É muito alto!'
Conservadorismo na região
“Vemos no Brasil, inclusive, o fato de a esquerda que têm que negociar com a direita as questões morais e direitos e terminam cedendo às pressões dos grupos ultraconservadores. Além disso há questões patriarcais que guiam esses dirigentes, como Rafael Correa no Equador, Evo Morales na Bolívia e Nicolás Maduro na Venezuela. Há um princípio ideológico nessas esquerdas que não combina com o discurso de liberdades e autonomia. Se relativizam os direitos quando se tratam dos direitos das mulheres.”
Lei ideal
“Começa pela descriminalização da prática, de implementar a noção de que se eu permito por lei, isso não pode ser um crime. Tem que ficar mais claro que a prática não é crime, pelo menos que seja nas margens que nos foram dadas, de 12 semanas. Tem que se trabalhar sobre o estigma que está relacionado ao aborto. Importante também dizer que o aborto deveria ser parte de uma política integral, que possamos acompanhar o processo de sexualização das pessoas, que todos tenham acesso à informação, à prevenção, à promoção, a ter relações sexuais livres e autônomas, protegidas, responsáveis, não violentas. Há que fazer modificações que deem conta de mudar os paradigmas que condenam a sexualidade feminina. Tem que promover maternidade e paternidade responsáveis, isso quer dizer realmente planejadas e conscientes; todo mundo tem que entender que colocar uma criança no mundo é um ato de muita responsabilidade.”
Mensagem ao Brasil
“É importante mudar a lei, porque a prática clandestina de aborto afeta a saúde das mulheres, mas há que se fazer leis que realmente permitam serviços que garantam justiça. Pelo contrário, teremos uma lei e teremos também uma armadilha. As mulheres pobres e em situações de vulnerabilidade serão as mais impactadas pelos riscos e isso não me parece justo. Primeiro sinal: tem que ter boas leis; segundo sinal: a lei não é o fim do caminho é o começo de uma fase complicada que é a resposta do sistema de saúde e seus profissionais; e terceiro: como a sociedade se apropria desses serviços e realmente os utiliza.
'O tempo que se perde para regular essa situação se paga com condições de vida, qualidade de vida e vida das mulheres e das famílias. É um preço muito caro. É um imperativo ético, sanitário, político e educativo, já que todos os países que criam leis e dão respostas adequadas à questão da gravidez indesejada têm melhores resultados.'
Já está demonstrado em todos os países do mundo que leis restritivas para abortar não impede mulheres de fazê-lo.

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