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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Curso debate ética na direção de atores e questiona abusos e objetificação em cena

por Matheus Pichonelli — publicado 18/01/2017

Sujeito e objeto são a tônica da relação de muitos diretores com suas atrizes e isso gera muitas relações abusivas, diz ator e professor de direção
Na semana passada, a atriz Sienna Miller contou que tremeu e chorou após gravar cenas de sexo com Ben Affleck durante nove horas para o filme A Lei da Noite.
Em entrevista concedida ao Canal E!, ela salientou os cuidados tomados por Affleck, diretor do filme, para a realização dessas cenas,  e a boa relação entre os dois. Isso não impediu que ao fim das filmagens Miller se sentisse fragilizada.
“Esse relato evidencia o quão delicada é essa exposição das atrizes, sobretudo quando se trata de cenas de nudez”, afirma Eduardo Bordinhon, ator da Cia de Teatro Acidental e professor de direção de atores para cinema.


Desde o último dia 16 de janeiro, ele ministra, em São Paulo, um curso de direção de atores para debater a relação ética entre direção e atores como parte da criação do filme. Bordinhon é mestre em Artes da Cena pela Unicamp com a dissertação Marlon Brando – o jovem rebelde e o padrinho: as figuras de um ator autor.
As reflexões para essa relação tiveram um ponto determinante a partir da declaração do diretor Bernardo Bertolucci sobre o processo de filmagem de O Último Tango em Paris.
Em uma entrevista de 2013 recém-revelada, o cineasta italiano admitiu que a atriz Maria Schneider não sabia do uso da manteiga, e portanto jamais consentiu, na cena mais polêmica do filme.


“A partir daí, comecei a pensar como essa questão pode ser abordada, quais os caminhos para se refletir sobre isso. Qual a ética de criação entre atores e diretores? Vale sujeitar a atriz a qualquer situação para a obtenção de um resultado na cena? É claro que não. O modo como Bertolucci encara essa situação vai para além desse episódio porque evidencia um modo de criação utilizado por muitos diretores. Bertolucci considera isso um procedimento de criação e muitos outros diretores assim também o fazem. Os relatos de atrizes sobre isso são vários, desde aquelas que estão começando seus filmes em curtas estudantis, até as grandes estrelas de Hollywood, passando pelas atrizes dos ‘filmes cult’.”
Essa relação de diretor-criador e ator-criatura, ou sujeito e objeto, ganha contornos muito específicos e danosos, segundo Bordinhon, quando se trata de um diretor com uma atriz.
“Me chamaram a atenção dois aspectos: o primeiro é o imaginário coletivo que se constrói sobre o corpo feminino, sobre a mulher como um objeto visual ao prazer masculino e contra o qual muitas discussões têm se levantado nos últimos tempos.
O outro é a ideia que se tem do diretor como o criador e a atriz como a sua musa, algo que é uma herança da relação do pintor com a sua modelo, uma ideia romantizada do criador como um gênio que encontra na figura feminina sua inspiração. E essa figura de inspiração, fica ali, passiva a sua apreciação”, diz.
“Sujeito e objeto são a tônica da relação de muitos diretores com suas atrizes e isso é algo tão enraizado que passa, muitas vezes, despercebido, mas que gera, ao longo da História, muitas relações abusivas. Temos vários exemplos de relações assim de artistas homens com suas colaboradoras. A relação entre Auguste Rodin e Camille Claudel, que foi modelo e assistente do escultor, além de uma grande escultora ela também, a de Pablo Picasso e várias de suas esposas, a de Jean Luc Godard e Anna Karina.
Essas relações são, muitas vezes, romantizadas e pouco se leva em conta o ônus que a criação das obras trouxe para essas mulheres. A questão que eu busco colocar é: qual cinematografia queremos construir?
Quais as narrativas de afetos, qual a ética que queremos construir a partir de agora e como isso afeta a nossa estética? Como professor de direção de atores e ator de cinema, essa é a parte que me cabe cumprir nisso tudo.”
De acordo com Bordinhon, as situações mais comuns de constrangimentos ocorrem justamente quando o diretor tenta extrair uma “verdade” do ator ou da atriz através da criação de uma situação real, tal como em O Último Tango em Paris.
Para ele, utilizar situações reais ou lançar mão de surpresas para uma reação espontânea é uma estratégia eficaz e pode instigar os atores a criar. Mas, ressalva, sempre se deve ter o cuidado para qual é o tipo de surpresa que você está preparando.
“Há diretores que, às vezes sem saber, sujeitam seus atores a um contexto em que estes estão desconfortáveis porque não houve preparação, não houve cuidado. E em algumas situações isso pode ser pior porque os diretores preferem não ter preparação alguma para, assim, captar a reação espontânea do ator ou da atriz, o que pode gerar situações terríveis.
O cinema tem esse aspecto documental, um corpo que acabou de sentir uma dor ou um prazer, quando filmado, é um corpo que acabou de sentir uma dor ou um prazer, isso fica registrado, funciona muitas vezes.
Mas essa metodologia, aplicada à revelia, parece ser um caminho fácil, preguiçoso até, e que desconsidera o ator como criador, como coautor da obra; alguém capaz de escrever e imprimir na cena, emoções, reações, que ele não precisa estar sentindo naquele momento”.
O problema, de acordo com o professor, é que “muitos diretores encaram os atores como se estes fossem uma folha em branco sobre a qual eles vão escrever e isso pode levar a imposições terríveis, já que há, no cinema, uma relação hierárquica muito determinante para a criação na qual o diretor é o topo dessa hierarquia”.
Na verdade, afirma ele, os atores a atrizes são colaboradores muito fortes e, tendo o espaço para criar, podem apresentar soluções muitos ricas para a criação.
No caso específico de atrizes, o ator e professor diz ter testemunhado relatos de situações nas quais elas se sentiram hiper-expostas, por serem desconsideradas como criadoras, por serem objetificadas e muitas vezes, por terem sua nudez explorada sem nenhum cuidado por parte de diretores.
“Uma delas me contou que se sentiu exposta demais, ela sentia que o diretor, que a convidou para um curta depois de vê-la em uma peça, estava praticamente fazendo o filme (que continha cenas de sexo) para o seu deleite visual/sexual, tendo o corpo dela como objeto. Mas, durante as filmagens, no calor da hora, ela não conseguiu se impor, colocar para ele como ela se sentia embaraçada, o que é muito comum. A filmagem diária precisava ser cumprida e ela sentia que, se parasse para questionar, ela atrapalharia o filme. E isso é algo pelo qual muita gente pode passar, atores e atrizes muitas vezes podem não conseguir o espaço para se colocar em um set de filmagem.”
“Outro caso que me chamou a atenção foi em aula, quando preparava com alunos a refilmagem de uma cena a partir do roteiro do filme ‘Dois dias, Uma noite’, de Jean Pierre Dardene e Luc Dardene, no qual a protagonista tem de pedir a uma colega de trabalho que a ajude a conseguir o emprego de volta, mas, para isso, essa colega deve abrir mão de uma bonificação anual. A cena era sobre isso e dois alunos comentaram, em momentos distintos, em tom de brincadeira e entre os amigos, que ‘iria propor às atrizes que se beijassem’ e o outro “que iria propor que elas fizessem a cena nuas’. Ou seja, mesmo sendo uma brincadeira, existe aí a evidencia de um imaginário fetichista”, relata.
“Há poucos diretores, homens, que buscam narrativas ricas e interessantes para suas personagens femininas e, no caso desses alunos, havia uma visão obtusa que sobrepunha o rico material que o roteiro lhes oferecia sobre as personagens”, completa.
Segundo ele, as diretoras buscam fugir de relações assim com seus atores e atrizes.
“Elas estão debatendo nas suas criações quais as narrativas elas querem falar e isso é um movimento ótimo, que abarca um cuidado com o outro, com a sensibilidade alheia. Há uma busca em rever maneiras de se dirigir. Uma amiga fazia um filme sobre a opressão masculina sobre as mulheres. Havia uma cena que se passava em uma prisão, na qual um grupo de carcereiros abusava de um grupo de mulheres prisioneiras. Era uma cena alegórica e não realista, os homens pouco tocariam as mulheres e usariam gestos e sons para intimidá-las.
A diretora tinha como ideia inicial não contar as atrizes como seria esse abuso, porque queria delas uma reação real, ela buscava um jogo para a construção dessa cena. Mas, nesse caso, ela sentia que colocava em cheque uma postura ética para com as atrizes do filme. Ela estava em conflito e não sabia se deveria proceder dessa maneira. No fim, ela concluiu que seria melhor deixar todos cientes do que se passaria na cena, que essa era a postura que ela queria ter como condutora. Ela viu que essa proposta se perderia no primeiro take e que não era a melhor opção para aquela cena”, disse.
Preparação de elenco
Para Bordinhon, a distância entre diretor e atores gerou, no Brasil, a presença forte do preparador de elenco, alguém capaz de compreender melhor os atores.
“O preparador de elenco é uma figura polêmica e sobre quem se trava diversos debates, mas, por agora, me interessa entender por que essa figura existe com tanta força no Brasil. E uma resposta que encontrei foi porque muitos diretores não têm ferramentas para eles mesmos ensaiarem seus atores. E essa falta de habilidade em conduzir os atores é algo que não tem a devida atenção em muitas escolas de cinema. Muitos estudantes têm em sua formação uma ótima abordagem técnica do cinema, mas poucos têm contato com uma reflexão sobre o que poderíamos chamar de ‘experiência humana’’”, completa.
A ideia geral da oficina surgiu dessa necessidade de olhar para a direção de atores e entender como ela pode se dar. “Percebi que há um caminho, que é quase como um caminho não pensado, já automatizado, de condução dos atores no qual eles são objetificados e, às vezes, tem desconsiderados seus limites físicos, psicológicos e morais, chegando, muitas vezes a ter violada sua integridade.”
O curso acontece na Bucareste Ateliê de Cinema, em São Paulo, vai até 28 de janeiro. Haverá outras edições em abril e julho, além de cursos de curta duração ao longo do ano. 

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