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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Erguer, acumular, quebrar, varrer, erguer...

por CARLA RODRIGUES
Na quarta onda do feminismo, surfam jovens, negras, mulheres trans, lésbicas, prostitutas, intelectuais etc. – principalmente etc.
Para Angela Freitas, cuja onda feminista sempre nos revigora.
Aproximando-se da praia, cada uma erguia-se, acumulava-se, quebrava e varria pela areia um tênue véu de água branca. A onda parava, partia novamente, suspirando como um ser adormecido cuja respiração vai e vem inconscientemente.
Virginia Woolf, As ondas
Só para quem não estava prestando atenção direito a onda feminista que tomou as ruas desde o fim de 2015 pode ser es­pantosa e surpreendente. Basta olhar um pouco mais de perto para perceber que, nem espantosa – porque o movimento das ondas é mesmo esse, varrer o solo por onde passa – nem surpreendente, essa onda vem de longe e está se acumu­lando faz tempo. No momento em que escrevo este ensaio, a quarta onda feminista pode estar no seu ápice. Navegam nesse oceano jovens, negras, mulheres trans, lésbicas, prostitutas, intelectuais etc. Principalmente etc. Há um mar de gente nes­ses movimentos a conjugar os verbos erguer, acumular, que­brar, varrer e recomeçar.
A #primaveradasmulheres, assim batizada em 2015, veio embalada pelas manifestações de 2013, pela criação de coleti­vos de mulheres e pela retomada das ruas desde 2011, quando começou a se espalhar, a partir do Canadá, a Marcha das Vadias. Fomos gritar #foracunha e protestar contra o Projeto de Lei 5069;1 as negras exibiram seus cabelos no #orgulhocrespo e organizaram a Marcha Nacional das Mulheres Negras; ocupa­mos as redes para denunciar #meuprimeiroassedio; intelec­tuais ganharam espaço na campanha #agoraéquesãoelas; a #partidA se organizou como um novo movimento feminista a fim de aumentar nossa representação parlamentar; apoiamos a presidente Dilma Rousseff para pedir #ficaquerida, gritar #foratemer e denunciar a misoginia do golpe; a Marcha das Margaridas levou 100 mil mulheres a Brasília; o Think Olga liderou a mobilização #chegadefiufiu para dar um basta na naturalização do assédio, da violência sexual e da cultura do estupro; o transfeminismo confrontou o essencialismo das feministas radicais, as radfems [radical feminists], e reivindica espaço legítimo no movimento de mulheres; as radfems estão brigando contra a pornografia e a prostituição, e as prostitutas, lutando pelo direito de ter sua profissão regulamentada. Tudo isso acontece ao mesmo tempo, formando a quarta onda femi­nista. Ou seria a terceira? Ou não seriam ondas? Há razões para o feminismo ser contado em ondas? Houve a terceira onda e esta é a quarta ou esta é a terceira?
Nos feminismos, essas respostas são dadas por alianças e por tomada de posições.2 Do meu ponto de vista, as ondas são uma metáfora útil para denunciar o vaivém da opressão. Ao longo do tempo, os feminismos têm estabelecido essa relação dialética de avançar até onde o mar chega antes de começar a recuar. São movimentos que começam a subir a partir da calmaria instável para se lançar contra a dureza da misoginia, da violência, do pre­conceito velado que ora submerge, ora volta à superfície. Do ponto mais próximo do pior, vem o melhor; do ponto mais pró­ximo do melhor, vem o pior; eis a relação entre as ondas do mar e as ondas das mulheres, entre a política feminista e a dialética.
As reivindicações por direitos vão e voltam e são, a cada vez, contemporâneas ao seu modo. Há novidades, uma onda nunca é igual à outra; e há repetições. Basta observar as ondas inundando a areia para perceber que há repetição na diferença, e há diferença na repetição. A plasticidade do machismo estrutural na sociedade brasileira consegue abrir espaço no mercado de trabalho e manter a desigualdade salarial entre homens e mulheres, criar leis contra violência doméstica e sustentar uma cultura de culpar a vítima pela violência, fazendo com que a discriminação das mulheres mude na aparência para não mudar na essência. Todos os dias a misoginia continua atribuindo valor universal à cultura masculina. Existem o futebol e o futebol feminino, a litera­tura e a literatura feminina, e nessas infinitas distinções há sempre a ideia de que masculino e universal se confundem numa só categoria, enquanto o feminino permanece no lugar secundário e específico onde deve ficar confinado.
A subalternidade feminina foi identificada pela cien­tista política inglesa Carole Pateman como o “Dilema de Wollstonecraft”: ou bem as mulheres se tornam cidadãs como os homens – e nesse caso ficam em segundo lugar em relação a eles – ou bem reivindicam direitos específicos para elas mesmas – e com isso estão condenadas a ser cidadãs de segunda classe no grande navio do poder. Antes presas ao espaço doméstico ou ao trabalho desqualificado, deixamos de ser exceção na esfera pública para viajar por mares nunca dantes navegados.
No começo dos anos 2000, o filósofo Gilles Lipovetsky me disse que o século 21 seria das mulheres. Fiquei surpresa. Até ali, carregava comigo a percepção do historiador Eric Hobsbawm de que o século 20 já havia sido o das mulheres. O direito ao voto foi se tornando universal nos países do Oci­dente e, a este, outros direitos civis foram se somando. No entanto, enquanto Lipovetsky fazia sua profecia, os movimen­tos feministas enfrentavam uma crise provocada justamente pela constatação de Hobsbawm: tendo transformado as socie­dades ocidentais, decretava-se o fim da necessidade dos movi­mentos feministas, de suas bandeiras, reivindicações, exigên­cias e reclamações. Algo como “o que mais vocês querem?”.
Os ataques inimigos foram muito bem diagnosticados pela norte-americana Susan Faludi,3 feminista que denun­ciou a imensa quantidade de discursos retrógrados cuja intenção era nos fazer voltar para o mar sem fim das tarefas domésticas, do cuidado com a prole e com os cônjuges, sob a ameaça de perdê-los ou de nunca conquistá-los em caso de excesso de investimento em carreiras profissionais bem-sucedidas. O “cala a boca, mulherada” emergia exatamente no ápice da terceira onda feminista. Foi uma reação tão forte que ganhou adeptas inclusive entre mulheres, em práticas de ressignificação do trabalho doméstico não remunerado, o que logo se popularizou como um movimento de “volta ao fogão”, usado como prova de que as bandeiras feministas pre­cisavam mesmo ser superadas.
Obstáculos como violência, violação do corpo, subalterni­dade, sexualidade, maternidade, educação, mercado de traba­lho, discriminação por sexo, gênero, idade, cor da pele vão e voltam no tempo e no espaço, levando em conta também as imensas diferenças regionais entre as mulheres brasileiras. Se é verdade que as principais forças feministas estão lançadas nessa onda cujo ápice se torna visível hoje, é também verdade que esse acúmulo começa lá atrás, em uma vaga qualquer neste vasto oceano. Os movimentos feministas brasileiros não começaram em 2015, na Primavera das Mulheres; também não começaram 40 anos antes, em 1975, na lendária reunião na Associação Brasileira de Imprensa (ABi) que fundou a pri­meira organização de mulheres, o Centro da Mulher Brasileira (CMB); tampouco com Bertha Lutz e as sufragistas dos anos 1920 e 1930, ou mesmo com o pioneirismo de Nísia Floresta, no século 19. Quando se trata da história das mulhe­res, é mais prudente considerar que pode haver inúmeras ondas que nunca nos foram contadas, como a Revolta dos Malês, iniciada por mulheres negras na Bahia do século 19,4 ou a força da revolta das quilombolas no século 16.
Se contarmos quatro ondas, temos na primeira, cujos movimentos começaram ainda no século 18 e se desdobra­ram até a Segunda Guerra Mundial, a luta por direitos civis básicos, como voto e educação. Começou quando aquilo que a história chama de início da modernidade política – a Revolução Francesa e seus ideais de liberdade, igualdade, fraternidade –- separou homens e mulheres a partir de seus direitos civis. Duas europeias – a francesa Olympe de Gouges e a inglesa Mary Wollstonecraft –- denunciaram a cidadania universal como forma de nos excluir. Dali em diante, as sufra­gistas realizaram um grande feito para os países ocidentais ditos democráticos. Nunca houve democracia representativa antes de as mulheres, metade da população mundial, con­quistarem o direito ao voto.
A segunda onda desdobra a primeira, cresce nos anos 1960 e 1970, junto a outros movimentos libertários, e vai até o iní­cio dos anos 1990. Foi o tempo dos sutiãs queimados, do grito contra a violência, da revolução sexual e da reivindicação de direito ao orgasmo, da ocupação das universidades e do mer­cado de trabalho, da descriminalização do aborto, da lei do divórcio, da emancipação formal, da ampliação dos direitos da mulher em muitos países ocidentais, da criação do Ano Internacional da Mulher, pela ONU, em 1975, e da transfor­mação da pauta feminista de regional para internacional. No Brasil pós-ditadura militar, as feministas da segunda onda lutaram pela anistia, conquistaram o Programa de Assis­tência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), fizeram o “lobby do batom” na Constituinte de 1988, quando extinguiram o pátrio poder, tornando homens e mulheres igualmente res­ponsáveis pelas famílias, e escreveram direitos fundamen­tais, como o de planejar o número de filhos, incluindo os difíceis confrontos com as forças religiosas. Recentemente, um grupo de mulheres juristas foi responsável pela formu­lação do anteprojeto que resultou na Lei Maria da Penha. São mudanças institucionais e culturais que transformaram a cara do século 20, como se pode ver nas ruas das grandes capitais, apesar das inúmeras discriminações que ainda enfrentamos todos os dias.
Gente que vive no mar – pescadores, marinheiros, vele­jadores, surfistas – acredita que as ondas fortes sempre vêm em sequência de três, e a terceira é a mais intensa. A mais alta. A mais forte. A mais ameaçadora, portanto. Ao mesmo tempo, é aquela depois da qual virá a calmaria. Por um tempo impre­visível, o mar se acomodará e as ondas suspenderão os verbos que conjugam: erguer, acumular, quebrar, varrer. Foi assim ao final da terceira onda feminista. Parecia haver uma calmaria que levaria o feminismo ao seu final. A força do mar tinha dei­xado marcas indeléveis nas areias movediças das diferenças internas entre os feminismos. A quarta onda emergiu exa­tamente a partir da aproximação do pior. Surgiu do risco de perder territórios já conquistados. Em mar revolto, em vez de afundar, como queriam nossos inimigos, crescemos.
Ou não, se levarmos em consideração uma das percep­ções críticas mais argutas dos últimos anos, a da feminista norte-americana Nancy Fraser.5 Embora nunca tenham se constituído como unívocos, os movimentos de mulheres durante muito tempo mantiveram sua pluralidade interna nos porões dos nossos navios, de modo a não dar visibili­dade ao equilíbrio instável sobre o qual os feminismos seguiam seus rumos. Desde que essa multiplicidade veio à tona, tem sido saudada como um avanço feminista. Só aos adversários interessa cobrar coerência interna dos movi­mentos de mulheres. Se o mundo é caos, heterogeneidade e confusão, então toda tentativa de dar univocidade ao poder apaga o conflito à força, em nome de um ideal de consenso no qual, na prática, vence a lei masculina. A filósofa Chantal Mouffe6 recupera o caráter agonístico da política justamente a fim de denunciar a farsa dos consensos, da tolerância que mantém a diferença como marcador de discriminação e dos discursos de inclusão cujo objetivo é manter as coisas exata­mente como estão.
Inspirada pelo trabalho de Luc Boltanski e Ève Chia­pello,7 Nancy Fraser percebe que há uma infeliz coincidên­cia entre a segunda onda feminista e a expansão de práticas do capitalismo tardio. O uso do significante “coincidência” – recurso dos sociólogos franceses para não estabelecer relações de causa e efeito – possibilitou a Fraser articular as caracterís­ticas da segunda onda com as do neoliberalismo sem cair na armadilha da relação de causalidade nem no argumento, tolo, de que os feminismos serviram ao capitalismo tardio. A argú­cia de Fraser está em observar como a infinita plasticidade das práticas capitalistas tomou para si as transformações dos feminismos na cultura. Termos estratégicos como fragmenta­ção, descentralização e desierarquização são os mesmos usa­dos pelo pós-fordismo. Essa “perturbadora convergência” traz, no elogio à multiplicidade, o risco de dissolução. As diversas atuações feministas que apresento a seguir estão impregna­das por essa ambiguidade. São a emergência da quarta onda, a entrada em cena de cada vez mais pessoas, o elogio ao modo de fazer política sem a redução à falsa unidade do consenso. Mas no melhor também está o pior, no auge da onda também está seu maior risco de queda.
JOVENS E VADIAS
Para as jovens que nasceram sob o signo da emancipação – aqui entendida nos seus sinônimos mais estritos, como liber­tação, alforria e independência –, há retrocessos inaceitáveis. O mais exemplar é o constrangimento à sexualidade, algo que “naturalmente” seria impossível conter nos homens. Elas reeditaram o slogan “meu corpo, minhas regras” e criaram a Marcha das Vadias.8 Surgida em 2011, no Canadá, depois que um policial propôs como estratégia de redução do número de estupros que as meninas não saíssem às ruas “vestidas como vadias”, a Slut Walk rapidamente se espalhou, como uma onda, por diferentes países ocidentais. O Brasil aderiu no mesmo ano, e, aos poucos, a manifestação foi tomando o corpo das mulheres nas grandes capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. A ideia de assumir o termo pejora­tivo e transformá-lo em mote de reivindicação já funcionara nos anos 1990, quando o movimento queer – um xingamento de difícil tradução, expressão norte-americana que poderia equivaler a “bicha” ou “viado” – também propôs ressignificar aquilo que pretendia desqualificá-lo. Alegre, carnavalesca e irreverente, a marcha recuperou o bom humor para boa parte do movimento de mulheres, cuja crescente institucionalização havia afastado a militância das ruas.
Muitas jovens feministas da quarta onda têm a pretensão de estar inven­tando o feminismo desde 2013, causa de tensão com as linhagens ante­riores. Ao mesmo tempo, as mais velhas por vezes olham com arrogância para quem está chegando agora e nem sempre sabe ou se interessa pelo que aconteceu antes. Esse é um dos riscos das ondas feministas. Em certo momento, o mar recua da areia e é como se nunca tivesse passado por lá. A imagem serve para descrever os afastamentos entre gerações, que tam­bém não começaram agora. A mim, por exemplo, nunca passou pela cabeça agradecer a Bertha Lutz pelo sufragismo. Tendo nascido mais de duas déca­das depois da conquista do voto feminino, sempre me pareceu natural e óbvio que mulheres também fossem eleitoras. Quem hoje tem 18 anos por vezes não faz ideia de como foi difícil chegar até aqui. Na década de 1980, por exemplo, os movimentos de mulheres impulsionaram a prática de promover encontros nacionais de militantes –— engajadas em organiza­ções de base, redes, grupos, ONGS – para discutir pautas de reivindicações, enquanto a teoria se constituía em diversas áreas de pesquisa como antro­pologia, literatura, psicanálise, ciências sociais, economia, filosofia. Desde 1994, as acadêmicas realizam na Universidade Federal de Santa Catarina o congresso feminista Fazendo Gênero, um marco na construção do campo dos estudos de gênero no Brasil, cujas discussões incluem um aspecto deci­sivo para qualquer corrente feminista hoje: qual o grau de colonização do pensamento feminista brasileiro em relação a autoras europeias ou norte-a­mericanas? É ótimo que a quarta onda possa retomar a pergunta, tão perti­nente em tempos pós-coloniais e de crítica à invisibilidade de pensadoras negras, latino-americanas ou indígenas.
MULHERES NEGRAS
Nos anos 1980, os movimentos de mulheres no Brasil tinham o fôlego da segunda onda e também seus problemas internos. Um episódio marcou para sempre a disjunção entre o feminismo de brancas e negras. Reuni­das no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, duas feministas se con­frontaram, a negra acusando a branca de “nunca abandonar sua atitude de sinhazinha”. Dali em diante abriu-se uma dissidência importante, que evidenciava a hierarquia problemática na luta pelo poder. As mulheres ne­gras denunciavam que nós, brancas, estávamos reproduzindo em relação a elas as mesmas opressões de que éramos alvo por parte dos homens. Sim, havia especificidades da luta das mulheres negras que não estavam sendo contempladas. Sim, as mulheres negras estavam invisíveis e minoritárias nas organizações de mulheres e, sim, era preciso pensar as discriminações cruzando pelo menos três elementos: gênero, raça e classe.
Em 1987, no IX Encontro Nacional Feminista, decidiu­-se que era o momento de as mulheres negras fazerem um movimento próprio. No ano seguinte, acontecia no Rio de Janeiro o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, com 450 participantes vindas de 19 estados, precedido por reuniões e seminários estaduais de mobilização e debate político. O ano era 1988, data das comemorações oficiais do centenário da abolição da escravatura. Era o que precisava para as mulheres negras contestarem a história oficial a fim de mostrar a per­sistência do racismo na sociedade brasileira, intrinsecamente ligado à escravatura, e suas ramificações particularmente vio­lentas com as mulheres. Organizações de mulheres negras se multiplicaram a partir de então e foram constituindo suas bandeiras e reivindicações singulares. Por isso, quando, em 2015, a Marcha das Mulheres Negras levou 50 mil pessoas a Brasília para mostrar a cara da desigualdade e da violência racial, não foi nem espantosa nem surpreendente a emergên­cia dessa onda feminista negra, cujas forças vinham se acu­mulando há muito tempo.
FEMINISMO INTERSECCIONAL
Nos anos 1970, coube às feministas marxistas apontar a insufi­ciência de exigir o fim da exploração do proletariado, demons­trando que nem todas as desigualdades podiam estar circuns­critas à luta de classes. Havia desigualdades de gênero e de raça que se entrelaçavam e se sobrepunham às desigualdades de classe, de tal modo que era preciso pensá-las de forma articu­lada. Houve a separação histórica no interior do pensamento materialista, homens para um lado, mulheres para o outro. No Brasil dos anos 1970, Heleieth Saffioti 9 falava num sistema de opressão que ela chamou de patriarcado-racismo-capitalismo, e Lélia Gonzalez escrevia coisas como “ser negra e mulher no Brasil é ser objeto de tripla discriminação”.10 Ela se referia à subalternidade, tanto no mercado de trabalho quanto em casa, e à condição da “mulata” como mero objeto sexual. A partir de então, muito se fez e pensou sobre a interseccionalidade como forma de tentar abranger – sem hierarquizar – os diversos aspectos da exclusão da mulher negra. Hoje, comemora-se como um avanço desse debate o lançamento de Mulheres, raça e classe, de Angela Davis,11 a marxista negra norte-americana cujas críticas à esquerda tocam exatamente neste ponto: não é possível manter a primazia da questão de classe sobre as outras formas de opressão. A tradução brasileira chega com prefácio de outra feminista negra, a paulista Djamila Ribeiro, cuja atuação no feminismo interseccional tem sido decisiva para a visibilidade desse modo de atuação.
FEMINISTAS RADICAIS
As radfems existem pelo menos desde a segunda onda femi­nista, mas neste momento ganham visibilidade no Brasil por causa de sua constante ofensiva contra a Lei Gabriela Leite, projeto que regulamenta a profissão de prostituta. São ins­piradas pelo pensamento de duas teóricas norte-americanas, Andrea Dworkin e Catharine MacKinnon. Juntas, elas mili­taram intensamente contra o que consideram ser as piores formas de exploração do corpo da mulher: a pornografia e a prostituição. As radfems estão também particularmente em evidência por suas posições – não consensuais, é verdade – contra as mulheres trans, a quem acusam de terem vivido os privilégios masculinos antes da transição e não reconhecem como mulheres (“a vagina não é original”). A posição contra as mulheres trans é de difícil sustentação, por qualquer abordagem que se queira dar. O feminismo nasce da percepção de que ter um corpo de mulher não pode ser justificativa ou fundamento para nenhum tipo de discriminação. Entre as premissas que sustentam os feminismos está a rejeição a uma essência feminina que nos identifique, a percepção de que o elemento feminino é constitutivo das subjetividades da for­mação de homens e mulheres; e de que biologia não é destino, para citar apenas alguns dos argumentos em jogo. Parece-me que a exclusão das mulheres trans é uma forma de retroceder a um ideal de essência do qual ainda estamos lutando para nos livrar. As radfems também não aceitam a hipótese de que homens possam vir a militar ao lado das mulheres feminis­tas, o que, do meu ponto de vista, reforça a hipótese de que os homens são nossos inimigos, nublando a percepção mais am­pla do sistema de opressão ao qual mulheres e homens estão submetidos – ainda que em proporções diferentes – sempre que o elemento feminino está em jogo.

FEMINISTAS LÉSBICAS
Da mesma forma que em dado momento as mulheres ne­gras não se sentiram representadas na segunda onda femi­nista, as lésbicas perceberam que as heterossexuais, cujas demandas eram dirigidas aos homens, tinham privilégios na pauta de reivindicações. Ao mesmo tempo, também não se sentiam contempladas no movimento gay, dominado por homossexuais masculinos. São pioneiras nas críticas à hete­ronormatividade, e muitas consideram o lesbianismo decor­rência de ser feminista, no sentido de ser um modo de vida social e cultural do qual os homens não podem participar. Inspiraram-se sobretudo no trabalho da pensadora francesa Monique Wittig e na sua releitura pela filósofa Judith Butler, cuja contribuição também é fundamental para se refletir so­bre o marcador de abjeção do corpo da lésbica como aquela que recusa tanto o homem quanto a maternidade, dois desti­nos tidos como naturais para as mulheres. Na França dos anos 1980, num célebre artigo intitulado “Não se nasce mulher”, 12 Wittig contestou Simone de Beauvoir quanto à naturalidade da divisão da humanidade apenas entre homens e mulheres.
No panorama brasileiro atual, as feministas lésbicas estão associadas às feministas interseccionais, já que o marcador de lesbianidade as torna sujeitas a pelo menos mais um tipo de discriminação.
TRANSFEMINISMOS
Ao propor um feminismo que “não fosse feito em nome do su­jeito mulher”,13 à primeira vista Butler parecia ameaçar o ho­rizonte de vitórias da segunda onda feminista. Muitas de suas críticas eram pertinentes e nos forneceriam o oxigênio neces­sário para erguer a quarta onda. Afirmar o conceito de gênero como categoria útil de análise, como fez a filósofa Joan Scott,14 foi durante muito tempo tarefa estratégica para denunciar como a diferença sexual fazia das mulheres seres inferiores nos mais diversos campos sociais, culturais e econômicos.
A partir do questionamento do conceito de gênero, a segunda onda feminista se viu diante de uma onda que se acumulava dentro dela mesma, donde a percepção de que a terceira onda tenha sido mais teórica, voltada para si. A constatação dos li­mites do conceito de gênero, ainda ancorado na polaridade masculino/feminino, chegou para promover a crítica da he­terossexualidade normativa.
Tanto mar, tanto mar, e tanto ainda a fazer. Se os femi­nismos haviam se concentrado em mulheres e suas rela­ções com os homens, mas ainda de um ponto de vista heterossexual, era preciso incluir outras formas de sexua­lidade e outras configurações de pessoas, como as trans e suas demandas de modificação corporal, necessariamente acompanhadas de direitos civis. Um novo oceano de ques­tões se abria, com outras ondas e reivindicações. Em alguns momentos, parece um recomeço pelo mote “biologia não é destino”, aquele iniciado em 1949 com a publicação de O segundo sexo, de Simone de Beauvoir. Mais do que nunca, corpos são entendidos não como naturais, mas como resul­tado dos discursos que se escrevem sobre eles. Aqui, o mar se abre em pelo menos duas ondas. De um lado, há quem defenda a necessária distinção entre transgêneros e cisgê­neros (esta última denominação se refere a pessoas cujos corpos estariam adequados ao papel que desempenham na sociedade). De outro lado, há quem, como eu, ache esse binarismo mais uma forma de nos separar. Entram em cena a luta das pessoas intersexo, o urgente debate sobre a catego­ria “disforia de gênero” no manual de diagnóstico de doen­ças mentais, os travestis e suas marcações de raça e classe, e uma infinidade de novos desafios, descritos por Jacqueline Rose neste volume (pp. 109146).
Se o diagnóstico de Nancy Fraser estiver certo, essa multiplici­dade de modos de ação pode ser potente ou inócua, e as ondas podem tanto quebrar e varrer quanto se retrair em maré baixa. Como argumentei no início, no momento em que escrevo este ensaio estamos no ápice da quarta onda feminista, embaladas pela visibilidade dos diversos feminismos, pela possibilidade de alianças e coligações diante de inimigos comuns, e por um significante que tinha caído em desuso, mas acaba de voltar ao gosto das mu­lheres: sororidade. Análogo à fraternidade, marca em primeiro lugar a ideia – correta, penso eu – de que historicamente a fraternidade sempre foi entre ir­mãos. Herdamos da tradição grega e da filosofia moderna uma organização familiar na qual irmãos têm mais valor do que irmãs. Ainda não dicionarizada, sororidade quer expressar a solidariedade entre mulheres. No contexto dos feminismos contemporâneos, quer dizer apoio incondicional entre mulheres como estratégia de enfrentar principalmente as formas por vezes insidiosas de opressão masculina. Entra em cena um pequeno dicionário de machismo, com termos importados da cultura norte-americana, mas muito apropriados para situações brasileiras. Curiosamente, foram as feministas jovens que os trouxeram para o debate, talvez porque as gerações anteriores tenham de fato se cansado de brigar contra isso todos os dias. Manterrupting: o cara que não deixa você terminar uma frase; bropriating: sobretudo no ambiente de traba­lho, o homem usa da força de seu discurso para se apropriar da ideia de uma mulher; gaslighting: um modo de tentar nos convencer que enlouquecemos ou somos emocionalmente incapazes; e o mais cotidiano, comum e irritante deles, o mansplaining: um homem te explicando didaticamente o óbvio, como se você, por ser mulher, fosse incapaz de entender. É como se ele viesse dire­tamente do século das Luzes para nos tirar das trevas da ignorância e do des­conhecimento. Contra tudo isso, a sororidade propõe alianças de denúncia e crítica a fim de mostrar a misoginia nossa de cada dia.
Mantendo minha posição inicial, a de que os feminismos vão e vêm em ondas que, ao se aproximarem do pior, refluem para avançar novamente, me parece que a sororidade é dessas categorias indecidíveis com as quais nós estamos sempre lidando. Por um lado, pode ser potente para enfrentar um inimigo maior, tanto a tríade patriarcado-racismo-capitalismo descrita por Saffioti quanto o preconceito cotidiano dos pequenos gestos. Por outro lado, em nome da sororidade acho que não vale a pena abrir mão do caráter agonís­tico da política feminista, cuja força é desestabilizar as formas convencionais de organização. Coligações estão nas propostas de Butler, por exemplo, a fim de promover o que ela chama de “fundamentos contingentes”, a união de diversos grupos vulneráveis em torno de causas comuns, ao invés da equi­vocada disputa pelo mesmo espaço. Na França, está em curso o que seria uma improvável aliança entre marxistas e pós-estruturalistas, ambas as correntes reconhecendo que as diferenças de abordagem não são maiores do que as proximidades. Pensar o sexo como discursivo, como fazem as pós-estrutu­ralistas, não impede que se acrescente a isso a percepção das marxistas de que gênero, raça, classe e lugar de origem são marcadores de discriminação e também se sustentam em um discurso hegemônico. São modos de atuação para além da sororidade, porque não estão baseados no mero fato de sermos todas mulheres.
Nesse sentido, me parece interessante chegar ao fim incluindo mais uma iniciativa feminista emergente, a #partidA. Proposta pela filósofa Marcia Tiburi, a criação de um partido feminista brasileiro, a #partidA, começou a ser formada no início de 2015 como mais uma das iniciativas de canalizar a força dos movimentos de esquerda que estiveram nas ruas em 2013 (digo isso propositalmente sem entrar no debate de como as forças conservadoras foram mais competentes em carrear o desejo de mudança expresso naquele momento). Em vez de se tornar mais um partido para disputar eleições, está se constituindo como um movimento político que tem entre seus objetivos a ampliação da representação feminina no parlamento, seja no âmbito muni­cipal, seja no estadual ou federal. É uma tentativa de nem ficar apenas nas ruas, nem apenas nas câmaras; nem só na militância, nem só na teoria, de não ser nem isso, nem aquilo, não estar nem aqui, nem lá.
Por fim, a vantagem de medir o feminismo em ondas está na potência da comparação com o mar. Ondas são fluxos e refluxos da água sobre a areia, são avanços do oceano sobre a terra, do fluído sobre o fixo. Ondas feministas são assim, investidas das mulheres sobre as interdições, como um mar que bate nas pedras até lhes modificar o perfil. Feministas são tão vastas quantos os ocea nos e estão em permanente movimento para reduzir os continentes masculinos de poder. A história da política feminista respira por estas ondas que se erguem, acumulam, quebram e varrem. A força dos feminismos está na sua dialética infinita como horizonte.

Carla Rodrigues (1961) é filósofa, feminista e surfista. Professora da UFRJ, é autora de Coreografias do feminino (Mulheres, 2009) e de Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade (Nau, 2013). Na serrote, publicou “Os nomes do capital” (n. 9) e “Revolta” (n. 15).

NOTAS
1- O PL 5069 tem como objetivo voltar a obrigar as mulheres vítimas de estupro a fazer o boletim de ocorrência para ter direito ao serviço de aborto legal no sistema público de saúde. O projeto retrocede a 2005, quando a norma técnica do Ministério da Saúde (datada de 1998) foi atualizada, suspendendo essa exigência.
2 – Aqui, estou me alinhando ao argumento da socióloga Bila Sorj, a fim de contabilizar a atual onda feminista como a quarta, e à filósofa feminista Magda Guadalupe dos Santos para defender a divisão dos feminismos em ondas. Refiro-me ao seu primoroso artigo “O feminismo na história: suas ondas e desafios epistemológicos”, que reconstitui com rigor filosófico e histórico as ondas que vêm movimentando os feminismos ao longo do tempo. Ver Marcia Tiburi e Maria de Lourdes Borges (orgs.), Filosofia: machismos e feminismos. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.
3 – Susan Faludi, Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
4 – Como no romance de Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2003.
5 – Nancy Fraser, “O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história”. Trad. de Anselmo da Costa Filho e Sávio Cavalcante. Mediações, Londrina, v. 14, n. 2, 2009, pp. 11-33.
6 – Especialmente no capítulo “Feminism, citizenship and politics”, in The Return of the Political. Nova York/ Londres: Verso, 1993, e The Democratic Paradox. Nova York/ Londres: Verso, 2005.
7 – Escrevi sobre a coincidência no trabalho de Boltanski e Chiapello em “Os nomes do capital”, publicado na serrote#9.
8 – A Marcha das Vadias é, para muitas teóricas, um marco inicial da quarta onda feminista. Ver mais sobre a importância das marchas em Carla Gomes e Bila Sorj, “Corpo, geração e identidade: a Marcha das Vadias no Brasil”, Sociedade e Estado, v. 29, n. 2, 2014.
9 – Heleieth I. B. Saffioti, A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1979.
10 – Lélia Gonzalez, “A mulher negra na sociedade brasileira (uma abordagem político-econômica)”, in Madel T. Luz (org.), O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
11 – Angela Davis, Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
12 – Monique Wittig, “On ne naît pas femme”. Questions Féministes, n. 8, 19 80.
13 – Judith Butler, Problemas de gênero Feminismo e subversão da identidade.. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
14 – Joan Scott, “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, tradução de Guacira Lopes Louro. Revista de Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 15, n. 2, 1990.

Serrote

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