23 de janeiro de 2017
Adoção de crianças e, mais que tudo, adoção de bebês nos enternece e emociona. Quase sempre olhamos para aqueles que adotam com olhar de admiração. Se adotam grupos de irmãos, então, crescem os elogios! Se o adotante é branco e adota um negro, mais “óhhs” e mais palavras de reconhecimento. Tudo levando a adoção para um patamar pouco real, simbolizado, e que em muito onera tal medida aplicada para proteger crianças e adolescentes.
A adoção, no entanto, não existe exclusivamente para atender ao humano desejo de alguém constituir uma família, buscando filhos por tal via legal. O ato de adotar deve ser, antes de tudo, uma medida protetiva para a criança e adolescente, medida de caráter excepcional, vez que antes dela devem ser utilizados e esgotados todos os recursos para mantê-los em sua família de origem (ECA, art. 39, par. 1o).
O Brasil ostenta número expressivo de crianças afastadas de sua família, por algum ou vários motivos, e que vivem em inúmeras instituições de acolhimento. Esses locais, também chamados de abrigos, uns bons, outros não, devem ser morada temporária delas, tempo de espera mínimo, para retornarem para casa dos pais, ou seguirem para um novo lar.
Acontece que do texto legal, que expressa tudo isso, para a realidade há um abismo profundo.
Faz mais de vinte anos que sabemos a lição: criança e adolescente são sujeitos de direitos; direitos esses que tem que ser garantidos pela família, pelo comunidade em geral, pela sociedade e pelo Estado. E tudo com prioridade absoluta. Se a família falha, ou acaba mesmo antes de existir, se a comunidade não está presente, ao poder público caberia agir, e rápido, pois o tempo de ser de um bebê, de um menino de 2 anos, o tempo de uma adolescente de 12, é tempo de viver e não para!
Quando uma criança/adolescente se mostra carente de cuidados, toda uma rede de proteção, que envolve atores vários, deve estar apta e pronta para por em prática políticas e serviços que protejam, acolham, e garantam o direito desses pequenos e jovens cidadãos e cidadãs.
Porém, o poder público, quase sempre, caminha com dificuldade e não consegue dar o suporte temporal e suficiente para que famílias que estão em ruptura se restabeleçam, superem problemas e que a criança, mesmo que dali afastada temporariamente, para lá retorne, com brevidade. Há famílias em estado de abandono. O pai perde o emprego, a mãe adoece, a casa pega fogo ou dela são todos despejados. E as crianças acabam indo para os abrigos, e muitas lá ficam, por um tempo longo, quase toda a infância, senão até os 18 anos, quando, então, terão que sair dali, com autonomia, e ser um “bom cidadão”.
Dai que nesse vácuo da omissão e do descaso, a adoção surge, plena, muita vez como solução. Porque muitas ações são pífias e tardias, muitas crianças tem na adoção a única chance para viver em família. E, fator cruel, é que a adoção nem sempre acontece. Adotantes no Brasil ainda preferem, em maioria, adotar bebês de tenra idade. Faz pouco que crianças de 2 a 5 anos estão sendo adotadas com mais facilidade, porque passaram a ser reconhecidas como ainda pequenas, na fase inicial de seu desenvolvimento. E nessa toada, ficam “para sempre” nos abrigos, os maiorzinhos, os que tem algum “problema”, e os adolescentes.
Dia desses, uma notícia, com o sempre apelo emocional, ocupou os meios de comunicação, nos contando que há pessoas que agora estão dispostas a adotar crianças “filhas de mães do crack”. (Se a gente reparar bem, podemos em alguns casos dizer “netas do crack,” talvez). Essa rotulação – mães do crack – essa simplificação da origem, acalma nossa culpa cristã, nos faz sentir bons cidadãos e lemos a matéria com a sensação de alivio, porque afinal, reconhecemos que “tem gente boa no mundo”.
Mas, há algo mais a se fazer. Cabem perguntas: Quem são as mães do crack? Estão gerindo suas vidas? Odeiam seus bebês? Querem mesmo perdê-los, ou vendê-los a traficantes que as assediam toda hora, oferecendo-lhes por eles umas pedras? De quem são filhas essas mães do crack? Talvez, muitas sejam filhas dessa roda viva, dessa espiral de abandono, vida em abrigo, solidão, rua e drogas.
Agora que o novo prefeito da capital paulistana anuncia modificações no Programa Braços Abertos cabe lembrar que já tarda na cidade um serviço específico com as adolescentes e mulheres que vivem pelas ruas, grávidas, sem qualquer proteção ou cuidado quanto ao destino de seus filhos. Quem sabe, Sr. Prefeito, um programa que, após abrir para elas os braços do poder público e seus serviços, acolha-as num sincero abraço, indique-lhes novos caminhos fora da rota da droga, busque membros da família e atue no reatamento dos laços rompidos, ajude-as (se não todas, muitas querem!!) a fazer a transformação necessária, para virem a ser mães, fora do crack. Apenas mãe.
O município de Campinas, através de convênio com entidade social, tem, há um ano, projeto com esse viés – Casa da Gestante – e vem somando sucesso, com acolhida de mulheres oriundas da rua e da droga, que encontram ali um espaço de ser, de se livrar do vício e de se desenvolver, cuidando de si e do filho que traz no ventre. A cidade de São Paulo merece isso também. As mulheres, adultas ou adolescentes que dão à luz seus filhos e os perdem (bem como perderam a si mesmas) para a droga fazem jus a esse olhar do poder público e a garantia de tal direito – viver em família, ser mãe, ter filhos e deles cuidar com dignidade. As adoções, processo legal que guarda a necessária complexidade e importância na vida de tantos, continuarão a ser necessárias para muitas crianças, por óbvio, mas não podem constituir solução para um problema de saúde pública e social que está tão escancarado na capital paulista e em muitas cidades do Brasil.
Dora Martins é juíza da Vara de Infância.
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