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segunda-feira, 16 de março de 2020

Como viviam as mulheres transexuais na ditadura

Por Cassiano Ricardo Martines Bovo
Terça-feira, 10 de março de 2020

“Nós estamos falando de uma violência institucionalizada”[1]

Cruzamento de duas movimentadas ruas na região central da cidade. Uma travesti de longos cabelos negros, top e short, voluptuosamente rebolava entre os carros que passavam rente ao seu corpo; de alguns deles saiam mãos que acariciavam suas belas curvas.  

Se na década dos 1970 cenas como essas eram consideradas algo novo nas grandes cidades do país, após esse período deixaram de ser. Tal situação provocou mais reações do que em relação às prostitutas e aos michês e muito incomodou. Até hoje é assim. As estatísticas de violências e assassinatos de mulheres transexuais que o digam. 

E o momento da opção, de forma praticamente generalizada, da prática da prostituição por parte das travestis nas grandes cidades brasileiras calhou de ser justamente um dos mais terríveis períodos de nossa história: o da ditadura militar, forjada no infame golpe de 1964, que se desdobrou na tão conhecida repressão política, ideológica, policial e moral.   

Pouco à frente, na mesma rua em que a travesti fazia sua performance, um grupo delas se expunha na calçada, atraindo clientes. Apesar de cada vez mais provável, naqueles tempos, viaturas e camburões repentinamente chegam. Encurraladas e dominadas vão sendo jogadas nos carros de presos. Uma delas, alta e bela loira de longos cabelos, sai em desabalada correria, desequilibrada pelos altos saltos.  

Três policiais saem em seu encalço. Ela virou a primeira travessa que encontrou; a distância se encurtava em relação a seus algozes. Encontrando, sabe-se lá onde, reservas de energia, acelerou. Se a distância aumentou num primeiro momento, em seguida foi diminuindo e acabou dominada. Derrubada ao chão, foi algemada. Mesmo assim resistiu, foi arrastada por alguns metros. Com a face sangrando e manchas roxas no braço foi atirada num camburão já ali encostado.

“De novo?”, pensou ela. Essas operações de caça não a faziam – e nem a suas colegas – desistir, mesmo que várias vezes detida, por um simples motivo: sobrevivência. E assim, sofriam toda sorte de espancamentos, torturas, humilhações, estupros, extorsões, prisões abusivas, quando não o homicídio. 

Ela, a Sobrevivente, hoje aos seus 63 anos (num país em que a expectativa de vida é de 35 para as mulheres transexuais), sente calafrios quando em 31 de março (ou 1º de abril? e não foi mentira…) vê pessoas saudosamente comemorando o repugnante aniversário do golpe militar de 1964. Lhe vem à mente tudo que ela e as demais passaram. “Será que as pessoas têm ideia disso?”, pensa.

Talvez não, a partir das obscuras histórias e fatos que emergiram da elaboração do texto 7 (“Ditadura e homossexualidades”), de dezembro de 2014, sob as luzes projetadas pelos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (assim como as várias Comissões Estaduais). “E ainda há muito a se conhecer; se minhas colegas e amigas estivessem vivas, quantas coisas diriam”, pensou a Sobrevivente. 

O regime associava as sexualidades desviantes à subversão e as travestis, em decorrência, tornaram-se inimigas do regime.   
O que o Atlas da Violência e o STF têm a ver com o direito à cidade da população LGBT?
Num país homotransfóbico, forjado na norma heteronormativa e na hipocrisia, as travestilidades assumem, de fato, caráter subversivo pela ação transgressora em termos identitários, porém, a subversão que se acusava à época era a da associação com o comunismo e organizações de combate ao regime, embora a grande maioria delas não a tivesse. Que crime cometeram, então? Só se foi o do corajoso trânsito que fazem, do masculino ao feminino. 

Prostituir-se não era, e não é, crime no Brasil (diferentemente da exploração da atividade, o chamado lenocínio); assim, encontrou-se na contravenção penal a forma de criminalizá-las, como vadias. Quem não conseguia comprovar vínculo empregatício – geralmente difícil para as travestis – em geral ficava presa, podendo chegar a três meses. Contradição: quem já tinha emprego poderia prostituir-se? E quem não tinha, a reforçar a necessidade da prostituição como sobrevivência, não poderia? 

“A vadiagem era o controle sobre a gente”, lembra a Sobrevivente. “Mas a Mishely, minha melhor amiga, trabalhava num salão de beleza e também foi presa”. Por que isso aconteceu com Mishely se ela tinha comprovação de emprego? Se apelava para o enquadramento como “atentado ao pudor”. Assim, se tirava as travestis de circulação (esse era o objetivo), se não fosse de um jeito, seria pelo outro, ainda reforçados pela chamada prisão cautelar em algumas localidades. [2]

“Na verdade, os travestis são considerados vadios por um juízo moral e não legal”, lembra João Silvério Trevisan[3]; a cruzada moral, policial/disciplinar, discursiva e midiática era contra o modo de ser travesti. 

“A automutilação – cortar pulsos e braços com giletes – era uma das nossas formas de luta para diminuir a violência”, lembra a Sobrevivente, que, se não fosse isso, teria sido estuprada mais vezes do que foi. E isso bem antes do surgimento da AIDS, quando a estratégia se tornou ainda mais eficaz.  

A Sobrevivente viu muitas delas saírem do país, a maioria para a França, principal destino à época. Ao longo do tempo, essa passou a ser uma das estratégias para escapar de tantos riscos, mesmo, em geral, de forma ilegal e sofrendo a deportação, muitos outros passaram a ser os destinos. Como afirma Raphaella, que está pedindo asilo no Reino Unido: “(….) não saí do meu país por escolha. Saí porque não queria morrer (…) Tenho plena consciência de que só cheguei aos 34 anos porque consegui juntar dinheiro, comprar passagens e escapar do Brasil em tempo”[4]. Não poderiam, de fato, as transexuais brasileiras que saem do país serem consideradas refugiadas, se correm risco constante e iminente da morte em seu próprio país? 

Terminado o regime, a Sobrevivente achou que a situação iria melhorar, que nada! As coisas continuaram na mesma! “E falavam tanto em redemocratização”, pensa ela. Aquilo que naquela época começou ainda não terminou.   

De lá para cá, a Sobrevivente viu avanços, principalmente no papel (leis), mas na prática não parece ter mudado tanto. E não mudou também o desejo dos homens pelas mulheres transexuais

Parece que continua valendo a afirmação: “(…) o que se observa é que nunca se teve tanto e o que há é praticamente nada”.[5]

Cassiano Ricardo Martines Bovo é Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e Ativista de Direitos Humanos na Anistia Internacional Brasil.
Notas:
[1] Dra. Alice Soares, advogada criminal, em entrevista (“Dois travestis, uma advogada: três depoimentos vivos sobre o sufoco”) no Jornal Lampião da Esquina, 1980, edição extra n.3.
[2] É a prisão provisória de uma pessoa pelo prazo de dez dias no máximo, sem autorização de um juiz.
[3] In Devassos no paraísoa homossexualidade no Brasil da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 420. Na época ainda se utilizava o artigo masculino nas referências às travestis. Com o passar do tempo, o tratamento no feminino se tornou uma bandeira de respeito à sua identidade de gênero.
[4] “Sou mulher trans e busco asilo no Reino Unido por medo de ser morta no Brasil”, in Marie Claire, 20 de fevereiro de 2020.
[5] MELLO, Luiz; AVELAR, Rezende Bruno de; BRITO, Walderes. Políticas públicas de segurança para a população LGBT no Brasil. Revista Estudos Feministas, v. 22, n.1, jan/abril, 2014, p. 315.

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