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27 DE FEVEREIRO DE 2020 | JOSÉ GERALDO COUTO
O veterano Ken Loach sempre foi um cineasta empenhado em examinar os efeitos da mecânica social sobre os indivíduos, bem como as reações de cada um deles dentro de sua escassa margem de manobra. Se na tragédia grega a vontade dos deuses restringia o livre-arbítrio dos homens, nos dramas de Loach essa restrição vem da estrutura da sociedade. É, em suma, um humanista de esquerda, mais precisamente marxista, que constrói suas narrativas críticas dentro dos marcos do drama realista.
Mais que uma estética, é um método. Em Você não estava aqui, novo filme do diretor, esse método atinge um alto grau de depuração e precisão. Acompanhamos passo a passo o calvário pessoal de um trabalhador de Newcastle, Inglaterra, e, ao mesmo tempo, o desvendamento de uma ideologia (a do empreendedorismo neoliberal), sem que o peso de um dos termos da equação esmague o outro.
O trabalhador em questão é Ricky Turner (Kris Hitchen) e a primeira coisa que nos chega dele é sua voz: ainda sobre a tela escura, ouvimos o resumo que ele expõe da sua vida profissional, em que fez de tudo um pouco, da escavação de poços à carpintaria, da alvenaria à jardinagem, antes de dizer que agora quer trabalhar por conta própria, “ser o próprio patrão”. Trata-se de uma entrevista, e a primeira imagem que vemos é a de seu interlocutor, um homem que o contrata para ser, em resumo, um entregador franqueado de mercadorias.
Perdedores e guerreiros
“Vejo que você é um guerreiro”, diz o homem, “e o mundo está dividido entre perdedores e guerreiros. Aqui você não trabalha para a gente, mas junto com a gente. Não bate cartão, não tem metas a cumprir, faz seu próprio horário”. Ricky, que rechaçou com orgulho o seguro-desemprego a que teria direito, aceita empolgado as condições. “Estou esperando há décadas uma oportunidade assim”, declara.
O restante do filme dedica-se a desmontar pacientemente esse discurso e esse entusiasmo. Por meio de um mergulho na família de Ricky – a esposa cuidadora de idosos, o filho adolescente que vive criando encrenca na escola, a filha pequena que se ressente cada vez mais da ausência dos pais – somos levados a presenciar os estilhaços desse processo na vida de cada um e na convivência familiar.
Há talvez um excesso de ênfase em alguns momentos, um certo didatismo ostensivo aqui e ali. Por exemplo: numa conversa logo no início, um colega mais experiente entrega uma garrafa de água vazia a Ricky, para ser usada numa emergência urinária, e fala sobre o perigo de dormir na direção. Algumas cenas adiante, tanto a garrafa como o cochilo na direção terão um papel importante na história. Ricky, afinal, trabalha dezesseis horas por dia, tem pouco tempo para dormir, e menos ainda para urinar. Mas a intenção político-pedagógica não chega a comprometer o frescor e a fluência da narrativa.
São talvez os personagens “secundários” que impedem Você não estava aqui de ser apenas um libelo contra o neoliberalismo, ou melhor, que humanizam e enriquecem esse libelo. Quando o interesse de Loach pelas pessoas o leva a examinar a sociedade – e não o contrário – é quando seu cinema se torna mais efetivo e contundente.
Subversão das regras
Na personagem de Abby (Debbie Honeywood), a mulher de Ricky, redescobrimos que o trabalho não precisa se resumir a sua dimensão monetária, de custo-benefício, mas pode também ser algo dignificante, significativo e enriquecedor, um campo em que, por meio de suas ações, o indivíduo comunga com o outro e com a humanidade toda. Esse sentido elevado do labor humano – que dá vida ao clichê “o trabalho enobrece o homem” – é resgatado lindamente na trajetória de Abby de casa em casa.
O filho adolescente Sebastian (Rhys Stone), por sua vez, indica uma potência para a criatividade e o prazer sufocada pelas expectativas castradoras de uma sociedade “de resultados”. Por fim, a pequena Liza (Katie Proctor) não é apenas a criança-vítima que volta a urinar na cama quando a situação fica tensa, mas também a força de candura e invenção que, ao acompanhar o pai no trabalho uma única vez, muda radicalmente o astral e ameaça implodir todo o sistema de exploração.
Uma das cenas mais felizes – em todos os sentidos – é aquela em que, subvertendo todas as regras, a família toda vai levar a mãe, na van do pai, para atender a uma emergência na casa de uma idosa. Ali se juntam prazer, arte (a música compartilhada), afeto, solidariedade – e trabalho – de um modo que até então parecia impossível.
É para essa utopia a um só tempo modesta e grandiosa que esse cineasta de 83 anos parece apontar com seu renitente humanismo.
Tarde para morrer jovem
É de um outro tipo de utopia – a da vida em comunidade junto à natureza, longe do alvoroço das cidades – que trata Tarde para morrer jovem, da diretora chilena Dominga Sotomayor Castillo, ela própria uma jovem de 33 anos.
O ano é 1990, o último da ditadura Pinochet, e um grupo de famílias se reúne numa comunidade nascente no sopé dos Andes para comemorar o Ano Novo. Discute-se, entre outras coisas, se as casas devem contar ou não com energia elétrica, e se a água do riacho é boa para beber ou já está poluída o bastante para exigir que seja fervida.
Se fosse apenas uma discussão ou sátira do sonho hippie, ficaria a dever ao sueco Bem-vindos (2000), de Lukas Moodysson. Mas se trata menos disso que de um “romance de formação” constituído de pequenos ritos de passagem.
É um filme coral, desprovido de uma narração consecutiva e cerrada, com o olhar da diretora se dispersando sobre um punhado de personagens adultos, adolescentes e crianças. A construção aparentemente solta, elíptica, é marcada pelo rigor dos enquadramentos e por uma manipulação da luz que ressalta a interação entre personagens e ambiente natural, ao mesmo tempo em que, por meio de um esmaecimento cromático, cria uma atmosfera de tempo passado, de nostalgia agridoce (a fotografia é de Inti Briones, o mesmo dos brasileiros Vazante e Exilados do vulcão).
Os nexos entre os personagens, bem como seus conflitos, vão se esboçando por meio de fiapos de conversas, de cenas truncadas que parecem começar no meio da ação e terminar antes que esta se resolva, numa estratégia narrativa que lembra os primeiros filmes de Lucrecia Martel – só que com mais doçura, menos acidez.
Busca da identidade
A ambientação um tanto fluida, na beira de uma floresta, perto de um vilarejo, com as montanhas ao fundo, acentua a sensação de soltura. Aos poucos se destaca a trajetória de alguns personagens. O adolescente Lucas (Antar Machado) se enamora da amiga Sofia (Demian Hernández), que por sua vez está interessada num forasteiro mais velho. Enquanto isso, a pequena Clara (Magdalena Tótoro), de dez anos, procura angustiadamente sua cachorra perdida. Quando aparentemente a recupera, já não sabemos ao certo se é a mesma criatura. Terá sido trocada? Terá mudado no convívio com outra família?
A imagem da cachorra correndo numa novem de poeira no início e no final do filme indica que essas perguntas talvez não sejam ociosas. No fundo, o que está em questão nessa bela crônica de um verão – na qual a água e o fogo exercem um papel central – é a questão da identidade e da sua transformação no contato com os outros e com o ambiente circundante. Não é pouca coisa.
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