RETROSPECTIVA 2012
Por Ivone Zeger
O conjunto de leis de um país forma o grande espelho da sua cultura e sociedade; assim também as alterações em seus textos formam como que um mosaico a mostrar quais são as atuais demandas da população e as cores e configurações daquilo que está por vir. Quanto mais essas mudanças estiverem no mesmo ritmo e compasso das demandas sociais, mais eficiente se mostrarão as instituições.
É verdade que naquilo que se relacionou à Família e Sucessão, o ano de 2012 foi marcado por uma abertura fenomenal por parte dos operadores do Direito. Já o Legislativo, com imobilidade similar a de um paquiderme, com morosidade motivada por interesses pessoais e de bancadas, mais uma vez, agiu como se fosse possível tampar o sol com a peneira, obrigando o Judiciário a se manifestar para que a sociedade não se sentisse aviltada. Foi assim, por exemplo, no episódio da descriminalização do aborto no caso de fetos anencéfalos.
E se em 2011 o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu a legalidade da união civil entre homossexuais, neste ano, por analogia, em pelos menos três estados — Alagoas, São Paulo e Bahia — houve movimentação para tentar regulamentar o casamento civil homoafetivo, com as mesmas regras do casamento heterossexual. Nota-se que o Poder Legislativo não é capaz de dar andamento aos projetos de lei existentes.
Na mesma toada, ou seja, sem uma mobilização concreta e efetiva dos que elaboram as leis, a sociedade dá andamento a outra questão não menos importante: a ortotanásia e o testamento vital.
Vamos rever os episódios. De acordo com o Código Penal brasileiro, o aborto é crime. Apenas deixa de sê-lo se a gravidez ocorreu em função de estupro ou se incorre em risco de morte para a mãe. No texto da lei, não se aborda a questão da anencefalia. Para que não houvesse delito criminal, a mulher grávida nessas condições deveria recorrer judicialmente e esperar a sentença do juiz. Em muitos casos, a permissão para o aborto era expedida quando a gravidez já havia terminado, portanto, depois do parto.
No dia 12 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu, por 8 votos a 2, que o aborto em caso de anencefalia não é crime. Sendo assim, grávidas de fetos sem cérebro poderão escolher se desejam ou não seguir com a gravidez e, no caso de optarem pelo aborto, não serão criminalizadas. Desde então, a gestante só necessita entrar com recurso judicial caso não seja atendida na necessidade de interrupção da gravidez, seja advinda do hospital, do médico, ou de algum órgão público. Vale ressaltar que o aborto de anencéfalo é optativo, ou seja, pais que desejarem ter seus filhos nessas condições deverão receber toda a assistência necessária.
Na época da votação, pelo menos dois projetos de lei tramitavam no Congresso Nacional e ainda estão lá. Um deles é do senador Morazildo Cavalcanti (PTB-RR), que dispõe acerca da não punição do aborto no caso de feto com anencefalia, se precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Esse PLS (Projeto de Lei do Senado) tramita desde 2000 e, segundo o autor, “foi um projeto que não andou por pressões e lobby de diversos setores religiosos”. Na Câmara, é o projeto da deputada Jandira Feghali (PC do B-RJ) que tramita desde 2004; analisado com relativa presteza na Comissão de Seguridade Social e Família, está empacado na Comissão de Constituição e Justiça desde 2005.
Algo similar vem ocorrendo com a ortotonásia e o testamento vital. O Projeto de Lei de 6.715/09, que propõe a alteração do Código Penal, tornando a ortotanásia lícita é do senador Gerson Camata (PMDB-ES) e tramitou por nove anos no Congresso até ser aprovado em dezembro de 2011. Para tanto, foi impulsionada por resoluções do Conselho Federal de Medicina, que não só liberam eticamente os médicos, mas sugerem que não sejam utilizados recursos que extenuem ainda mais o paciente terminal.
Quanto ao testamento vital, também é uma resolução do CFM o recurso utilizado para liberar os médicos a aceitarem as declarações por escrito dos pacientes em estado terminal. Estas declarações até podiam ser feitas em cartório antes da resolução, mas nem mesmo o próprio declarante tinha a certeza se sua opção por morrer naturalmente, sem interferências excessivas, seria atendida.
O Projeto de Lei do Senado, PLS 524/09, também do senador Gerson Camata, está em discussão no Senado e desta vez parece que de fato estão se atendo ao tema. O trabalho gira em torno de conceituar expressões como “paciente terminal”, “procedimentos paliativos e mitigadores de sofrimento”, “cuidados básicos ordinários” e “procedimentos desproporcionais e extraordinários”. Obviamente que a discussão é importante para dar limites às alterações. Mas quase uma década, como no caso do PL 6.715/09, é tempo demais para a discussão de um tema, seja ele qual for, e obriga as instituições, no caso o Conselho Federal de Medicina, a tomar as rédeas da situação.
Outro avanço no Direito de Família tem acontecido totalmente à margem do Poder Legislativo. Trata-se de dar legalidade aos casais homossexuais. Em 2011, foi o STF que, pressionado por pedidos de casais e por questões que envolviam pensões para parceiros do mesmo sexo, acabou por colocar em votação a legalidade da união civil homoafetiva, aprovando-a em maio. Ainda em outubro de 2011, o mesmo STF autorizou o primeiro casamento entre parceiros do mesmo sexo, quando os ministros da 4ª Turma rejeitaram decisão anterior do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul contrária à pretensão de duas mulheres desse estado.
De lá para cá, e ao longo deste ano, não pararam de chegar notícias de registros de casamentos civis homoafetivos. Na Bahia, por exemplo, desde dia 26 de novembro de 2012, casais do mesmo sexo podem se casar em qualquer cartório do estado. Para tanto, provimento solicitando a adequação dos cartórios foi assinado pela desembargadora Ivete Caldas, corregedora-geral da Justiça e o desembargador Antônio Pessoa Cardoso, corregedor das comarcas do interior do estado da Bahia.
No que se refere à formação dessas novas famílias, provavelmente, os próximos anos prometem muita discussão e polêmica com as constituições familiares poliafetivas. Quem trouxe a questão para os meios jurídicos e para a mídia foi a tabeliã Claudia do Nascimento Rodrigues, paulistana que atua na cidade de Tupã, no interior de São Paulo. Ela lavrou uma “escritura pública declaratória de união estável poliafetiva”, a pedido de um homem e duas mulheres. Nela, foram estipuladas cláusulas para pensão, comunhão de bens e separação, oferecendo certo amparo jurídico aos declarantes.
O trio é do Rio de Janeiro e recorreu ao cartório em Tupã por causa do conhecimento e militância da tabeliã Cláudia. Ela estuda o tema das uniões poliafetivas em tese de doutorado na Universidade de São Paulo e afirma que há inúmeros casos como o dessas pessoas no Brasil. Esse será um dos maiores desafios, daqui para frente, para os que trabalham com o Direito de Família.
Já no que se refere às questões de parentalidade, o STJ surpreendeu em maio deste ano com decisão inédita: determinou que um pai pagasse R$ 200 mil para a filha. O motivo foram danos morais causados por abandono afetivo. A filha moveu processo em Sorocaba, cidade paulista. Lá, foi julgado improcedente. Já em segunda instância, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu R$ 450 mil. Em recurso final ao STJ, este reduziu a indenização para R$ 200 mil, valor a ser corrigido desde 2008. “Amar é faculdade, cuidar é dever”, disse a relatora do processo, a ministra Nancy Andrighi. Nova polêmica, pois se costuma imaginar que sentimentos, por não serem quantificáveis, não entram na mesma ordem de tudo aquilo que pode ter valor monetário.
Uma vez que o afeto vem se tornando o ponto mais discutido no Direito de Família, operando uma verdadeira transformação nos moldes patrimonialistas do nosso Código Civil, é o momento de se discutir como ressarcir a falta dele. Discussão similar às causas que envolvem danos morais por calúnia ou agressões, por exemplo, cuja indenização em dinheiro é sempre colocada em xeque. Porém, a tendência é tê-la como substancialmente importante.
Na medida em que se vive numa sociedade capitalista e que gira em torno, justamente, de retribuições pecuniárias, quantias em dinheiro podem, sim, diminuir os danos causados por ações que geraram malefícios não contáveis e subjetivos. Mas, ao que tudo indica, esse assunto certamente acarretará “queimadas de pestanas” dos juristas.
Se há um tom geral que marcou o ano de 2012 é a reafirmação da laicidade do Estado, ainda que sob pressões de uma sociedade, em parte, notadamente conservadora e de grupos de políticos que dizem agir em favor dos que prezam os valores éticos e os bons costumes, mas que não ousaram, sequer, trazer à luz o entendimento que têm acerca daquilo que combatem. Fala-se em humanização das leis, por conta de temas que avançam nas questões da subjetividade, e é possível verificar esse processo, especialmente no Direito de Família.
É importante que se tenha em mente que humanizar as leis é fazer com que uma das mais nobres características do ser humano prevaleça: a razão.
Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão, integrante da Comissão de Direito de Família da OAB-SP e autora dos livros Herança: Perguntas e Respostas e Família: Perguntas e Respostas.