Quantos passarão fome nesta ceia de Natal? (Sim, culpa é um sentimento cristão)
Leonardo Sakamoto
Maria deu à luz sob o olhar insuspeito de uma vaca e um jegue – figurante sempre presente nessas ocasiões há quase dois mil anos. José acompanhava a cena de perto, amparado pelas paredes de barro e um cigarro de palha. A fumaça esbranquiçada fugia pela porta e fundia-se à paisagem queimada de sol. E a pele do bebê à lavoura, que morreu ainda no pé por carência d`água. Mal presságio… Ao contrário da outra criança – do outro José com a outra Maria – não recebeu reis, muito menos presentes. Compartilhavam o fato de seu destino já estar escrito.
Os anos se passaram e ela cismou em ficar do mesmo tamanho. Talvez por causa da água e da comida. Ou da falta de ambos. Certo mesmo é que adoeceu. O pai, desesperado, correu de um lado para o outro e levou-a para se tratar. Diarréia, olhar longo, profundo, perdido. Os doutores fizeram o que podiam e mandaram-na de volta para casa. Naquela tarde, rastejou pelo chão da sala, agonizando. Maria avisou ao marido que a criança estava indo embora. Mas sabiam que de nada adiantaria, pois há tempos a fome vinha comendo-a por dentro. Então, José, resignado, foi à cidade fazer a única coisa que estava ao seu alcance: pedir uma caixão emprestado, prática comum por aquelas bandas.
Já trouxe esta história antes, em outro Natal. Mas a pedido de leitores, posto novamente, atualizando as informações. Particulamente, não gosto de recontá-la, mas parece que a vida não se importa de repeti-la. Tanto que a cena se reproduziria mais cinco vezes na família Bezerra (que tive a oportunidade de conhecer durante uma reportagem anos atrás). Outros personagens, mesmo roteiro.
Assim como eles, muitos Josés e muitas Marias enterraram a fome de seus filhos pelo Nordeste brasileiro. No rádio e na TV ainda chegam notícias de que o motivo disso tudo são as secas, que castigam o sertão de tempos em tempos, como a que assolou a região este ano.
Mas os simples cordéis, pendurados nos varais das feiras livres nos finais de semana, contam mais a verdade. Remexendo neles, achei que exemplifica: “Doutor, vixe, água não é o problema! / Aqui com a seca e com jeitinho nós se arresolve / O que dói mesmo e é difícil de entender / É a falta de terra, disso ninguém se comove / Falta não, me corrijo antes de tudo / Tem muita por aí, mas é do coroné o seu uso”.
De acordo com o relatório “O Estado da Segurança Alimentar no Mundo”, lançado este ano pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) e pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA), o Brasil reduziu o número de pessoas subnutridas de 23 milhões (1990-1992) para 13 milhões (2010-2012). Nos três últimos anos, a queda foi de 15 para 13 milhões.
Quase 870 milhões de pessoas (uma em cada oito almas do planeta) estão sofrendo de desnutrição crônica de acordo com as Nações Unidas.
Os programas sociais de distribuição de renda e suas ações correlatas, programas de Saúde da Família, além das atividades de organizações da sociedade civil como a Pastoral da Criança, melhoraram a fome por aqui. Sem contar a geração de empregos e a própria estabilidade econômica. A quantidade de pessoas em situação de inseguração alimentar caiu, mas ainda temos 13 milhões de subnutridos – mais do que a população do município de São Paulo.
A cantilena é antiga, mas garantir terra e, principalmente, condições de produção, com apoio técnico, irrigação e financiamento, e facilitar o escoamento das mercadorias é uma das soluções poderosas não pontuais para o problema na região rural. Sem contar que isso ajuda a garantir mais alimentos na mesa do brasileiro – uma vez que a pequena agricultura familiar é responsável por boa parte dos produtos in natura que consumimos. Hoje a maior parte dos recursos e das prioridades ainda passa longe desse pessoal, por mais que a atenção dada eles tenha crescido nos últimos tempos.
O problema é que tanto na história cristã quanto no caso de José e Maria descrito acima, do sertão de Alagoas, as coisas aconteceram como previsto. A diferença é que não é tão difícil reescrever o fim das histórias curtas, que se encerram precocemente, como as do segundo caso. Avançamos, mas precisamos fazer a parte que falta para que a história mude de vez e casos de desnutrição infantil seguidos de morte não ocorram.
Essas famílias podem até ser ignoradas pelo “céu”, que não manda a chuva, mas se estrepam mesmo é com a ação direta do pessoal de carne e osso (que está de olho em suas terras ou sua força de trabalho), a inação do Estado e a complacência de muitos de nós. Adoramos culpar as velhas oligarquias nordestinas, mas esquecemos que elas deram sustentação para todos os governos desde redemocratização. Sem contar o fato de que o sul Maravilha lucra sim com essa estrutura de exploração. Ou você acha que o seu tanque de etanol é realmente limpo e barato com esse exército de trabalhadores rurais temporários superexplorados que se esfolam na cana aqui e ali?
Perdoem-me. O objetivo deste texto não era fomentar a culpa em um dia de festas – apesar de ser um sentimento bastante presente entre os cristãos e que não leva a lugar nenhum. Mas lembrar que comemorar significa também “lembrar junto”. Ter em mente que nossa caminhada é longa, mas não fará lá muito sentido se chegarmos lá sozinhos.
Enfim, Feliz Natal às mulheres e homens que não ficam apenas na boa vontade.
http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/?p=16296
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