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Ausência de políticas públicas e rejeição familiar violam direitos humanos
Em fevereiro de 2015, o mundo conheceu a história de Leo, o recém-nascido portador de Síndrome de Down na Armênia que foi rejeitado pela mãe após o parto.  O pai se recusou a abandona-lo e a mãe pediu o divórcio. A história foi divulgada no Brasil pelo senador Romário Faria, um dos principais ativistas pela inclusão de pessoas com deficiência no País. Em novembro de 2014, um episódio ainda mais dramático chegou aos noticiários mundiais: crianças em uma instituição pública para pessoas com deficiência na Grécia eram mantidas trancafiadas em jaulas. Jaulas, como se fossem animais! Essa sequência de acontecimentos em países europeus colocou em pauta uma questão de enorme importância que, contudo, é frequentemente esquecida: a proteção de direitos humanos de pessoas com deficiência.
Recapitulando visões sobre deficiência
Durante séculos, mesmo em países desenvolvidos, a deficiência era vista como algo degradante e motivo de vergonha. Em 1913, o Reino Unido aprovou uma lei conhecida como Ato de Incapacidade Mental, que autorizava que pessoas com problemas mentais fossem mantidas em instituições questionáveis. O Ato resultou na internação de mais de 40 mil homens e mulheres. Na Alemanha Nazista, Hitler pregou o extermínio não somente de judeus, como também de pessoas com deficiência. Até a década de 1970 na Europa e Estados Unidos, a deficiência era vista como problema (impairment, em inglês) físico ou mental. Esta visão é conhecida atualmente como o “Modelo Médico” (Medical Model), que significa, por exemplo, que se uma pessoa é surda, sua deficiência é a surdez.
Em 1975, o Modelo Médico foi questionado pelo movimento inglês Union of the Physically Impaired Against Segregation (UPIAS), cujo objetivo era mudar o pensamento da sociedade britânica sobre deficiência. O UPIAS propôs uma diferenciação entre os termos impairment disability, argumentando que o primeiro é “falta ou falha de um membro, órgão ou mecanismo do corpo humano” edisability (deficiência) é a “restrição em uma atividade causada por organizações contemporâneas que não levam em consideração pessoas com problemas físicos ou mentais e, assim, os excluem da vida social”.
Esta definição ficou conhecida como o “Modelo Social de Deficiência” e tornou-se a forma oficial de abordar o assunto no Reino Unido e, posteriormente, em outros países desenvolvidos. O Modelo Social gerou uma série de políticas e projetos que tinham como principal objetivo melhorar provisão de serviços públicos sociais. Apesar de ter sido uma evolução, atualmente o modelo é criticado por focar exclusivamente na parte social de inclusão, deixando de lado aspectos importantes como programas de prevenção e reabilitação.
Tais críticas levaram ao desenvolvimento de abordagens mais multidimensionais, nas quais a deficiência é vista como o mal infligido às capacidades dos indivíduos, resultantes de restrições do ambiente social e de problemas oriundos de seuimpairment. Essa visão abre espaço para programas e políticas públicas mais humanas, que priorizem não apenas as necessidades do grupo como um todo, mas também atentam para o preconceito e outras necessidades do dia-a-dia provocadas por cada impairment. Deve-se notar que em português, assim como em muitas línguas, ainda não há diferença entre deficiência e impairment.

Tily adora nadar. Foto: Andreas Photography / Creative Commons / Flickr
Tily adora nadar. Foto: Andreas Photography / Creative Commons / Flickr

O papel do preconceito na vida de pessoas com deficiência
Em muitos países em desenvolvimento, deficiências são encaradas como algo vergonhoso, como uma maldição ou até mesmo uma punição de Deus. É comumpessoas esconderem familiares com deficiência em casa, impedindo-os de ter uma vida em sociedade. De acordo com o especialista Modjeh Bayat, “na maioria dos países africanos, crianças com deficiência são praticamente invisíveis na sociedade e existe pouca ou nenhuma informação oficial sobre elas”. Uma vez que muitas destas pessoas são mantidas em casa, não há dados confiáveis nem mesmo em Censos nacionais. Ou seja, quase nada se sabe sobre como vivem indivíduos com deficiência em muitos países.
Mesmo quando não há vergonha, existe um senso comum de que pessoas com deficiência são incapazes de viver uma vida normal. O problema começa porque, segundo a especialista Sarah Irwin, a “independência [financeira e social]é altamente valorizada, enquanto dependência é vista como algo bastante problemático”. Portanto, devido à falta de estrutura em países em desenvolvimento, pessoas com deficiência são altamente dependentes de suas famílias. Adultos que não são financeiramente independentes acabam normalmente marginalizados, reforçando o sentimento de vergonha e da noção de incapacidade.
Estas noções geram uma série de problemas. O primeiro é o impacto do preconceito na formação da personalidade de pessoas com deficiência. A vergonha da família acaba gerando um processo dialético, no qual a ideia de incapacidade (ou maldição) é internalizada pela pessoa. Tendo ouvido durante toda sua vida que são incapazes e um fardo aos familiares próximos, indivíduos com deficiência internalizam esse sentimento de inferioridade e, consequentemente, estão mais suscetíveis a problemas de baixa autoestima.
Atualmente, em muitos países da África e Ásia (ou em países europeus), o pior preconceito vem da própria família, que considera uma vergonha ter um parente com deficiência. A personalidade das crianças com deficiência, que contam com parentes adultos para quase tudo em seu cotidiano, é significativamente influenciada pelo preconceito destes parentes. Dado que crianças em seus primeiros anos de vida são altamente influenciadas pelo ambiente familiar, elas em geral desenvolvem baixa autoestima e questionam suas capacidades. Ademais, o preconceito contribui para que estas crianças não frequentem escolas, não recebam tratamento médico adequado (o que muitas vezes acaba piorando seu quadro médico) e gera um ciclo vicioso entre vergonha, sentimento de inferioridade e exclusão social.
Na Costa do Marfim, pais escondem crianças com deficiência em casa por acreditarem que “qualquer morte, doença ou desastre natural pode ocorrer por conta de uma maldição infligida naquela comunidade, resultado do espírito maléfico de seu filho”. Na Tanzânia em 2013, 70 crianças foram encontradas escondidas em casa por seus pais na região norte de Kilimajaro. Os pais confessaram que, por vergonha, as crianças eram trancadas desde o nascimento e seus movimentos eram restringidos para que vizinhos não soubessem de sua existência.
Em Uganda, Martha de 16 anos, abandonou a escola porque outras crianças recusavam-se a falar com ela e até mesmo a humilhavam por conta de sua deficiência visual. O comportamento dos alunos era incentivado por professores e familiares, que acreditavam que Martha era amaldiçoada. Portanto, estas crianças escutam durante grande parte de suas vidas que são incapazes ou amaldiçoadas. Logo, acabam reproduzindo esse sentimento em suas vidas, como Martha, que abandonou a escola.
O segundo problema é a ausência de políticas públicas específicas. Uma vez que há vergonha, não há incentivos da população para que o governo desenvolva programas sociais voltados a este grupo populacional. O resultado é visto em indicadores sociais: dois terços das crianças que estão hoje fora da escola em países em desenvolvimento possuem alguma deficiência. A situação é ainda mais problemática para meninas, que precisam lidar também com o preconceito de gênero.
Mesmo em casos menos extremos, pais ainda consideram que garantir a educação de filhos com deficiência não gera benefício, uma vez que não se crê que estes conseguirão arrumar emprego mesmo tendo frequentado a escola. Como educação é, em geral, tida como a única forma de se atingir independência financeira e dado que a maioria das pessoas com deficiência é dependente de parentes, as famílias tendem a acreditar que educar crianças com deficiência é inútil. Nota-se uma tentativa de reverter esse quadro por parte das próprias crianças. Em estudo conduzido em Ghana e na Tanzânia, crianças declararam querer estudar “para demonstrar capacidade e conquista numa sociedade que esnoba seu potencial”.
Nesse sentido, a educação é a chave para mudanças. Garantir educação para meninos e meninas com deficiência promove a noção de cidadania e um senso de compartilhamento de direitos com pessoas não deficientes. Da mesma forma que existe um ciclo vicioso entre preconceito e dependência, também pode haver um ente educação e autonomia. Como defendido pelo ganhador do Prêmio Nobel, Amartya Sen, promover educação de qualidade para crianças com deficiência é um mecanismo para garantir sua liberdade de viver uma vida autônoma, para ser visto por outras pessoas como iguais e para verem a eles próprios como cidadãos e indivíduos plenamente capazes.