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segunda-feira, 6 de julho de 2015

Precisa-se de pianos

Olavo Barros
Jornalista-cinéfilo. Arte e política em prol dos Direitos Humanos
Publicado: 
Um grande artista não nasce espontaneamente. Trata-se de um processo lógico, e longo: oportunidade, estudo, dedicação, inspiração. Acredito que, por mais que existam pré-disposições biológicas que impulsionam nossas habilidades durante a vida, sem um construto social adequado, todo esse potencial fica latente, incubado. E pior: pode acabar no lixo.
Aí está um excelente exemplo:
Na última semana, o Netflix agraciou seu público, no qual me incluo, com o documentário What happened, Miss Simone? que narra a trajetória artística da intitulada "grande sacerdotisa do Soul", Nina Simone.
Negra, pobre, mulher, nascida numa sociedade extremamente conservadora e segregada, Nina tinha todos os precedentes para ser alguém que, como sua mãe, empregada de famílias brancas, estaria destinada a se casar, ter filhos e construir, com muito esforço, o mínimo de dignidade para si e seus familiares. Isso sendo otimista.
Eis que surge a oportunidade: senhoras brancas de classe média viram na criança de apenas 4 anos um potencial promissor. Assim, instruíram-lhe: aulas de piano clássico, horas e mais horas de estudo diário, deram a pequena Nina a possibilidade de sonhar. Esforçava-se para ser a primeira negra concertista de piano clássico da América. Idealização que, mais tarde, tomaria outros contornos, mas que em certa medida se realizaria.
Desde lá, sentiu sobre si o peso da diferença racial. A primeira vez que se sentiu discriminada? Quando os pais foram deixados na última fileira em uma de suas apresentações na igreja. Impôs-se, aí, também pela primeira vez: ou os pais sentavam próximos a ela, ou não haveria espetáculo. Apenas uma da série de discriminações que sentiu na pele.
Ainda assim, Nina resistiu. Por mais que a rejeitassem, ninguém poderia lhe usurpar o talento. Ela cresceu ao som das notas que arrancava do piano e isso a constituiu como artista e, sobretudo, como ser humano. Não existe Eunice Waymon (seu nome de batismo) sem a música, tão pouco Nina Simone.
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O peso da negritude, com o passar do tempo, debruçou-se sobre ela. A revelação da persona política de Nina é, para mim, o ponto alto do documentário. Foi a politização que mudou radicalmente sua maneira de encarar a própria arte. Sua carreira foi infestada de tal forma pela política que chegou a um ponto em que era impossível separar militante e artista. Seu temperamento forte tornou-se ainda mais agressivo. Sonhava pegar em armas, derramar sangue e construir um EUA negro. Satirizava, ridicularizava e até desprezava o branco como forma de insurgência. A indústria, portanto, a rejeitou, permanecendo durante anos no ostracismo.
O exemplo da grande artista é bastante revelador. Endossa a tese de que, por mais que idolatrizemos grandes figuras, intelectuais ou quem quer que seja, é preciso entender que há uma construção por trás deles, que os levou a ser quem são. A arte de pessoas como Nina é grandiosa porque é próxima de nós; sua temática é universal e atemporal: justiça, dignidade, respeito, liberdade. Quem não quer, quem não sonha?
Em tempos de obscurantismo e manobras que desviam nossos olhares das causas para nos focarmos em consequências, a beleza e força política de figuras como Nina Simone ainda nos motiva a sonhar. Artistas grandiosos, ainda crianças, estão à espera de um piano em suas vidas, assim como Nina esteve um dia.
Qual será a visão política de mundo que iremos apoiar: a de cercear ou a de estimular? Nossas futuras estrelas aguardam ansiosamente pelo nosso posicionamento.

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