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terça-feira, 15 de março de 2016

Aborto no caso de gestante infectada pela doença Zika: impossibilidade

02/03/2016 por Roberto Wanderley Nogueira 

“Na minha opinião de observadora e jornalista, acredito que o ser humano é capaz de evoluir e surpreender – e o aborto excluiria oportunidades de se conhecer melhor a microcefalia e melhorar a qualidade de vida de muitos, que como eu, são capazes de superar as barreiras impostas pela vida.”  (Ana Carolina Dias Cáceres, jornalista de Campo Grande-MS, nasceu com microcefalia em março de 1991 [https://www.linkedin.com/pulse/minha-vida-com-microcefalia-meus-pais-me-ensinaram-e-dias-c%C3%A1ceres].

A proposta de letiminação do aborto em função do diagnóstico de microcefalia já não precisava sequer ser enfrentada empiricamente, devido a um depoimento absolutamente irrefutável como o da jornalista Ana Carolina Dias Cáceres, acima transcrito. Nada obstante, importa sempre considerar que a vida humana não guarda parâmetros de objetivação classificatória: umas que podem evoluir e prosperar, outras que já não podem por motivos que escapam à vontade do excluído da própria vida. Esse falso dilema é afastado pelo direito inalienável e universal à dignidade de todos e de cada um que, concebido, embora indesejado, merece experimentar a existência, racionalmente falando. Quando a um ser humano se põe a salvo, é a humanidade que se salva como um todo. Quando a um ser humano se trucida, é a humanidade que se vai mutilando em sua diversidade. Trata-se de autofagia que não se pode compreender e menos ainda aceitar, sobretudo por motivos  exclusivamente eugênicos.

Noutro texto deste prestigioso veículo, eu afirmava que entre a desgraça de uma gravidez de fruto limitado ou indesejado, o reconhecimento de toda essa dor e o suposto direito de escolher sobre o que fazer com esse fruto humano vital segue-se uma grande diferença entre polos que jamais convergem, pois refletem barreiras atitudinais que são o princípio da exclusão sem causa racional ainda ativado em nossa quadra, em que a luta pela inclusão social parece mesmo retórica. O tema é recorrente e teima em recrudescer ao primeiro sinal de alguma avelhantada novidade. As dores do mundo são contingências objetivas as quais por vezes se tem de aceitar humilde e ao mesmo tempo corajosamente. A solução abortiva não serve para nada, sobretudo em função de motivações não determinadas por uma relação de causa-e-efeito, porque não se pode medir as frustrações entre a situação anterior e posterior a essa prática, e também porque não é certo eliminar a vida de um semelhante só porque se está numa situação difícil ou simplesmente intolerada.

Para aqueles que julgam que a corporeidade feminina é um valor em si mesmo, um dado algo postestativo e não consubstancial às circunstâncias da própria existência pessoal ou gerada pela gravidez, deve-se pôr em debate os valores jurídicos estimados pela Ordem Legal brasileira que ativismo algum será capaz - jamais! - de descontruí-los, conquanto pré-jurídicos e em nada condizentes às especificidades empíricas de um objeto que, natural, se pretende regular, entretanto, de forma antinatural, contrária, pois, à ordem mesma de sua substância e ao conteúdo material das normas jurídicas. Um completo non-sense.

Em primeiro lugar, é preciso descrever que o aborto é uma conduta ilícita sob tutela penal no país, devido ao fato de que a dignidade da vida humana, mesmo a do nascituro, é objeto de sua proteção e salvaguarda incondicionais, nos termos da Constituição da República (artigo 1º, inciso III e 5º, caput) e do Cód. Civil (artigo 2º), marcos legais de proteção da condição humana vital.  Por isso mesmo, as hipóteses, únicas e jamais extensíveis, preconizadas nos incisos I e II, do artigo 128, do Código Penal, tratam de isenção de penalidade, mas não de exclusão da ilicitude dos delitos de aborto necessário (salvar a vida da gestante) ou piedoso (resultante de estupro). Nestes casos, o agente não será penalizado por razões de política criminal, haja vista os dramas humanos vivenciados nessas situações especialíssimas, que não excluem, outrossim, a ilicitude de origem. Apenas não se justifica a imposição penalística, devido à explosão de sentimentos e padecimentos que essas mesmas situações suscitam.

Desse modo, não há previsão legal para a prática do aborto em função da deficiência proveniente do diagnóstico de microcefalia, ou de qualquer outro registro de enfermidade limitadora do nascituro. Antes o contrário: trata-se de violação constitucional, haja vista caráter discriminatório da conduta em particular. As pessoas com deficiência, bem como os nascituros com deficiência geracional ou genética, não importa, estão salvaguardados, além do mais, pelas diretrizes de base constitucional preconizadas na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto Federal 6949/2009), o qual foi internalizado no sistema jurídico interno com status de emenda constitucional, resultando tratar-se de um concerto de cláusulas pétreas descritivas de Direitos Humanos (Decreto Legislativo 186/2008, e artigo 5º, §3º, da Constituição Federal). Adicionalmente, os mesmos preceitos foram recentemente corroborados pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015). A deficiência humana deixou de consistir uma referência clínica (modelo médico) e assumiu, corretamente, uma categoria social (modelo intersubjetivo) que lhe passou a definir a condição legal, a dizer: universal. Disso decorre que deficiência é a limitação permanente de qualquer natureza medida sob qualquer causa ou grau de intensidade que na interação com diversas barreiras pode causar obstrução ao exercício pleno de direitos individuais em igualdade de condições com as demais pessoas (ver artigo 1, da norma convencional e o artigo 2º, da LBI). Dentre essas barreiras, as de tipo atitudinal são de longe as mais perversas, porque orientadas pelo desfundamento que se chama preconceito. Onde quer que o preconceito atue e se torne eficaz, a discriminação é a pauta da convivência social e o caos é o seu resultado, porque as soluções para os conflitos deixam de ser jurídicas, previsíveis, racionais.

Diante disso, pode-se serenamente afirmar que aborto seletivo em razão da deficiência do feto constatada mediante teste pré-natal é tanto imoral quanto inconstitucional, qualquer que seja o quadro. No caso de um diagnóstico de microcefalia não chega o argumento a sequer pretextar tal hipótese de abominação jurídica, pois o conforto da mulher não afirma um suposto direito de dispor da vida de outrem, também e principalmente se este for o próprio feto. A deficiência não denigre a vida quer do feto, quer da mãe. Se a deficiência não é funcionalmente severa, caso da microcefalia, o argumento perde, então, qualquer laivo de sustentabilidade, porque baseada apenas na vontade de não parir um ser com diferenças. 

A conclusão é pela rejeição da proposta, pois o aborto pela razão de um diagnóstico fetal-microcefálico é atitude claramente eugênica, porque nada sugere que o feto, uma vez vindo à luz, vá morrer necessariamente (hipótese em que o argumento da mãe encontraria algum sentido moral, ainda que muito remotamente). O propósito de ter filho com o crânio mais ou menos graúdo é uma banalidade completa e sinalização para um exercício cínico de acomodação social com esteio na indisposição para enfrentar dificuldades que decorrem das vicissitudes da vida.

Deixa-se aqui de considerar o resultado da ADPF 54, pela qual o STF, absurda e inconstitucionalmente, “legitimou”, por maioria, o aborto de fetos anencefálicos por dois motivos distintos: a solução encontrada não é extensiva a outras situações; o assunto está sujeito ao controle de convencionalidade e a um veredicto do Comitê da ONU para os efeitos da aplicação concreta nos Estados-partes da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, nos termos do seu Protocolo Facultativo (também internalizado com status de emenda constitucional), o que importa na circunstância de que a Suprema Corte não detém a última palavra nessa matéria.

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