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segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Homem com H - por Lucélia Braghini, psicodramatista do SOS Ação Mulher e Família, para Wall Street International

Sobre o modelo tradicional de masculinidade

9 JAN 2017 por LUCÉLIA BRAGHINI

Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come
Porque eu sou é home
Porque eu sou é home
Menino eu sou é home
Menino eu sou é home
E como sou!

(Estrofe da Canção de Zeca Baleiro interpretada por Ney Matogrosso, 2012)

Acima a sátira do cantor Ney Matogrosso ao interpretar a canção “Homem com H”, referindo-se em tom jocoso sobre como a exigência da coragem e outros imperativos no desempenho do papel do homem idealizado pela nossa cultura castram e aniquilam a personalidade masculina.

Certamente minhas palavras partem de um viés. O olhar feminino, embora treinado (sou psicóloga que atende homens autores de violência no SOS Ação Mulher e Família em Campinas, SP), que tenta apreender o masculino em suas manifestações, queixas e ansiedades. Mas ainda assim, atrever-me-ei a esboçar alguma reflexão sobre o tema.

Não há como partir para a especificidade da questão da violência sem antes tentar delinear o contexto mais amplo - a cultura a que pertencemos -, visto que uma coisa está estreitamente ligada à outra.

Ser homem na cultura brasileira nos dias de hoje trata-se de um desafio e tanto, visto que partimos, antes de mais nada, de uma pluralidade sem falar das especificidades do fenômeno em si.

Em pesquisa realizada por mim sobre as identidades masculina e feminina (Braghini, 2001), ouvi doze homens e doze mulheres residentes na região de Campinas, SP, e um dos resultados encontrados sobre o tema foi que a influência dos mandatos de gênero e dos conceitos tradicionais de homem e mulher na formação da identidade (a cultura antiga) ainda se mostra uma poderosa fonte de influência e persiste concomitantemente às tendências dos novos tempos, sendo esta heterogeneidade o padrão dominante.

Lembrando que ser ‘homem’ na cultura antiga consiste em:

Ser o provedor econômico da família;

Ser o reprodutor;

Tomar decisões em família;

Tomar a iniciativa nas relações sexuais;

Conseguir ter, ou ter tido, a mulher amada;

Dar ‘porrada’, se necessário;

Protegê-la mesmo que ela declare que não quer ser protegida;

Fazer os trabalhos braçais;

Impor regras, colocar limites para o outro e para si mesmo;

Enfrentar situações sem se desesperar;

‘Comer mulheres’;

Conquistar respeito e admiração;

Ser responsável pelos seus atos;

Ter corpo robusto e falar com voz grossa;

Ser livre, astuto e dono de si. (Cuschnir, 1992)

Segundo Schreiner (2008), pode-se considerar violência de gênero não só a violência cometida contra as mulheres, mas toda forma de conservação das identidades arbitrariamente atribuídas a homens e mulheres, independente de sua identidade sexual e de gênero. Portanto, sujeitar os homens a reproduzir os papéis de dominação, autoritarismo e violência contra a mulher também se caracteriza como violência de gênero. Durante toda a vida do homem lhe são apresentados questionamentos acerca de seu comportamento sexual, exigindo-lhe posturas agressivas, determinadas, dominadoras. Acreditar que todo homem oprime e que toda mulher é oprimida, é a regra num discurso amplamente difundido e reproduzido.

Na realidade, a sátira do cantor Ney Matogrosso, ao reiterar “Porque eu sou é Home!” “Sou homem com H”, ao mesmo tempo em que revela o descalabro da imposição de um dogma em uma sociedade cristalizada, revela a distância em que o nosso homem comum se encontra desse paradigma, alguém que como qualquer ente humano “é humano”, e como tal, possui suas fragilidades, seus pontos fortes e fracos.

Cuschnir (1992) ressalta que da infância à vida adulta, o homem incorpora componentes estruturais referentes ao que é masculino, ao que é ser homem. São valores tão fortes e repetitivos, que passam a ser sentidos como perenes e se impregnam do poder e da influência de um ‘mito’.

Nesse estrangulamento de sua personalidade, sem poder dar vazão aos seus sentimentos mais profundos e no constante chamamento da expressão da agressividade/violência como manifestação de virilidade, muitos homens acabam se tornando de fato violentos.

O caso de Pedro, homem autor de violência por mim atendido, ilustra bem essa situação.

Em produção gráfica realizada, Pedro expressa o fenômeno da violência como um furacão que apresenta forma humana - ele tem braços fortes e dentes afiados - e aparece do nada levantando e quebrando tudo. Em seu furor, o furacão se avoluma e acaba atingindo um fio de alta tensão, provocando uma explosão. Raios são deflagrados. Em seguida, “vem um braço de uma nuvem, que leva tudo” e uma tempestade então vem coroar essa sequência de fatos avassaladores, descreve Pedro em seu desenho. Nota-se que é grande seu potencial destrutivo. Pedro confessa que quando se vê ‘tomado’ por este furacão, não tem controle sobre o que faz. Ele (o furacão) tem capacidade de raciocínio, mas não tem freios, diz ele.

Por outro lado, Pedro também traz dentro de si um menino que conheceu muito cedo o sentimento de fracasso. Na escola havia outro menino que o incomodava, pois vivia se envolvendo em brigas e apanhando. O pequeno Pedro resolveu chamar o parceiro para briga, “talvez para mostrar ou provar alguma coisa para alguém”, observa o homem adulto. Foi marcada a briga. Pedro levou a pior. Continuando a remexer no passado, meu cliente lembra que também não fazia sucesso com as meninas. Costumava ser a sombra dos outros. Mas tinha bons amigos. O menino era inteligente, mas não persistente. “Eu sinto um pouco de pena dele”, diz o homem adulto, referindo-se ao menino dentro de si. E acrescenta: “Ele se sente inseguro e não aproveita o seu potencial. Não aproveita como poderia a fase que está vivendo. Ele precisa perder a vergonha, a inibição, o medo, a insegurança. Tenho vontade de tentar ajudar o menino, mas não me sinto capaz. Tenho medo de tentar ajudar e fracassar. (Pedro levou o sentimento de fracasso para a vida adulta). Acho que tive uma repressão muito forte por parte do meu pai. Isso cria uma insegurança”, conclui.

A contribuição de Pedro é muito valiosa se formos nos remeter ao Homem com H de Ney Matogrosso. O Homem com H representa todo o estereótipo e o ranço de uma cultura machista. Vimos, através de Pedro, que dentro deste homem aparentemente tão forte e poderoso se esconde um menino assustado, envergonhado e com profundos sentimentos de insuficiência.

Se conseguirmos dar voz ao menino, certamente o estaremos ajudando, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido para os homens, o caminho da conquista da verdadeira autoafirmação, que certamente passa por assumir as próprias fragilidades e conseguir se fazer respeitar apesar disso e com isso.

Cuschinir (1992) reitera que, quando deixam cair a máscara do ‘super-macho’ que pode bancar tudo, os homens se mostram desamparados, abandonados, débeis, super exigidos, solitários, amedrontados. Não é só a mulher, mas toda a sociedade que lhes cobra esse hercúleo poder.

O homem está começando a descobrir agora que ser homem também é entrar em contato com as emoções e buscar um encontro genuíno com o outro, o qual pode ser o filho, o amigo, a mulher.

Na atualidade, o homem está despertando para a insatisfação, permitindo-se não ter vontade de trabalhar, permitindo-se não ‘paquerar’ por obrigação, não pagar todas as contas e mesmo assim continuando a se sentir um homem forte e não um ‘frouxo’.

Recriar o papel de homem e se sentir à vontade sendo aquilo que se é. Eis a questão.

Referências bibliográficas:

Braghini, L. – Masculino e Feminino num Estrato cultural brasileiro: mandatos de gênero e expressões simbólicas arquetípicas, 2001. [Tese – Doutorado – Universidade Estadual de Campinas].

Cuschnir, L. - Masculino/feminina. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, 1992.

Schreiner, Marilei Teresinha. O Abuso Sexual numa Perspectiva de Gênero: o processo de responsabilização da menina, 2008. (Tese - Mestrado - Universidade Federal de Santa Catarina).

Lucélia Braghini
Psicóloga psicodramatista, atua no SOS Ação Mulher e Família desde o ano de 1984. Doutora em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Autora do livro “Cenas repetitivas de violência doméstica: um impasse entre Eros e Thanatos”. Perfil completo

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