Este ano a Lei Maria da Penha completa 12 anos. Considerada pela ONU uma das três melhores legislações para enfrentamento à violência contra as mulheres do mundo, é um dos raros exemplos brasileiros de leis construídas para e por mulheres. Doze anos depois, somos levadas a pensar sobre as conquistas e os desafios na tarefa de garantir segurança e cidadania a todas as mulheres.
A Lei Maria da Penha é inegavelmente uma conquista. Sua formulação e implementação são resultados de nossos debates, das nossas lutas e resiliência. Aquelas que, entre nós, são um pouco mais velhas, se recordam de que a violência doméstica não era um tema que movia a sociedade brasileira. Dizia-se “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.
Com a Lei Maria da Penha, demos nome à violência que se escondia na privacidade de nossos lares e obrigamos o Estado brasileiro a reconhecer o seu papel na prevenção e no enfrentamento às violências que limitam a nossa existência. Dados divulgados pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo Data Popular, em 2013, afirmavam que 98% da população brasileira conhecia a Lei Maria da Penha. A Lei evidenciou como a violência doméstica era naturalizada no Brasil e, como diria Audre Lorde, lembrou às mulheres que nossos silêncios não nos protegem.
Reconhecido o papel fundamental da Lei Maria da Penha na desnaturalização da violência doméstica e na construção da cidadania das mulheres, devemos também reconhecer que a LMP tem sido efetiva apenas na proteção da vida e na garantia de cidadania de um grupo muito específico de mulheres. Encaramos, outra vez, os abismos das desigualdades brasileiras. Quem são as mulheres cujas vidas estão sendo protegidas por nossa legislação? Dados do Mapa da Violência afirmam que, entre 2003 e 2013, a taxa de homicídios de mulheres brancas caiu 10% e a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 54%. Ou seja, o balanço da Lei Maria da Penha também demonstra nossas deficiências institucionais em lidar com as diferenças e as desigualdades.
A violência contra as mulheres é endêmica no Brasil, mas mulheres pretas, mulheres pardas, mulheres indígenas, mulheres lésbicas, mulheres bissexuais, mulheres trans, meninas, mulheres idosas, mulheres pobres, mulheres periféricas, mulheres camponesas e mulheres com deficiência são alvos de violências distintas; seu cotidiano encontra-se atravessado por inúmeras situações de violência que ainda falhamos em reconhecer e nomear.
Segundo dados (subnotificados) da Secretaria de Segurança Pública e da Paz Social do Distrito Federal, este ano já foram registrados 21 feminicídios e 7.169 casos de violência doméstica. Em 27 de agosto, Maria Regina Araújo, trabalhadora doméstica, mulher preta, foi assassinada por seu ex-marido, Eduardo Gonçalves de Souza, com 20 facadas. A filha de 8 anos do casal testemunhou o assassinato e foi quem chamou vizinhos e vizinhas para socorrer a mãe. Dez dias antes, Maria Regina Araújo havia procurado proteção judicial, mas o sistema de justiça brasileiro disse que seu caso tratava-se de desgaste de convívio marital.
Quem é responsável pela morte de Maria Regina? Alguém irá cobrar o representante da justiça brasileira que negligenciou sua função protetiva e afirmou que Maria Regina não tinha capacidade de diferenciar ameaças violentas a sua vida de desgaste de convivência marital? E a menina? Quem se encarregará de acolhê-la e protegê-la? O judiciário brasileiro responderá pelos traumas gerados pelo desgaste de convivência marital? O caso de Maria Regina é representativo da prática sistemática do Estado de desqualificar e subestimar a denúncia e o testemunho da mulher em situação de violência doméstica.
Os efeitos do feminicídio são diversos e não cabem em nossas estatísticas: famílias se desestruturam; crianças perdem suas mães; avós, avôs ou tias assumem a tutela dos filhos e filhas da vítima. E não existem políticas públicas adequadas para acolher e auxiliar essas famílias.
Em memória de Maria Regina Araújo e das demais vítimas de feminicídio no DF este ano, centenas de mulheres, organizações e coletivos feministas seguirão em caminhada até o Palácio do Buriti, hoje, sexta-feira (14/9). Estamos vivas, estamos juntas e somos o centro de qualquer política possível. Reivindicamos justiça, mas também reivindicamos prioridade na destinação de recursos públicos para as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Distrito Federal.
O orçamento público deve priorizar a aplicação efetiva da Lei Maria da Penha, por meio de uma Rede Especializada de Atendimento às Mulheres eficaz e estruturada. Uma rede com equipamentos públicos descentralizados – centros de atendimento psicológico, centros de atendimento social, DEAMs – que alcancem as mulheres das periferias e do campo. No DF, a rede de atendimento à mulher em situação de violência ainda é insuficiente, principalmente nas áreas rurais. Temos apenas uma DEAM e uma Casa Abrigo. A Casa da Mulher Brasileira está fechada, devido a problemas de infraestrutura. Precisamos de recurso público para poder oferecer, à filha de Maria Regina, atendimento psicológico, acolhimento, sustento e proteção.
Nossa atuação política está direcionada para garantir investimento em políticas de moradia e renda, para que mulheres saiam da esfera de domínio de homens que se comportam mais como seus donos do que como seus companheiros; em formação qualificada de juízes, agentes do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos profissionais da saúde e da educação; em projetos educacionais que discutam gênero e sexualidade nas escolas, com crianças e adolescentes; em ações de diálogo com adultos autores de violência, com o intuito de construir um outro tipo de masculinidade, que não tenha em seu repertório apenas a violência como resposta às contrariedades.
Lutamos pela responsabilização dos agentes públicos que forem tolerantes com a discriminação e a violência contra as mulheres. Lutamos pelo estatuto do desarmamento, porque sabemos quem serão as vítimas destas armas. Lutamos por políticas públicas que reconheçam o valor de nossas vidas!
Sexta-feira, 14 de setembro, no dia em que se completam 6 meses da execução de Marielle Franco, lutamos por verdade, por memória e por justiça. Seguimos o exemplo de Marielle, lutamos pela vida das mulheres.
Ilka Teodoro é advogada, sócia do primeiro escritório de advocacia feminista do Distrito Federal e candidata a deputada distrital.
Laura Gonçalves é cientista social e doutoranda em Sociologia/UnB.
Raquel Lasalvia é cientista social, jornalista e mestranda em História/UnB.
Nenhum comentário:
Postar um comentário