Presidenta da Women’s Link, Viviana Waisman aposta em um futuro judicial que aborde crimes sexuais sem preconceitos, com perspectiva de gênero e uma educação transversal
ISABEL VALDÉS
Madri
El País
Não há margem para a dúvida, a resposta é rápida e contundente. A justiça precisa se adaptar às mudanças sociais recentes? “É totalmente urgente.” É o que diz Viviana Waisman, fundadora e presidenta da organização internacional Women’s Link, que trabalha a partir do Direito para melhorar a vida de meninas e mulheres. Aquelas que, aponta em algum momento da conversa, não são um grupo, mas a metade da população. Mulheres que sofrem violência física, psicológica e sexual a cada dia —a OMS define esse flagelo como um grave problema de saúde pública e a ONU estima em 35% a proporção de mulheres que são submetidas a estes maus-tratos—, que continuam sendo assassinadas, vendidas e compradas, mutiladas e exploradas, proibidas de abortar, de sair na rua, de mostrar o rosto, de se divorciar, de dirigir, de decidir.
Essa realidade varia de acordo com a região, a cultura, a religião e a educação: “A discriminação e a violência não conhecem fronteiras, classe social, etnia, raça nem nada”. E a única maneira de erradicá-la, de acordo com Waisman, é perceber que é algo que acontece em qualquer lugar, a qualquer momento. Na Espanha, onde o 8 de março foi espelho e reflexo internacional do crescimento do movimento feminista e da luta social, também há problemas não resolvidos: um estupro acontece a cada oito horas, o debate sobre a prostituição está aberto, as barrigas de aluguel dividem a opinião pública, o número de queixas de violência machista bateu recorde no ano passado (166.620) desde que o Conselho Geral do Poder Judiciário as contabiliza, e uma comissão de especialistas estuda uma reforma do Código Penal e do Código de Processo Penal relacionado com crimes sexuais —questão fundamental para o avanço na luta contra a violência sexual.
“É evidente que quando não há consentimento, existe um estupro, e não é apenas dizer sim ou não que dá o consentimento”, afirma a advogada especialista em direito internacional dos direitos humanos e de gênero, referindo-se ao anúncio que o Governo espanhol fez em julho propondo que qualquer ato sexual sem um ‘sim’ expresso seja considerado crime, uma mudança na linha da Suécia para que existam garantias de que os tipos de agressão sexual não dependam da interpretação dos juízes. “Aconteça o que acontecer, as situações sempre têm de ser interpretadas, porque as situações e as palavras sempre são interpretáveis. Devemos tentar que não façam discriminações em suas demandas —não pedir para ter uma testemunha quando não há ou não assumir que as pessoas estejam mentindo, que é o que acontece muito agora quando se denuncia—, mas não acredito que a solução seja escrever um Código Penal que pretenda que não haja uma interpretação das situações, isso não levará a uma justiça a ninguém.”
Enquanto essa transformação social se estende a todas as áreas, a Women’s Link continua trabalhando a partir da análise das decisões e procurando brechas legais para impulsionar esse novo caminho. “Sem dúvida, como a justiça é administrada, o que os juízes e juízas fazem para tornar os direitos uma realidade, afeta diretamente a vida das mulheres, das meninas, de suas famílias e de toda a comunidade e a sociedade”, repete Waisman como um mantra de vez em quando, entre várias chaves para a mudança que têm de acontecer no campo judicial.
E uma das primeiras é definir o que é violência: “É a forma mais extrema de discriminação contra as mulheres. Quando se começou a falar sobre violência de gênero, limitava-se apenas à violência entre pessoas de sexos diferentes em um relacionamento de casal”. No entanto, acrescenta, a violência de gênero é algo muito mais amplo do que isso e pode vir de muitos lugares: “Existe a violência de gênero que é estrutural e é exercida por instituições, por exemplo”. A falta de especialistas em lidar com as vítimas ou o fato de questioná-las quando denunciam são exemplos desta última, algo que tem de mudar e que, segundo Waisman, passa por duas coisas que devem acontecer ao mesmo tempo: “Por um lado é preciso melhorar os quadros jurídicos. E por outro, a sociedade, e especialmente o Poder Judiciário, tem que tomar consciência dos estereótipos e preconceitos que usa ao aplicar o Código Penal”.
Os juízes e juízas, pessoas como qualquer outra, cercadas pelos mesmos padrões machistas que qualquer outra, “não são como a estátua que sempre vemos da justiça, que tem uma venda, isso não é verdade”. Ela está convencida de que se uma mulher denuncia um estupro, em vez de colocar o foco na pessoa que pode ter cometido o crime, este recai sobre o que ela fez ou deixou de fazer, questionando tudo [como ela estava vestida, se estava sozinha ou acompanhada, se tinha bebido, se havia tido outras relações sexuais anteriores e com quantas pessoas], não teremos nenhum avanço.
O próximo passo óbvio é a educação. “É preciso educar e devemos educar para além do Poder Judiciário”, aponta. Waisman se refere a uma consciência coletiva capaz de gerar uma sociedade na qual não apenas se diga às meninas para terem cuidado quando saírem na rua, mas que seja uma educação estendida a todos, também uma educação sexual para todas as pessoas. “Além disso, é muito importante que haja mulheres presentes, em todos os cargos que existem e em todas as áreas, mas isso não garante uma perspectiva de gênero”. Acredita que é importante separar os debates: “Deve haver mulheres presentes? Sim, lembre-se de que as mulheres não são uma minoria, somos a metade da população”. Mas quando perguntada se isso é suficiente, a resposta é não. “Também não devemos aceitar que não há homens capazes de aplicar a perspectiva de gênero, porque sabemos que eles existem, e também sabemos que existem mulheres que ditam as piores sentenças, as mais estereotipadas que já vimos.”
Para orientar o caminho, Waisman propõe um diálogo que vá além do que acontece nos tribunais. “Não é suficiente criar jurisprudência se quando se leva um caso como o do grupo La Manada (‘a manada’) não se cria também um debate público sobre o que está acontecendo e o que pensamos que deve acontecer. Às vezes fortalece os movimentos sociais existentes e às vezes os cria.” Algo que aconteceu no caso dos abusos cometidos durante as festas de São Firmino em 2016: “havia um momento social já existente, o feminismo, que foi retroalimentado pelo que aconteceu e fez com que muitas mulheres e homens, jovens, fossem às ruas para pedir a justiça fosse feita de maneira diferente".
Este caso, diz a advogada, também é um bom exemplo de outra conversa que deve acontecer, a do Poder Judiciário e outros poderes —as manifestações e protestos sobre como a justiça foi feita levaram o Executivo a formar uma comissão para rever o Código Penal. “E também do importante papel da sociedade civil para que os direitos sejam implementados da maneira que nós, mulheres e homens, queremos para viver em um mundo mais justo.”
Os direitos recolhidos em nossos códigos e também nos que vêm de fora: “Existe muita dificuldade para incorporar padrões que podem ser criados em outros países, por acordos ou por jurisprudência, e entender que são um benefício para a sociedade. Waisman dá o exemplo do caso de Ángela González, com o qual a Women’s Link lidou há alguns anos: “Acompanhamos Ángela em sua luta por justiça. Por negligência do Poder Judiciário na Espanha, sua filha de seis anos foi assassinada por seu agressor. Ela buscava responsabilizar o Estado pela negligência que causou a morte da filha”. Quando a comissão da ONU condenou a Espanha neste caso, a Espanha não aceitou que essas decisões eram vinculantes: “Eles estavam dando um roteiro para melhorar a situação, mas o Supremo Tribunal teve de vir dizer aquilo, quando na verdade era uma oportunidade de melhora".
Em todas estas idas e vindas de passos para frente e tropeços para trás, Viviana Waisman vê luz, algo a que também se referiu durante a conferência que fez na segunda-feira na Caixaforum, em Madri, sobre a capacidade do Direito para ajudar a alcançar a igualdade: “As coisas vão e vêm em diferentes partes do mundo, há decisões muito boas em países onde as pessoas se surpreendem e decisões muito ruins no norte global (Europa, EUA, Reino Unido...), todas as sociedades têm algo a trabalhar. Estamos vivendo um momento que me dá muita esperança, porque a força com que as pessoas estão saindo, especialmente os jovens, as mulheres jovens, para exigir seus direitos é o que vai produzir a mudança”.
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