Por Mauro Ferreira, G1
É sintomático que o 48º e último álbum de Angela Maria tenha sido inteiramente dedicado ao cancioneiro de Roberto Carlos – grande admirador, aliás, da voz desta cantora fluminense. Como Roberto Carlos, Angela Maria soube traduzir no canto as emoções do povo brasileiro.
Por isso, ele é o Rei para o público adulto que vem acompanhando a trajetória do cantor. Por isso, ela sai de cena aos 89 anos, mas fica como eterna rainha do canto popular nacional. Reinado que começou na era do rádio, nos anos 1950, e enfrentou declínios de popularidade, sobretudo na década de 1960, mas terminou soberano, vitalício.
A artista nasceu com o nome de Abelim Maria da Cunha (13 de maio de 1929 – 29 de setembro de 2018) e morreu no fim da noite de ontem, em hospital da cidade de São Paulo (SP), como Angela Maria, uma das cantoras mais populares do Brasil em todos os tempos.
Basta citar esse nome composto, sem sobrenome, que o Brasil identifica a identidade da Sapoti, apelido dado a Angela por um presidente do país, Getúlio Vargas (1882 – 1954) – fato que ajuda a dimensionar a importância e o sucesso de Angela na década de 1950, era do rádio e também era do bolero e do samba-canção, gêneros recorrentes no repertório inicial da cantora.
Angela virou Sapoti porque o presidente detectou doçura no canto da artista. O Brasil também se identificava com a voz de mezzo-soprano lapidada pela filha então adolescente do reverendo Albertino Coutinho da Cunha em coros de igreja da religião batista.
No início da carreira da intérprete, essa voz rara atingia altas notas agudas na escala musical, como Angela mostrava sempre que cantava Babalu (Margarita Lecuona, 1939), carro-chefe do repertório da artista desde que ela gravou o mambo cubano em 1958.
Nos tempos outonais da maturidade destes presentes anos 2010, década em que Angela voltou a gravar e lançar discos com regularidade por obra do produtor Thiago Marques Luiz em sequência iniciada com o álbum não por acaso intitulado Eu voltei (2011), os agudos deram lugar a graves condizentes com a idade de cantoras da faixa dos 80 anos.
Mas continuou intacto o poder de interpretar com precisão os dramas folhetinescos descritos nas letras de Vida de bailarina (Chocolate e Américo Seixas, 1953), Balada triste (Douglas Vogeler e Esdras Pereira da Silva, 1958) e Fósforo queimado (Paulo Menezes, Milton Legey e Roberto Lamego, 1953) – para citar somente três músicas dos anos 1950 que atravessaram o tempo na voz referencial de Angela Maria, cantora que inspirou colegas do porte de Elis Regina (1945 – 1982).
Última remanescente das grandes cantoras da era do rádio, Angela Maria por muitas vezes pareceu cantar com lágrima na voz. O que reforçou o laço invisível que ligava a cantora à alma e ao coração do povo brasileiro.
Por evocar as emoções básicas do ouvinte, a Sapoti amargou muitas vezes o desprezo da crítica e das elites culturais. Não raro, foi vista, ouvida e interpretada – no calor da hora – como uma cantora de aura kitsch. Cafona, em bom português. Sobretudo nos anos 1960, década marcada pela expansão da Bossa Nova surgida em 1958, pela aparição da MPB na plataforma dos festivais da canção e pela explosão do repertório pop da Jovem Guarda.
A cantora Angela Maria e Roberto Carlos: afinidades entre o 'Rei' e a 'Rainha' da era do rádio — Foto: Reprodução / Facebook
Não por acaso, é nessa década de 1960 que a discografia de Angela ficou mais irregular, com concessões ao mercado que culminaram em 1969 com a edição de álbum intitulado Angela em tempo jovem, tentativa vã de atualizar cantora de talento e voz atemporais.
A partir de 1975, ano do sucesso Tango pra Tereza (Jair Amorim e Evaldo Gouveia, 1975), a carreira de Angela começou a voltar para os trilhos habituais. Ela já não era a rainha do rádio e das paradas, pois a dinastia da MPB já estava no poder, mas voltou a ser respeitada, gravando discos condizentes com o estilo que entronizara a partir de 1951.
Com o passar do tempo, Angela foi ganhando cada vez mais respeito. Em 1987, Cazuza (1958 – 1990) a presenteou com a rumba Tapas na cara. Em 1996, a nata da MPB – Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan, Fafá de Belém, Gal Costa, Maria Bethânia, Milton Nascimento e Ney Matogrosso, entre outros – a reverenciou em álbum intitulado Amigos e aberto com a participação dele, o Rei Roberto Carlos, ali na condição de súdito desta eterna rainha do canto popular brasileira.
Abelim Maria da Cunha se foi, mas Angela Maria fica para sempre entronizada como cantora que soube dar voz às emoções do povo brasileiro.
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