Emanuela Cardoso Onofre de Alencar
Quinta-feira, 13 de setembro de 2018
Há alguns dias, escutei uma amiga afirmar que quem defende uma lei de prazos para o aborto incorre em uma incoerência: considera permitido interromper a gestação nas primeiras semanas, mas defende limitar ou proibir essa prática nas últimas. Em sua posição, a vida é um bem valioso que deve estar protegido em todas as etapas. Nesse sentido, o não nascido é merecedor de consideração durante todos os momentos, da concepção ao nascimento.
Essa posição gera uma pergunta: as legislações que reconhecem prazos para interromper voluntariamente a gestação, de forma legal e segura, se justificam por um argumento incoerente? As leis aprovadas, por exemplo, na Espanha e no Uruguai, permitem algo que carece de relação lógica? Que argumentos essas legislações oferecem para justificar sua posição sobre o aborto?
Neste texto, analiso um argumento oposto ao de minha amiga: que é possível justificar, de forma coerente, a interrupção voluntaria de uma gestação durante as primeiras semanas, mas limitá-la nas últimas. Essa posição considera que a autonomia da mulher e a vida potencial do não nascido têm valor, mas em nenhum dos casos se trata de um valor absoluto. Ambos devem ser ponderados e receber proteção diferente, dependendo do momento da gestação.
A gravidez e o nascimento de um filho são fatos que alteram profundamente a vida de um casal, especialmente da mulher, que é quem biologicamente tem a capacidade de gestar. No caso dela, a gravidez produz mudanças corporais, influi em suas decisões acerca de formação e trabalho e muda uma parte da rotina de sua vida. Essas mudanças continuam após o nascimento, especialmente porque se considera que ela é a principal responsável pela criação e cuidados do filho. Ainda que haja homens que compartem essa responsabilidade, há muita assimetria no reparto dessas tarefas. Referida as simetrias, também se verifica na responsabilização por uma gravidez indesejada, e com frequência esse ônus recai sobre ela.
Em virtude do impacto profundo que uma gravidez e o posterior cuidado de um filho causam na vida de uma mulher, a decisão acerca de levar a cabo uma gestação deve ser uma decisão íntima e pessoal dela. A autonomia da mulher como autodeterminação, ou seja, como a capacidade de decidir sobre a própria vida, é um aspecto de sua dignidade e um direito fundamental. É ela quem deve ponderar as consequências de ter ou não um filho e decidir o que fazer. E se opta por realizar um aborto, essa decisão deve ser respeitada.
A gravidez não é um processo estático. Produz uma relação particular entre a mulher e o não nascido que muda com o passar do tempo e gera interesses diferentes que requerem proteção distinta dependendo do período. Os Estados que permitem o aborto nas primeiras semanas, até a 12ª ou 14ª, reconhecem o valor da autonomia da mulher e estimam que é superior a qualquer consideração que se possa dar, nesse período, ao não nascido.
Quem mantém uma posição contraria ao aborto em qualquer momento vai arguir que desde a concepção há vida, razão pela qual não se deve abortar. Mas a pergunta relevante não é se há algum tipo de vida, senão que valor deve ser atribuído à forma de vida que possa existir nesse momento. Em vista do impacto que uma gravidez e o posterior nascimento de um filho causam na vida de uma mulher, outorga-se, nesse período inicial, mais valor a sua autonomia, pois é ela quem sabe as consequências que essa gestação pode ter em sua vida. E sua vida, com os projetos que a conformam, merecem consideração e uma maior proteção do que a vida em potencial, em suas primeiras etapas, de quem não nasceu.
Normas, como a espanhola, são conhecidas como “lei de prazos” porque dividem a gestação em três trimestres e outorgam proteção gradual e diferente a ambos em cada período. No primeiro trimestre, o aborto se aproxima mais à anticoncepção, e a autonomia da mulher tem um peso suficiente para receber maior consideração e proteção. Esse parece ser um período razoável para que ela possa refletir sobre a gravidez, suas circunstancias pessoais e seu projeto de vida, e decidir manter ou interromper a gestação.
Nos trimestres seguintes, o não nascido está em uma etapa mais avançada de desenvolvimento, e se considera que já é capaz de sentir (a partir do segundo trimestre) e de ser viável, ou seja, poderia sobreviver fora do útero da mulher (a partir do terceiro trimestre). Nesses períodos, limita-se a capacidade de decisão da mulher e outorga-se maior proteção ao não nascido. Mas essa proteção não é absoluta. Essas legislações preveem a possibilidade do aborto, observando certas condições, em casos, por exemplo, de riscos graves para a vida e a saúde da mulher e de anomalias ou doenças graves no não nascido.
Uma lei de prazos para a interrupção voluntária da gravidez é coerente porque outorga consideração e proteção a ambos, ainda que com uma diferença gradual dependendo do momento da gestação. Reconhece o valor da autonomia da mulher e sua capacidade de pensar criticamente sobre sua vida, a importância de suas decisões reprodutivas e permite-lhe decidir o que fazer. Estima-se que, dependendo de estado de desenvolvimento do não nascido, este é merecedor de maior proteção.
Defender uma posição distinta, mesmo que seja legítima, é não tratar uma mulher com respeito. É desconsiderar sua personalidade e sua vida, vê-la simplesmente como uma incubadora de quem nem nasceu. Como disse Mary Anne Warren, “[…] estender direitos iguais aos fetos é necessariamente privar as mulheres grávidas dos direitos à autonomia pessoal, à integridade física e, às vezes, à própria vida. Só há espaço para uma pessoa com direitos iguais e plenos na pele de um único ser humano.”[1] Essa pessoa é a mulher.
Emanuela Cardoso Onofre de Alencar é doutoranda na Facultad de Derecho da Universidad Autónoma de Madrid – UAM, docente e membra do Instituto Universitario de Estudios de la Mujer da Universidad Autónoma de Madrid.
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