No pequeno livro ‘Mulheres e Poder: Um Manifesto’, a acadêmica Mary Beard, a intelectual da moda no Reino Unido, entra em um dos debates mais intensos do momento
PABLO GUIMÓN
Cambridge
El País
Ver a grande especialista na Roma clássica conversando amigavelmente ao telefone com um funcionário anônimo da Fazenda é uma maneira, tão boa quanto qualquer outra, de se reconciliar com a humanidade. Como toda plebeia honrada, Mary Beard paga seus impostos. Ela tenta convencer o funcionário de que deve duas mil libras aos cofres públicos. A presença do jornalista não impede que Beard exiba suas intimidades fiscais e bancárias na mesa da cozinha de ar campestre de sua acolhedora casa em Cambridge.
Beard, de 63 anos, é a intelectual da moda no Reino Unido. Seu vasto conhecimento do mundo antigo e seu proverbial talento para a divulgação científica, mostrados em obras como SPQR, permitem-lhe contextualizar e focalizar de modo certeiro os debates contemporâneos. Isso é evidenciado em Mulheres e Poder: Um Manifesto, um pequeno livro que será lançado no Brasil em abril pelo selo Crítica, da Editora Planeta, e que, como o título anuncia, entra em um dos debates mais intensos do momento.
O funcionário examina a documentação e conclui que, longe de dever duas mil libras, Beard goza de um pequeno crédito a seu favor. Acontece que havia pagado a mais. “Caramba.” “Obrigado, obrigado.” “O senhor é uma joia.” Desliga o telefone sorridente e, para comemorar que é um pouco mais rica do que pensava havia cinco minutos, abre uma humilde garrafa de pinot grigio. Serve duas generosas taças e convida o intruso a ligar o gravador.
Pergunta. O primeiro exemplo documentado de um homem que manda uma mulher se calar está na Odisseia. Silenciar Penélope, sua mãe, faz parte do desenvolvimento de Telêmaco como homem?
Resposta. Precisamos entender que são problemas profundamente enraizados na história da cultura ocidental há milênios. Com isso, não quero dizer que estejamos presos neles, mas devemos buscar soluções diferentes. Quando você vê exemplos de mulheres silenciadas no mundo antigo, é fácil concluir que faz parte de uma discriminação geral. Mas o que a Odisseia mostra é que é mais do que isso. Para deixar de ser um menino e se tornar homem, Telêmaco deve aprender a calar as mulheres. É um silenciamento muito mais ativo. O poder do homem está relacionado com sua capacidade de silenciar as mulheres. Toda a definição da masculinidade dependia do silenciamento ativo da mulher.
P. Se as mulheres não são atraídas pelas estruturas de poder, por que a inércia histórica é mudar as mulheres e não as estruturas?
R. Pensamos nas estruturas de poder como masculinas e fazemos com que as mulheres se encaixem, que mudem de comportamento quando chegam ao poder. Acabam agindo, interpretando um roteiro. Não se deve mudar as mulheres, mas as estruturas. É preciso pensar o que é o poder, como falamos dele, como está conectado à celebridade, como são a imagem e a linguagem associadas ao poder. Veremos que é uma versão extremamente masculina. O poder é algo que você tem e eu não. Queremos grandes líderes. Não. O que queremos são grandes contribuintes. Quando vejo cursos de liderança na universidade, pergunto onde ensinamos as pessoas a serem seguidoras. Um grande líder e macho com uma pirâmide por baixo é uma das maneiras possíveis, mas não a única.
P. Está fazendo cem anos o momento em que as primeiras mulheres obtiveram o direito de voto em seu país, o Reino Unido, e o direito de serem eleitas deputadas. Mas há estudos que mostram que, até hoje, o papel das mulheres nos parlamentos continua sendo promover legislação sobre assuntos relacionados aos interesses tradicionalmente associados às mulheres.
R. E isso é bom. Alguém tem de defender as mulheres. Mas continua a deixá-las fora das estruturas masculinas de poder. Continuam sendo segregadas à seção de interesses femininos. Devemos ser gratos e, se eu fosse uma mulher no Parlamento, também iria querer me levantar pelas mulheres. Mas continua havendo uma diferença. As pessoas ouvem as mulheres quando falam sobre questões de mulheres de uma forma que não as ouvem quando falam de economia.
P. O primeiro livro que a senhora publicou, para além do âmbito acadêmico, era um manual para mães trabalhadoras (The Good Working Mother’s Guide, 1989).
R. É fácil, vou dizer por quê. Quando você tem filhos muito pequenos, você tem muito tempo, mas nunca em longos períodos. Meia hora aqui, 20 minutos ali. Você não tem tempo para pensar, mas tem vários intervalos de tempo. Eu procurava algo que pudesse escrever em pedaços. Você não pode escrever um artigo acadêmico com 20 minutos aqui, 30 minutos ali. Por outro lado, existe algo muito curioso ao ter filhos: você adquire uma grande quantidade de conhecimento e experiência prática e depois tudo isso vai para o lixo. Foi juntar esses pedaços de tempo com, de alguma forma, usar o que você conhece.
P. O que a senhora pensa da campanha global #MeToo?
R. Está sendo muito importante. As redes sociais são muito boas para começar as coisas, o problema é que uma hashtag não muda de fato nada. Se você quiser resolver o problema, não basta encontrar gente que o aponte no passado. Você deve mudar o equilíbrio de poder.
P. Em uma recente postagem do seu blog no The Times Literary Supplement, a senhora quis ressaltar a diferença entre o comportamento inadequado ocasional e o sistemático. Não defende a tolerância zero?
R. Não acredito na cultura da tolerância zero porque todos nós fazemos coisas estúpidas. Não quero um mundo em que ninguém jamais seja mal-educado! Mas também não quero um mundo em que as pessoas sejam sistematicamente inadequadas. Eu, em muitas ocasiões, fiz coisas inapropriadas. Eu não acho que deveria ser apedrejada por isso.
P. A senhora continuará a assistir filmes de Woody Allen apesar do seu suposto abuso das mulheres?
R. Gostei de filmes de Woody Allen desde que tenho memória. Há muitos aspectos dele que deploro. Mas irei para o túmulo pensando que Noivo Neurótico, Noiva Nervosa é um filme divertido. O que fazemos? É difícil saber. Isso é inaceitável, cara, mas você também faz bons filmes. Temos de ser muito mais sofisticados do que pensar que as pessoas são apenas boas ou más. É preciso encontrar uma maneira de lidar com alguém que é brilhante e horrível, como manifestar a nossa desaprovação sobre alguns aspectos da vida de alguém enquanto reconhecemos outros.
P. Lê-la e ouvi-la é entender que as respostas não costumam ser simples. Mas vivemos em um mundo que exige respostas simples.
R. Isso é complicado! Quem diz que isso é simples não pensou a questão a fundo. O papel dos acadêmicos, e também o dos políticos, é dizer que a complexidade é boa.
P. Quanta complexidade cabe em 280 caracteres?
R. Qualquer pessoa que use o Twitter, inclusive eu, diz coisas que realmente não quer dizer. Precisamos de um formato no qual as pessoas possam expressar dúvida e complexidade. Devemos melhorar a conversa.
P. Os extremos monopolizam certos debates nas redes sociais. Os mais moderados têm a responsabilidade de intervir?
R. As redes sociais não mudaram a maneira como as pessoas falam ou pensam. Quando eu era estudante, costumávamos dizer coisas horríveis dos nossos professores, mas dizíamos isso no bar. O Twitter amplifica, e isso é bom. O importante é que você não tem de dizer que minha vagina cheira a repolho para dizer que não estamos de acordo. Que horrível seria um mundo em que todos estivessem de acordo! Tenho opiniões muito fortes sobre muitas coisas, que se enquadram nos padrões do feminismo. Queria que todos estivessem de acordo comigo? Claro que não.
P. Sua atitude tornou-se uma referência para muitas mulheres que querem ser valorizadas por suas ideias e não por sua aparência.
R. É importante mostrar às pessoas que você pode ser mais velha e estar confortável. Claro que me incomodam certas coisas ruins que dizem sobre mim, caso contrário seria uma psicopata, mas não me afetam muito. E acho que é importante, especialmente para as moças jovens, ver uma mulher mais velha que está por aí, que diz palavrões, que fala sobre qualquer coisa e não é intimidada pelas pessoas que dizem para ela se calar.
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