Um olhar nada corriqueiro sobre a Odisseia, de Homero, é gancho para a historiadora britânica dar início a uma tese sobre como as mulheres são silenciadas desde a antiguidade
20.09.2018 - POR BÁRBARA TAVARES
Esqueça Ulisses e suas épicas aventuras rumo à Grécia após o triunfo na guerra de Troia. Em Mulheres e Poder: um Manifesto (Planeta, 128 págs., R$ 24,90), a historiadora britânica Mary Beard, 63, volta sua atenção a Penélope, fiel mulher do herói do clássico de Homero, e mãe do único filho do casal, Telêmaco – que, para mostrar que não é mais um menino, aprende a calar as mulheres, incluindo Penélope. “Mãe, volte para seus aposentos e retome seu próprio trabalho, o tear e a roca... Discursos são coisas de homens, de todos os homens, e meu, mais que de qualquer outro, pois meu é o poder nesta casa.”
Apontada pelo jornal inglês The Guardian como a intelectual mais admirada do Reino Unido, Mary se tornou figura pop por trabalhos que inspiraram séries na rede BBC. “Somos julgadas por padrões muito mais altos do que os homens. Os erros das mulheres representam o fim delas, enquanto os dos homens são relevados”, diz. Em visita ao Brasil no mês passado para o festival Agora É Que São Elas, Mary conversou com Marie Claire.
Marie Claire – Por que estudar o silenciamento das mulheres ao longo da história?
Mary Beard – Me interessei pelas conexões entre questões modernas e a força dos hábitos que herdamos das culturas antigas, mas não acredito que todos os problemas do mundo atual sejam culpa dos gregos e romanos, há outras raízes.
MC Era possível ser feminista naquela época?
MB Não. Todas as evidências que existem são parte do imaginário masculino, não há quase nenhum material escrito por mulheres. Podemos analisar a partir do que os homens escreviam – que é o que temos de concreto. Adoro ler as comédias gregas, em que as mulheres fazem todas essas coisas surpreendentes, como assumir o governo, ou tentar, em Atenas, impedir a grande guerra contra Esparta. Amo meus alunos por pensarem que isso era um sinal para o feminismo antigo [risos]. Mas acho que é, na verdade, um sinal de homens dizendo: “As mulheres sempre atrapalham”, zombando delas.
MC A homossexualidade era aceita no mundo antigo?
MB Com certeza havia muitas relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O que não é claro é se existia algum tipo de senso de identidade gay. A ideia de homossexualidade é uma forma de identificação que não tinha sido inventada até o século 19. O exemplo mais famoso é a poeta grega Safo, uma das poucas escritoras de que temos conhecimento. Em seus poemas, é claro que ela está envolvida com mulheres, mas existem muitas discussões de homens que vieram muito tempo depois para dizer que ela não era lésbica. O preconceito começou aí.
MC As pessoas não se identificavam como gays ou lésbicas?
MB Não parece que a orientação sexual era a principal característica de identidade. Uma visão provável da sexualidade masculina antiga seria dizer que eles se enxergavam como seres fálicos e penetrantes. Então às vezes penetravam homens, às vezes, mulheres, e às vezes, animais. Mas o senso de masculinidade não era definido pelo objeto do desejo, e sim pela atitude de penetrar.
MC Discursar em público era permitido apenas ao gênero masculino. Acredita que, à medida que as mulheres ganharem mais espaço, caminharemos em direção a uma sociedade sem gênero?
MB Quero que as mulheres tenham voz e desempenhem os papéis mais importantes na política. Então, quando me faço essa pergunta, penso: “Quero uma sociedade sem gênero?”. Não sei. Por exemplo, crianças aprendendo a tocar instrumentos musicais: não me importo se as meninas escolhem tocar flauta e os meninos, trombone, mas me importo se há sempre vagas melhores para o trombonista ou se ele ganha mais. Então o problema é quando a diferença de gênero está relacionada com privilégio, poder, dinheiro, sucesso, conquistas, respeito, autoridade.
MC No livro, você diz que os discursos femininos eram para tratar de assuntos relacionados à mulher. Como quebrar esse padrão?
MB Alguém tem de falar sobre os assuntos importantes para a mulher, mas menospreza o fato de que elas não têm espaço em outras esferas. Permitir que Hillary Clinton faça um discurso sobre os direitos reprodutivos das mulheres no terceiro mundo não significa que agora ela tem o direito de falar sobre os mesmos assuntos que os homens. Na política britânica, por exemplo, tivemos dois primeiros-ministros mulheres: uma realmente masculinizada e a atual provavelmente está lá porque nenhum homem quis o trabalho. Mas nunca tivemos uma ministra das finanças, uma ministra da defesa. Esse é sempre o trabalho do homem.
MC Grandes mulheres perdem sua voz e poder ao lado de grandes homens?
MB Sim! E a presidência americana é um dos exemplos disso. Veja o que Hillary Clinton teve de suportar. E Michelle Obama? Fica pior ainda com Trump: você tem ali [em Melania] uma boneca silenciada, que ocasionalmente ganha voz das mais estranhas formas. E, no fim, elas não são eleitas, são sempre os caras. No fundo, acho que eles têm algum tipo de medo de menstruação [risos].
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