Presas da Penitenciária Feminina da Capital aprendem a lidar com ansiedade, insônia e stress em aulas quinzenais de ioga. Envolvidas com a atividade, passaram a reproduzir os movimentos e meditar dentro das próprias celas. Acompanhamos uma das sessões e conversamos com as detentas sobre os benefícios – para o corpo e a mente – da prática
21.02.2019 | POR MARCELA PAES
"O silêncio está dentro da gente. Percebemos isso quando nos aquietamos e nos acalmamos.” A frase é dita pela professora Silvia Meirelles durante os cinco minutos de meditação guiada que conduz. Logo à sua frente, sentadas e de olhos profundamente fechados, estão 16 mulheres. A essa altura, as conversas paralelas do começo da prática dão lugar ao silêncio total, como o anunciado pela professora. Todas as alunas usam largas camisetas brancas de algodão e calças beges, também amplas, mas de um tecido firme como a sarja, e estão com os pés descalços. Este é o início de uma aula de ioga dentro da Penitenciária Feminina da Capital, no bairro do Carandiru, em São Paulo, onde cerca de 570 mulheres cumprem pena. Uma vez a cada 15 dias, as reeducandas, como as mulheres presas são chamadas pela administração, se alongam, se equilibram e meditam por meio de uma sequência de posturas ensinadas por Silvia, as ásanas.
Tudo acontece dentro da capela da instituição. Os bancos usados para oração são empurrados e os tapetes de ioga ganham espaço. As aulas, implementadas há um ano e meio na unidade, foram ideia da embaixada da Índia no Brasil, que financia o projeto – isso inclui pagar a professora e disponibilizar uniformes e os materiais necessários para a prática.
Josiane de Souza e Eliane Marcelino fazem parte da turma de ioga desde que o projeto começou, em 2016. As duas, que antes da prática mantinham uma conversa entusiasmada, se concentram totalmente durante a meditação. Posicionadas lado a lado no fundo do salão, fazem muitas das posturas que exigem um nível intermediário de alongamento sem esforço. É porque a dupla não perde as aulas de Silvia e, inclusive, costuma praticar dentro das celas.
“As meninas que não conhecem a ioga dão risada da minha cara porque fico na parte de cima da beliche fazendo as posturas, me esticando toda. Melhora tudo. Até o sono”, diz Eliane, de 45 anos. Ela está na cadeia por tráfico de drogas e já cumpriu sete dos 15 anos aos que foi condenada. Desenvolveu o hábito da meditação antes, quando cumpria pena em outra penitenciária, no município de Tupi Paulista, interior do estado. “Naquele lugar, a gente tinha de ser fria psicologicamente. Porque lá tem horário para dormir, comer, horário pra sair da cela, apagar a luz, acordar. Também existiam confrontos de uma companheira com outra, agressão mesmo. Por isso, preferia ficar dentro da cela e meditar. Era um jeito de ficar longe das coisas ruins”, continua.
Eliane pôde entrar em contato com a meditação por causa de livros da biblioteca da antiga prisão. De fala calma, conta que com a ioga aprendeu a ser paciente. Com a previsão de ir para o regime semiaberto ainda em 2019, tem o sonho de terminar os estudos de primeiro grau na penitenciária e iniciar a faculdade de assistência social. Também comenta que, desta vez, está decidida a não voltar a cometer quaisquer delitos. “Estou no crime desde os 16. No meio disso, tive oito filhos. E queria dar a eles o que não tive lá atrás, do bom e do melhor. Por isso fui traficar. Sinto muita falta das crianças, mas não permito que venham me visitar. Não é vergonha, só não é um lugar apropriado pra elas.”
Antídoto contra a tristeza
A risada alta de Josiane, 31, se escuta em toda a capela. Alta, com pouco mais de 1,70 m, com olhos verdes e longos cabelos escuros presos em um rabo de cavalo, é uma das mais ansiosas para falar sobre o que aprendeu com a prática e também sobre sua história. “O que você quer saber? Conto tudo!”, responde quando abordada. Diferentemente da maioria das mulheres que aguardavam o início da aula e cumpriam pena por tráfico de drogas, Josiane foi presa por ter atropelado e matado a amante do ex-marido e a mãe dela com um caminhão. “Foi a maior besteira que fiz. Tinha 21 anos e acabei com a minha vida! Não pensava em matar, só queria dar um susto, quando dei por mim, tinha passado em cima das duas”, conta com os olhos marejados. Condenada a 18 anos, ela não vê os dois filhos há três anos e oito meses, tempo em que está presa. Do ex-marido, que acabou voltando com ela após o crime e depois a entregou para a polícia, nada sabe. Costumava receber visitas da irmã, mas perdeu o contato depois de uma última carta em que ela dizia a Josiane que estava com câncer no cérebro. A reeducanda não sabe dizer se a irmã está viva ou morta.
Para aplacar a tristeza por não encontrar a família e a solidão que chega quando se deita “no colchão fino da cela”, ela usa os exercícios de respiração e relaxamento que costuma fazer na ioga. Diz que um dos únicos momentos em que esquece que está na cadeia e “leva o pensamento para onde quiser” é durante a prática. “Antes de fazer qualquer coisa, tento pensar bem, e nisso a ioga ajuda. Eu não teria matado aquelas mulheres se ao menos tivesse pensado uma única vez que fosse. E ainda sinto muita raiva do meu ex-marido por ter me entregado à polícia. Preciso aprender a perdoar pra ser perdoada. Inclusive a perdoar essas pessoas.”
Antídoto contra a tristeza
A risada alta de Josiane, 31, se escuta em toda a capela. Alta, com pouco mais de 1,70 m, com olhos verdes e longos cabelos escuros presos em um rabo de cavalo, é uma das mais ansiosas para falar sobre o que aprendeu com a prática e também sobre sua história. “O que você quer saber? Conto tudo!”, responde quando abordada. Diferentemente da maioria das mulheres que aguardavam o início da aula e cumpriam pena por tráfico de drogas, Josiane foi presa por ter atropelado e matado a amante do ex-marido e a mãe dela com um caminhão. “Foi a maior besteira que fiz. Tinha 21 anos e acabei com a minha vida! Não pensava em matar, só queria dar um susto, quando dei por mim, tinha passado em cima das duas”, conta com os olhos marejados. Condenada a 18 anos, ela não vê os dois filhos há três anos e oito meses, tempo em que está presa. Do ex-marido, que acabou voltando com ela após o crime e depois a entregou para a polícia, nada sabe. Costumava receber visitas da irmã, mas perdeu o contato depois de uma última carta em que ela dizia a Josiane que estava com câncer no cérebro. A reeducanda não sabe dizer se a irmã está viva ou morta.
Para aplacar a tristeza por não encontrar a família e a solidão que chega quando se deita “no colchão fino da cela”, ela usa os exercícios de respiração e relaxamento que costuma fazer na ioga. Diz que um dos únicos momentos em que esquece que está na cadeia e “leva o pensamento para onde quiser” é durante a prática. “Antes de fazer qualquer coisa, tento pensar bem, e nisso a ioga ajuda. Eu não teria matado aquelas mulheres se ao menos tivesse pensado uma única vez que fosse. E ainda sinto muita raiva do meu ex-marido por ter me entregado à polícia. Preciso aprender a perdoar pra ser perdoada. Inclusive a perdoar essas pessoas.”
A tunisiana N. B., 24, fala pouco português. Ela e outra companheira russa, que entende ainda menos do idioma, representam na aula a parcela das estrangeiras que cumprem pena na penitenciária. As “gringas”, como são chamadas pelas próprias presas, são mais da metade da população do local. Colombianas, bolivianas, venezuelanas e russas são maioria nas nacionalidades de mulheres condenadas por tráfico internacional de drogas – o principal motivo que leva uma estrangeira para as cadeias brasileiras.
A barreira da língua compromete pouco a prática, e a professora se dedica a corrigir frequentemente as posturas em que N. se atrapalha por não compreender as instruções. “Trabalho aqui o dia todo sentada, construindo sondas hospitalares. Com a ioga meu corpo relaxa. Já tinha ouvido falar da prática no meu país, mas lá não é comum. Eu jogava vôlei”, diz, em inglês. Condenada a oito anos e presa há um e três meses, N. se comunica com a família na Tunísia por e-mail, todas as sextas. Gosta de receber fotos da filha de 3 anos, que hoje vive com os avós. Tenta aprender o português assistindo a novelas, que adora, e a desenhos infantis.
Como muitas outras, alega que não sabia que trazia drogas na bagagem. Convidada por um amigo antigo para fazer turismo no Brasil e conhecer a Bahia, foi presa ainda no aeroporto de São Paulo com dois quilos de cocaína na mala. “Não achei estranho meu amigo pagar a viagem toda para o Brasil porque eu o conhecia fazia tempo e ele me dizia que era uma forma de retribuir tudo o que já tinha feito por ele. Ele pede desculpas, diz que não sabia a respeito das drogas. Acho que sabia, sim. Desculpas não adiantam nada.”
Segundo a professora Silvia, além do relaxamento, autocontrole e ganho de autoconsciência, a maioria das reeducandas sente melhoras no físico. Bruxismo, músculos tensos e dores nas costas tendem a passar. “Muitas me dizem que têm insônia, mas durante o relaxamento, no fim da prática, acabam dormindo. Imagino que seja um tempo em que repousam com mais liberdade”, diz. A aula que ela dá dentro da prisão é a mesma que costuma ministrar em estúdios de ioga. De acordo com Silvia, o clima também não é diferente de uma aula fora do cárcere. “Mesmo presas, elas continuam acompanhando o que está aqui fora, têm energia e conhecimento. Não desistiram e acho isso muito bonito. Vivencio essa troca de respeito e amor.”
Praticante de ioga há dois anos, Ana Paula Caffé, diretora de reintegração da penitenciária, estendeu as aulas para as funcionárias do presídio. Muitas se interessaram depois de assistir às práticas e conversar com as presas. “A maior parte das mulheres que estão cumprindo pena nesta unidade trabalham de segunda a sexta, das 8h às 17h. Mas a própria direção coloca que é importante que participem de atividades de lazer”, conta. Além da ioga, o presídio oferece saraus de literatura, programa de troca de cartas e aulas de dança. Sobre a mudança que Ana Paula percebeu nas presas depois de iniciarem a atividade, ela diz: “Pra mim é importante ver como ficam entusiasmadas com a iminência das aulas. Depois, como passam a desenvolver autoconsciência corporal e mental. E como passam a valorizar a calma e a paciência em detrimento da ansiedade”.
A firmeza com que realiza as ásanas e o batom azul tom caneta Bic de Natalia Pereira, 21, fazem com que ela se destaque durante a prática. “Sempre gostei muito de me cuidar, trabalhar a autoestima. A gente está presa, não está morta. Não é porque estou aqui dentro que vou desleixar.” Natalia nunca havia ouvido falar em ioga antes da cadeia. Hoje, realiza os exercícios com a maestria de quem os pratica por anos. Contou à Marie Claire que, apesar de o corpo estar mais forte, o que lhe agrada “de verdade” é “conseguir distensionar a musculatura”. “Dentro da cadeia, a gente vive de ombros atrofiados. Tudo aqui é nervosismo.”
Condenada a 14 anos, por roubo de banco e tráfico, está no crime “desde sempre”. “Quando criança, tinha vontade de comer bolacha e não tinha dinheiro, então roubava a bolacha. Uma hora, ficou normal roubar.” Em sua defesa, diz que a vida nunca foi gentil com com ela, que até tentou parar de roubar, de traficar, mas as dificuldades eram muito maiores. “Tenho quatro irmãos menores, minha mãe está sempre desempregada, meu pai sumiu no mundo e meu avô materno, que vivia com a gente, é cadeirante. Minha família passa muita necessidade. Na verdade, nunca deixou de passar.” Por essas e outras, a garota vê naqueles momentos quinzenais em que pode fazer ioga um refúgio. Um refúgio dentro da clausura.
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