Antropóloga analisa como a liberdade da mulher foi sendo cerceada ano após ano no Afeganistão. "Não importa que esta tese implique em julgar crenças religiosas ou culturais de outros países como injustas."
07.02.2019 -POR DEBORA DINIZ
Publiquei em minha conta no Twitter uma foto de três mulheres jovens afegãs com ares de estudantes universitárias. Elas estavam em Cabul, no Afeganistão, nos anos 1970, quando nasci. As três conversavam entre si em uma cena de rua. Duas delas parecem ter percebido a câmera e dispensaram um breve olhar. Como no “instante decisivo”, de Henri Cartier-Bresson, a vida transcorria sem preparação para o fotógrafo.
Descrevi a foto como um “espelho invertido” do Afeganistão atual. Essas mulheres são da geração de minha mãe – eu, hoje, seria uma mulher proibida de andar na rua sem a vigilância masculina. Certamente, não usaria minissaia, e, talvez, fosse forçada a cobrir o corpo ou o rosto. Não viveria a mesma liberdade das mulheres desta foto. Nos termos de Roland Barthes, ao descrever a imagem da mãe morta, o punctum desta fotografia foram os corpos livres de mulheres tão perto e longe de mim. O punctum é o que nos fisga em cada imagem: essas mulheres andavam livres, com cabelos ao vento, joelhos expostos. Vestiam minissaias.
Descrevi a foto como um “espelho invertido” do Afeganistão atual. Essas mulheres são da geração de minha mãe – eu, hoje, seria uma mulher proibida de andar na rua sem a vigilância masculina. Certamente, não usaria minissaia, e, talvez, fosse forçada a cobrir o corpo ou o rosto. Não viveria a mesma liberdade das mulheres desta foto. Nos termos de Roland Barthes, ao descrever a imagem da mãe morta, o punctum desta fotografia foram os corpos livres de mulheres tão perto e longe de mim. O punctum é o que nos fisga em cada imagem: essas mulheres andavam livres, com cabelos ao vento, joelhos expostos. Vestiam minissaias.
Não faço nenhuma defesa etnocêntrica sobre qual seja a maneira certa de viver o corpo. O que sei é que quero poder escolher se visto minissaia aos 50 anos, ou se cubro os cabelos por convicções religiosas. Não há relativismo cultural que justifique a defesa intransigente do direito de escolha – hoje, o Afeganistão é tido como o pior país do mundo para se nascer menina. Do tempo das mulheres desta foto para hoje, as meninas foram proibidas de ir à escola ou estudar, proibidas de trabalhar, sair de casa sem um homem, impedidas de mostrar partes do corpo em público. O que dizer de usar minissaias como teriam feito as mulheres que foram as bisavós das meninas que nascem hoje.
O relativismo como um método de pesquisa me ensinou a mergulhar em outras culturas e crenças, mas não se transformou em um postulado ético relativista sobre como a vida deve ser. É injusto proibir meninas e mulheres de serem livres, não importa que esta tese implique em julgar crenças religiosas ou culturais de outros países como injustas. As mulheres afegãs conquistaram o direito ao voto em 1919, exatamente um ano depois das mulheres inglesas e um ano antes das mulheres estadunidenses. Em 1950, purdah, a separação por sexos, foi proibida no país; e nos anos 1960, a constituição garantiu a igualdade de gênero em várias esferas da vida. Foi com a ocupação soviética e depois com a guerra com os Estados Unidos que as mulheres foram perdendo direitos e reconhecimentos.
Como todos os países em conflito armado, as meninas são uma das populações mais vulneráveis – estima-se que duas em cada três meninas afegãs não vá à escola, e três em cada quatro viva um casamento forçado.
A alegoria do “espelho invertido” pela minissaia pode ser lida de uma maneira superficial – quem disse que usar roupa curta é sinal de liberdade? Não é disso que falo, mas do punctum da fotografia. Segundo estatísticas oficiais do governo afegão, 80% de todos os suicídios são de mulheres, sendo o país um dos raros em que as mulheres se matam mais que os homens. Especialistas entendem que uma das razões é o ciclo de violência doméstica e pobreza a que as mulheres estão submetidas. Se estima que 90% das mulheres afegãs já sofreram violência doméstica. Em uma recente reforma da justiça criminal, o capítulo sobre criminalização da violência de gênero foi abolido.
É assim que não entendo quem resiste ao punctum desta fotografia como um retrocesso dos direitos das mulheres no Afeganistão. Menos ainda quem vê em minha análise um sinal de “feminismo colonizador”. Todas as mulheres devem ser livres para realizar suas escolhas religiosas, desde que sejam escolhas e não proibições ou restrições de decisão. Não há mais mulheres afegãs de minissaia em Cabul – esse é o sinal que me interessa para o punctum desta fotografia.
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