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domingo, 17 de fevereiro de 2019

O tesouro oculto de Aretha Franklin


Berlinale
Aretha Franklin, em ‘Amazing Grace’.

A culpa foi das claquetes. Ou, na verdade, da ausência delas. Culpa da inexperiência na gravação de um show por parte de Sydney Pollack, que não usou claquetes – provavelmente para não incomodar Aretha Franklin – e nunca conseguiu sincronizar as imagens com o som. Durante décadas, a filmagem ficou guardada em caixas, sem que Pollack soubesse muito bem o que fazer com aquelas fitas impossíveis de montar. Só a teimosia de Alan Elliott, a quem Pollack cedeu o material antes de morrer de câncer de pâncreas, em 2008, e a morte da rainha do soul, que sempre proibiu a estreia do filme (“Ela não tinha vontade de falar comigo sobre o projeto, conta Elliott), conseguiram trazer a público Amazing Grace, o testemunho dos dois dias de janeiro de 1972 em que Franklin se encerrou numa igreja de Los Angeles e gravou um de seus álbuns mais famosos, no qual ela se voltava ao gospel – ao vivo, com público – depois de arrasar no soul.

Em Berlim, onde o filme foi projetado na seção oficial fora da competição, ao lado de Elliott, que nos créditos aparece como produtor e realizador, embora não como diretor (a família de Pollack não quer que seu nome apareça), estava na coletiva Joe Boyd, produtor musical, o homem que esteve lá durante o desastre, e que explicou claramente o que ocorreu: “A Warner e a Atlantic chegaram a um acordo. Aretha tinha dois contratos, como artista musical e como estrela de cinema, porque naquele momento estava em seu apogeu. Eles me contrataram para montar uma equipe, reunir uma banda, buscar o Coro Comunitário do Sudeste da Califórnia... Dias antes, me telefonaram da Warner e me disseram que o filme, que acompanharia o lançamento do disco ao vivo como forma de publicidade, não seria feito por mim, e sim por Sydney Pollack, que obviamente tinha mais nome que eu e era muito fã da artista. Mas que não sabia como é complicado filmar música, e por isso a aborreceu.” Na tela, às vezes vemos Pollack distraído, dando ordens sem sentido aos cinco câmeras, que se movem por vezes sem critério. “Após a primeira noite, o montador me ligou”, recorda Boyd, “e me disse que o material não valia para nada porque Sydney não sabia dirigir esse material. Pollack foi muito amável, envolveu-se muito e sofreu com o fracasso do projeto.”


O que agora se vê nos 87 minutos de Amazing Grace é, simplesmente, emocionante. Seu pai, o reverendo C. L. Franklin, dedica-lhe orgulhosas palavras à sua filha e à música. Um membro do coro começa a chorar enquanto a acompanha na faixa que dá nome ao documentário, 11 minutos vibrantes que acabam com mais músicos e o público em lágrimas. Ao fundo, veem-se Mick Jagger e Charlie Watts. Franklin abre mão de interpretar seus grandes sucessos e canta canções gospel, a música de suas raízes, de sua infância. Elliott conta: “A fama é, hoje em dia, um mostro diferente. Fico impressionado com a ideia de que a mulher mais famosa do momento tenha se fechado dois dias numa igreja, sem acompanhantes, representantes ou empresários, sem se esconder atrás de óculos escuros, só para cantar. Hoje não veríamos isso. Hoje me parece impossível.”
Para Elliot, Amazing Grace é algo mais que a gravação de um show. “É um filme sobre a mortalidade. E acredito que Aretha teria gostado, porque inclusive terminamos como ela fez, com a primeira música que gravou em sua vida”, diz ele. Sobre sua relação com Pollack – e os problemas que sufocaram o filme durante décadas –, explicou: “Ele me ligou, me passou o material, e sempre falamos de forma abstrata de seus problemas. Um dia me disse que abandonaria o projeto, que deixaria aquele tesouro nas minhas mãos. E, um mês depois, morreu.”
Mas resta Amazing Grace. Há muito mais material, como as entrevistas com os assistentes, como Jagger, embora seja imprestável. Não importa: só com o que vemos, com a energia e a emoção, com os momentos de êxtase musical em que a tela consegue capturar esse algo intangível, valeu à pena esperar.

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