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terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Atendo mulheres que perderam a vontade de viver – e questões de gênero têm seu papel nisso

por Equipe AzMina
29 de novembro de 2018

'Se parar pra escutar a história, o nome muda muitas vezes de um transtorno mental para violência, submissão, desamparo, rejeição', conta a psicóloga Lorena Franco

“Há quase sete anos atendendo pessoas variadas que chegam a um serviço público de saúde mental para adultos chamado CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) tenho percebido mais do que nunca o quanto certas condições contribuem para delinear a chegada ao surto em si, na vida das pessoas. Seja o quanto de dinheiro se ganha, quem trabalha na família, qual bairro mora, com quem mora, idade, nível de escolaridade. Daí vem também orientação sexual, gênero, cor…

Há uma parte da psicologia que trata do interno dos conflitos mentais, foca nos processos mentais que não estão em bom funcionamento. No entanto, no dia a dia do serviço, nos deparamos com essas situações concretas, que não são sempre as causas ou únicas causas, mas no mínimo interferem na intensidade e gravidade do sofrimento.

Chegam lá mulheres com alguns sintomas psiquiátricos – tentativa de suicídio, ou pensamento suicida, comportamentos impulsivos de agressividade, isolamento, irritabilidade, baixa tolerância à frustração… A lista é grande e é muito fácil dar um nome para o grupo de sintomas que aparecem, geralmente de transtornos de humor, transtorno dissociativo, transtorno de personalidade, transtornos ansiosos.

São tantas as histórias que escuto de mulheres sem vontade de viver, de se cuidar, de fazer planos para si. Daí quando paramos para escutá-las, as histórias são permeadas por questões de violência, sentimentos de abandono, rejeição e desafetos, que são atravessadas o tempo todo pela desigualdade de gênero e a condição submissa dessas mulheres.

Abusos
Nos casos de abuso sexual sofrido na infância é inacreditavelmente frequente elas contarem que aconteceu dentro de casa, em que o abusador é o pai ou padrasto. E que quando decidiram dizer para alguém, geralmente para a mãe, muitas delas não foram ouvidas, foram acusadas de mentira. E nada foi feito e tiveram que continuar convivendo com o autor do abuso.

Uma paciente disse que descobriu o feminismo e agora não suporta mais o marido nem a filha, pois percebeu o quanto se esforçou para cuidar deles e o quanto trabalhou para ajudar a filha a se formar, como se ela fosse a única responsável por isso tudo, e se sente cansada.

Descobrir o feminismo para ela trouxe tamanha mudança de sentido a ponto de lhe causar a sensação de estar “a ponto de explodir, por não conseguir mudar a sua situação nesse momento.

Os relacionamentos conturbados por violência, então, aparecem rotineiramente, com relatos difíceis de serem ouvidos. Como o de uma mulher que conta que o marido bate muito nas crianças, às vezes ela deixa que ele a culpe e grite com ela para evitar que ele desconte nelas. E que um dia desses a forçou a fazer sexo contra a sua vontade e a machucou (tem nome pra isso né?).

Opressão
Outra paciente traz uma história de opressão pela religião, pois é esposa de um pastor e, por isso, lhe são exigidas muitas tarefas, o que para ela tem sido exaustivo. Além das regras rígidas que precisa seguir, o que faz há mais de 20 anos. Por isso, não quer mais viver, não vê sentido e não consegue se impor diante do marido e da Igreja, tamanho é o desgaste emocional.

Não quero estabelecer uma relação de causa direta, pois essas histórias são repletas de várias outras questões que contribuem para uma narrativa de fracasso e desamparo.

Mas os fatores ligados ao gênero estão pesando muito na situação de agravamento e surto.

Se bobear a gente trata a depressão mas não trata o sofrimento (muitas vezes é isso que as pessoas pedem). Mas isso não funciona, por isso temos taxas de medicalização tão altas. Se parar pra escutar a história, o nome muda, muitas vezes de um transtorno mental para violência, submissão, desamparo, rejeição.

Então qual é o caminho? Para mim a palavra-chave é “empoderamento”. Isso significa buscar recursos, em si mesma, sim, mas também nos vínculos sociais, que são de extrema importância, para que elas possam passar a acreditar em si mesmas. É uma mudança difícil, pois muitas vezes se trata de se ver de um outro jeito, uma mudança na narrativa de fracasso.

Na perspectiva prática, às vezes o caminho vai ser na conquista de um emprego, no divórcio…

Este texto é um desabafo, pois somos apenas um serviço de saúde mental tentando cuidar dessas questões tão amplas, e somos só uma pontinha. E lá também somos a maioria mulheres profissionais, e temos conversado muito sobre o quanto é difícil ouvir essas histórias, e o quanto nos angustia a quantidade delas que chega quase que diariamente.

Precisamos da ajuda de todos, dos centros de bairro, das igrejas, das delegacias, das ONGs, da mídia. Só assim para conseguirmos cuidar dessas mulheres.” 

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