Romance La Maison foi um dos estouros literários do ano na França. Sua autora afirma que trabalhou como prostituta em bordéis de Berlim. Diz que o fez por vontade própria e porque procurava assunto para um livro. Sempre quis conhecer o “contexto” em que uma mulher decide “alugar seu corpo”. A obra provocou um enorme alvoroço enquanto o debate sobre a legalização e abolição da prostituição continua vigente em nossa sociedade.
A escritora francesa Emma Becker, em Paris.LÉA CRESPI
BORJA HERMOSO 14 DEC 2019 - EL PAÍS
EMMA BECKER afirma que passou dois de seus 31 anos exercendo a prostituição nos bordéis de Berlim Le Manège e La Maison (nomes fictícios). Que um era o inferno e o outro um confortável local de trabalho. Que um dos lugares continua aberto e que fotos suas nua ainda estão na Internet. Que seu nome de guerra era Justine, como o personagem do Marquês de Sade. Que a experiência a melhorou como pessoa e como mulher nos lados emocional, econômico e sexual. Que ganhava 4.000 euros (18.270 reais) por mês. Que mais de um cliente a fez chegar ao orgasmo. Que foi agredida. E que no mundo das putas, infelizmente, tudo é o que parece. Que entrou na previdência social da Alemanha, onde a prostituição é legal, ao contrário da França, onde é ilegal, e da Espanha, em que não é regulamentada e não é proibida. “Meu livro não é a apologia da prostituição”, afirma. “É uma apologia daquele lugar concreto e de um momento concreto de minha vida. O tráfico de mulheres é outra coisa bem diferente, e eu não o conheci, mas deve ser inacreditável”. Apesar das buscas, nada relativo à história pessoal da francesa Emma Becker pôde ser comprovado pelo jornalista, que confirma uma coisa: a força literária de La Maison, um romance de 370 páginas cru e emocionante publicado pela prestigiosa editora Flammarion e elogiado pelos principais veículos de comunicação de seu país. Também não faltaram os céticos que acham que ela inventou tudo. Ela jura que é tudo verdade, além das partes romanceadas. As dúvidas diante de uma experiência literária como essa são inevitáveis. E o ceticismo, livre.
Em que momento teve a ideia de trabalhar como prostituta para escrever um livro? Digamos que a coisa não veio de uma vez, vinha de longe. É que eu já havia feito isso quando jovem, quando era estudante.
Que coisa? Exercer a prostituição? Sim, foram algumas vezes, só para me divertir, e para me testar. Estava estudando, morava com meus avós, saía muito, você sabe como é Paris, e adorava me disfarçar de mulher desejada pelos homens. E, de repente, uma noite você decide fazê-lo. Decide pedir dinheiro por fazê-lo. Sempre tive fantasias sobre isso.
Ou seja, com 20 anos você se transformou em uma call-girl... Sim, veja, eu o fiz três ou quatro vezes, não mais. Mas, bem, depois, já morando em Berlim, um dia andava pela rua e vi um cartaz que dizia “Clube-Bordel”. É que na Alemanha os puteiros são legalizados e é um negócio que vai de vento em popa. De modo que entrei. Aquilo plantou na minha cabeça a semente de fazê-lo um dia e escrever sobre isso. Contar quais são as regras de um local como esse, como vivem as garotas que lá trabalham, tudo isso.
Vamos esclarecer as coisas: decidiu ser prostituta para escrever um livro ou trabalhou como prostituta e depois teve a ideia de escrever um livro? Não, o que aconteceu foi que estava acabando meu segundo romance [Alice] e já estava procurando assunto para o terceiro, mas não encontrava nada. E quando vi aquele bordel disse a mim mesma: “Pronto, aí pode existir um livro fantástico”. Mas também disse a mim mesma: “Enquanto você o escreve, poderá ganhar dinheiro”. Tinha 25 anos, era solteira, não tinha filhos, era livre e teria tempo... e, bom, preciso dizer que nunca fui uma pessoa muito trabalhadora.
La Maison não é a primeira incursão literária de Emma Becker no universo das relações de sexo e dominação. Com precoces 22 anos, seu nome já adquiriu popularidade por Monsieur, a história de paixão sexual entre uma jovem de sua idade e um homem casado de 46. Pouco depois retomaria o tema em seu segundo romance, Alice.
Como fez para ser prostituta e escritora ao mesmo tempo? No começo, quando estava em Le Manège, aquele local inacreditável, fui escrevendo paralelamente, à medida que as coisas me aconteciam. Depois, quando fui para La Maison, que era um lugar fantástico, o processo mudou. Escrevia somente quando me vinha a inspiração. Chegou um momento em que estava tão alucinada com a casa, com as garotas, com os clientes... que a escrita deixou de ser uma prioridade.
Podemos dizer, lendo La Maison, que o contraste entre esses dois bordéis ―quase dois mundos— era um dos ingredientes principais do romance. Acha isso? Totalmente. De fato, se tivesse ficado mais tempo em Le Manège, o livro não teria nada a ver. Aquilo era um matadouro. Acho que só comecei a fazer literatura quando parti. Enquanto estive lá escrevi outra coisa, algo mais parecido a jornalismo.
Sim, no livro coexistem as duas coisas: Crônica jornalística e ficção literária... Isso mesmo. Quando cheguei ao segundo bordel, em La Maison, comecei a fazer algo diferente. Era como uma reflexão sobre a feminilidade, como um exercício de introspecção. Enquanto o primeiro era mais sociológico, ainda que também muito naïf, porque até então não tinha a menor ideia de como era a vida em um puteiro, nem o cansaço físico que esse trabalho causa, as rígidas obrigações as quais você é submetida, e outras coisas. Em algumas passagens pode parecer que falo com desprezo de algumas das garotas, mas era por desconhecimento. Muitas delas eram do Leste e —ao contrário do meu caso—me deu a sensação de que estavam ali porque a vida não lhes deixava outra opção.
Mantém relação com elas? Com algumas das de La Maison, sim. Nós nos dávamos muito bem, havia concorrência, mas o normal, cada uma tinha seus clientes fixos. Mas fechou, e quando um bordel fecha as garotas se espalham por outros bordéis e mudam de nomes, bom, de pseudônimos. Você acaba perdendo o rastro. As putas são, por necessidade, seres muito ferozes, protegem com unhas e dentes sua vida e sua intimidade. Mantenho relação, por exemplo, com a outra garota francesa que estava em La Maison, da qual falo no romance. E com alguns clientes habituais que hoje trato como amigos. Às vezes nos encontramos para tomar café e conversar.
Você escreve: “Sei que deveria me sentir suja, mas não me sinto de maneira nenhuma”. Diria que é uma pessoa melhor após viver essa experiência? Pior? Claramente melhor. Tenho a sensação de ter enriquecido no pessoal e de que minha percepção sobre mim mesma melhorou bastante. E, principalmente, que minha relação com os homens é muito melhor, muito mais saudável.
Seria de se esperar o contrário. Fazer sexo cinco vezes por dia com clientes não tira o desejo? Não precisou se reeducar para voltar a senti-lo? Dormir com três ou quatro caras por dia é um esporte, já não é sexo. E no final do dia você sente um cansaço semelhante ao de qualquer trabalho muito físico e só tem vontade de desabar em casa, ver tevê e fumar um baseado. Mas para minha surpresa, quando deixei de ser puta comecei a sentir desejo por todos esses homens dos quais gostava e que sabia que não iriam fazer comigo por dinheiro, e sim por outras coisas. E foi maravilhoso. Reaprendi a desejar. Veja, no começo, trabalhar como prostituta obriga você a se tornar muito mais feminista, isso é claro. Mas também me fez sentir um pouco mais de ternura pelos homens, porque algo ficou claro para mim: nós mulheres somos muito fortes. Mas acima de tudo, uma coisa mudou: minha capacidade de desejo e de prazer e meu eu sexual sofreram uma grande transformação. Evoluíram.
“Buscava um tema para meu terceiro romance e não o achava. Vi aquele bordel e me disse: ‘Aí pode haver um livro fantástico”
Para o bem ou para o mal? Insisto: usar seu corpo de forma mecânica e precisar fazer sexo várias vezes por dia, não a fez perder o desejo? Isso aconteceu um pouco. Mas a única coisa que sei é que agora faço amor muito melhor do que antes, não quero dizer de um ponto de vista técnico, e sim que penso muito mais e melhor em mim mesma, em meu corpo e em meu próprio prazer. Sempre senti fraqueza pelos homens, mas antes costumava ficar presa em uma contemplação um pouco ensimesmada e um pouco boba do homem com quem estava na cama. Podia fazer sexo de forma totalmente satisfatória, mas sem gozar nenhuma vez, porque o que me obcecava era o prazer dele.
Você contou que intelectualizava demais o ato sexual. Quer dizer que que agora conseguiu desintelectualizá-lo? Exato. Consegui me aproximar de verdade ao meu corpo para tirar o maior proveito possível. Descobri exercendo esse ofício coisas que não esperava: por exemplo, perceber que você pode dar prazer a um homem que te era indiferente. A complexidade sexual da mulher é muito maior do que a do homem. Sendo prostituta aprendi a ter uma empatia maior com os homens, quase uma ternura, por sua incapacidade muitas vezes de saber se estamos gozando ou estamos fingindo. Certamente, quando fingimos não costuma ser para chatear, e sim por alguma boa razão. Por exemplo, agradar.
Você escreve: “Uma piedade lancinante pela insondável tolice dos homens”. A frase é um tapa na cara! Sim, sim, sim, hahaha!
Considera que a maior complexidade mental da mulher em relação à do homem vai em paralelo a uma maior complexidade sexual delas sobre eles? Acho. O prazer feminino é complicado, sabe? Porque desde pequenas nos educam para sorrir, para deixar que tudo fique bem, para cuidar da casa, dos filhos, para nos preocupar com que o homem sinta desejo... É uma carga mental que torna muito difícil o fato de chegar a esse ponto de abandono necessário para o prazer sexual. Ahhh!, por outro lado, em relação ao prazer, vocês têm um problema que nós não temos: a necessidade de uma ereção.
Em seu livro você não recria muitos momentos explícitos de voltagem sexual. Acha, como dizia há pouco Woody Allen por aqui mesmo, que a sexualidade sugerida é mais eficaz do que a exibida? Bom, é a diferença entre o erotismo e a pornografia. Mas eu não incluo muitas cenas explícitas simplesmente porque, ao contrário do que muita gente pode imaginar, o sexo em um bordel não é muito interessante. A verdade é que depois de trabalhar lá cheguei à conclusão de que os homens não vão para satisfazer alguma fantasia oculta de caráter sexual, e sim por algo tão convencional como tocar uma mulher que não é a sua. No final das contas, no bordel ocorria um tipo de sexo, como dizer, bem simples, bem conjugal.
Bom, há de tudo, não? Alguns vinham para que fossem amarrados, presos por algemas e coisas assim, mas eram a minoria. E percebi outra coisa: há muitos homens que vão a um bordel simplesmente para falar com as prostitutas. Transam rápido, dedicam 20 minutos ao sexo e depois outros 40 para conversar.
Acha que o fato de pagar dá aos clientes de um bordel a sensação de poder sobre a mulher? Os homens que pagam por sexo têm medo das mulheres. Pagar não lhes dá nenhum poder sobre nós. Pelo contrário, os coloca em uma situação de inferioridade. Ele é o cliente, e a prostituta coloca todos os clientes na mesma cesta e é, portanto, superior a eles.
Dizia que exercer a prostituição te obriga a ser mais feminista. Mas não acho que frases como “é mais trágico ser caixa no Lidl (rede de supermercados popular) com um salário miserável do que ser prostituta” sejam muito bem recebidas pelo feminismo. Insisto: em certos puteiros, o poder absoluto é da mulher. Em certos puteiros. Meu livro não abarca a totalidade do mundo da prostituição. Mas posso lhe dizer que muitas mulheres escolhem sem problemas essa profissão pelo que traz de conforto econômico e pela possibilidade que proporciona a algumas delas de se ocupar por mais tempo e mais intensamente de seus filhos. Muito mais e melhor do que se trabalhassem em uma loja e em um supermercado. E a prostituta é uma trabalhadora como qualquer outra mulher, ainda que isso quase nunca seja reconhecido. É cínico que neguem às mulheres a liberdade de escolher essa profissão e dizer: “Eu o faço porque vou ganhar mais dinheiro e viverei melhor”. Ninguém ficaria chocado ao ouvir um homem dizer isso.
Também não costuma chocar que um homem diga que todo sábado dorme com uma mulher. Mas se uma mulher o diz, costuma ser chamada de ninfomaníaca ou de puta. É a isso que se refere? Totalmente. O que acontece no fundo é que o homem tem medo de considerar a prostituta como uma mulher livre que faz com seu corpo o que tem vontade. Por que? Porque isso ameaça o reinado dos machos, os que gostariam que as mulheres se envergonhassem de seus corpos e os guardassem somente para seus maridos. Veja, fiz amor tantas vezes com homens que me trataram como uma puta —mas sem me pagar, e isso inclui situações com meu próprio companheiro— que agora me parece muito honrado receber por isso!
Por vender seu corpo... Não é vender meu corpo, é alugar meu corpo em um contexto concreto. E não é só o corpo, é muito mais do que isso. Você aluga uma situação, uma comédia, uma ilusão. Bom, e nem sempre é uma ilusão...
“Trabalhar como prostituta te faz mais feminista. Mas também sentir ternura pelos homens, porque nós somos muito mais fortes”
Como assim? Que várias vezes cheguei ao orgasmo com um cliente. Sem prever, é claro.
Diria que seu livro é uma reivindicação direta e implicada da prostituição? É uma reivindicação da possibilidade de que a mulher que escolhe esse trabalho possa desenvolvê-lo em boas condições. De que as putas possam criar as condições de trabalho que lhes pareçam dignas, seja em um bordel e em suas próprias casas. A prostituição não é uma profissão como as outras, mas precisa ser. Meu livro não é uma apologia da prostituição. É uma apologia daquele lugar concreto e de um momento concreto de minha vida. O tráfico de mulheres é outra coisa bem diferente, e eu não o conheci, mas deve ser inacreditável.
Como vê o futuro das prostitutas nos países em que a prostituição não é legal? Se a prostituição não for legalizada, as garotas de 15 e 17 anos continuarão no mato e nas estradas esperando clientes, continuarão existindo lugares abomináveis e continuarão encontrando prostitutas degoladas.
Por que deixou o trabalho? Teve a tentação de continuar exercendo o trabalho de prostituta? Sim. Se não tivesse sentido que meu desejo sexual estava adormecendo, teria continuado. Trabalhava em boas condições, me sentia feliz e economicamente digamos que era uma etapa muito agradável de minha vida. Mas decidi parar e voltar ao meu trabalho de garçonete em um café de Berlim e escrever livros.
Antes de ler seu livro, senti a tentação de pensar que toda essa história era mentira. Mas se o for, você é um gênio. Afirmo que é tudo verdade. Paguei à Fazenda alemã por meu trabalho como prostituta, continuam existindo fotos minhas nua na Internet e o bordel Le Manège continua aberto, mas com outro nome. Entendo que existam pessoas que não acreditem porque, claro, seria admitir que uma mulher pode trabalhar como puta e se sentir bem.
Mas Le Manège é um nome fictício. Como o bordel se chama realmente? Prefiro não dizer. Mas era um local ruim. Era dirigido por homens, uns albaneses que, enfim... Era tudo muito obscuro. A cocaína era abundante, você sentia medo, pensava que algum dia reteriam seu passaporte... Não era como em La Maison, que era dirigido por uma mulher —uma antiga dominadora— e era maravilhoso.
Nabokov, Sade, Henry Miller, Maupassant, Louis Calaferte... são autores nos quais se pensa lendo La Maison. Acha que teriam facilidade em publicar hoje os livros que os tornaram célebres? Lolita? Justine? Trópico de Câncer? Está claro que há uma volta do puritanismo, uma volta atrás no moral, e nesse terreno a França é a campeã do mundo. Somos o país mais hipócrita do planeta. Tudo é feito às escondidas. E sobre isso que você me pergunta..., não, não acho que um livro como Lolita poderia ser publicado hoje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário