Por Daniel Lima e José Muniz Neto
Como se sabe, recentemente fora introduzido através da Lei n° 13.718/2018 o § 5º ao artigo 217-A do Código Penal no escopo de se colocar um ponto final acerca da (ir)relevância do consentimento do menor de 14 anos de idade para prática de um ato sexual:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. […]§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.
Nota-se que o dispositivo em comento restringiu expressamente a prática de qualquer ato sexual por parte dos menores de 14 anos, impondo, no final das contas, um dever de castidade para os mesmos até os 14 anos de idade.
Dever de castidade este que é totalmente incongruente com as premissas do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que atribui a partir dos 12 anos de idade responsabilidade penal a título de ato infracional aos menores infratores e que permite visita íntima aos mesmos quando submetidos a uma medida socioeducativa de internação.
Nesse diapasão, Nucci (2009) afirma ser um contrassenso dizer que o menor de 14 anos de idade possui discernimento suficiente para ser responsabilizado penalmente, ainda que a título de ato infracional, e ao mesmo tempo, dizer que o mesmo adolescente não possui maturidade (discernimento) suficiente para se relacionar amorosamente com quem quer que seja.
Nessa esteira e tendo-se em vista o atual posicionamento legal sobre a irrelevância de eventual consentimento do menor para prática de um ato sexual, neste escrito, analisaremos a decisão da Quinta Turma do STJ sobre a desnecessidade de contato físico entre autor e vítima para configuração do delito de estupro de vulnerável.
Trata-se de um caso de abuso sexual infantil, que consistiu basicamente na seguinte situação descrita na denúncia:
Seguindo a orientação da denunciada ROSEDÉLIA ALVES SOARES (vulgo Rose), a vítima DEBORA ROSA informou ao denunciado JOSÉ CARLOS LOPES que possuía apenas 10 (dez) anos de idade, e depois de uma breve conversa, este denunciado lhe determinou que se despisse, e a contemplou lascivamente . Após, o denunciado JOSÉ CARLOS LOPES pagou diretamente à vítima DEBORA ROSA a quantia de R$400,00. A vítima DEBORA ROSA retornou à garagem do quarto do motel, onde a sua irmã VIVIANE e as denunciadas MONICA MATOS DE SOUZA e ROSEDÉLIA ALVES SOARES (vulgo “Rose”) haviam permanecido aguardando-a, até que esta última retornou ao quarto, para receber a vantagem econômica do denunciado JOSÉ CARLOS LOPES, da qual repassou a VIVIANE a quantia de R$50,00 (cinquenta reais). Passado pouco tempo, a denunciada ROSEDÉLIA ALVES SOARES (vulgo “Rose”) novamente procurou a vítima para novo encontro de comércio sexual com o denunciado JOSÉ CARLOS LOPES. […] Mais uma vez, o denunciado JOSÉ CARLOS LOPES determinou à criança DEBORA ROSA que se despisse, e a contemplou lascivamente . Após, o denunciado JOSÉ CARLOS LOPES pagou diretamente à vítima DEBORA ROSA a quantia de R$200,00, e depois, retornou à garagem do quarto de motel, onde sua irmã VIVIANE e as denunciadas MONICA MATOS DE SOUZA e ROSEDÉLIA ALVES SOARES (vulgo “Rose”) e haviam ficado aguardando o desfecho do encontro de mercadejo sexual. (fls. 38/39)
In casu, os Ministros do STJ entenderam que apesar de não ter havido propriamente contato físico entre o abusador e a vítima, o fato de o agente delituoso ter levado a menor de 10 (dez) anos de idade para o motel e ter contemplado a sua nudez, já era elemento suficiente para caracterização do estupro de vulnerável.
Para os Ministros, a contemplação lasciva, por si só, já configura ato libidinoso caracterizador do delito de estupro de vulnerável, sendo, portanto, prescindível o contato físico entre vítima e autor do fato para configuração do tipo em questão.
Dito isto, deve-se ter em mente, em primeiro lugar, que a prática de qualquer ato libidinoso, independentemente de sua gravidade ou duração, já caracteriza o crime de estupro de vulnerável quando praticado com menores de 14 anos de idade.
Ademais, sabe-se também que o eventual consentimento da vítima é irrelevante quando trata-se de caso de estupro de vulnerável.
Logo, o que se exige é tão somente que o ato libidinoso seja praticado para fins de satisfação da lascívia, ou seja, para fins de prazer sexual do autor o fato, pouco importando se, de fato, há êxito ou não no intento do mesmo.
Assim, em contrário sensu, se o ato não for revestido de conotação sexual não há que se falar em estupro de vulnerável.
No mais, diferentemente do que ocorre no crime de estupro (art. 213 do CP), no delito de estupro de vulnerável (art. 217-A), a prática do ato de libidinagem prescinde da existência de violência ou de grave ameaça. Isso não significa dizer, contudo, que o estupro de vulnerável só abrange os atos de abuso sexual.
Pelo contrário, o nosso tipo penal de estupro de vulnerável (art. 217-A) engloba tanto os atos de abuso (relações sexuais consentidas), quanto os de agressão sexual (relações sexuais não consentidas), não havendo qualquer diferenciação para fins de enquadramento penal.
Dito isto e ante o exposto, conclui-se pela dispensabilidade do contato físico entre autor do fato e vítima para caracterização dos crimes em questão, pois, como já dito, o que torna o ato libidinoso é o intento do agente e não o efetivo toque na vítima, ou seja, o que importa é a verificação da existência de violência ou a grave ameaça para o estupro, ou que a vítima tenha idade inferior a 14 anos para o estupro de vulnerável.
Por fim, percebe-se ainda que a prescindibilidade do contato físico no estupro não é novidade, já que atualmente admite-se a figura do “estupro virtual”, que na verdade não é uma nova modalidade de estupro, mas sim uma nova forma de cometimento deste delito, que dispensa a presença física dos indivíduos para a sua caracterização.
O “estupro virtual”, portanto, nasce geralmente de uma situação de sextorsão, em que o autor do fato, em poder de fotos íntimas da vítima, a chantageia, para que ela preste benefícios sexuais em seu benefício, sob pena de vazamento das fotos íntimas.
O estupro é considerado “virtual” justamente pelo fato dele ocorrer online, ou seja, através de webcam ou de vídeo-chamada.
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