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terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Quem são as cientistas que querem revolucionar o estudo do DNA no Brasil?


Helton Simões Gomes
De Tilt, em São Paulo
20/12/2019

Sem tempo, irmão

  • Pesquisadoras iniciaram trabalho inédito de sequenciar genoma de 15 mil brasileiros
  • Elas querem chegar a 200 mil e já esperam contar com ajuda do SUS
  • São três objetivos: colocar Brasil no mapa da pesquisa genética mundial...
  • ... criar base de dados para pesquisas de saúde que considere DNA de brasileiros
  • ... e encontrar traços de ancestralidade nas nossas informações genéticas

Elas iniciaram o trabalho que vai colocar o Brasil no mapa da pesquisa genética, mas não foi fácil. Antes de anunciarem o DNA do Brasil, pioneiro banco de sequenciamento de 15 mil genomas de brasileiros, as pesquisadoras Lygia da Veiga Pereira e Tábita Hünemeier, da Universidade de São Paulo (USP), passaram três anos batendo na porta de possíveis apoiadores.

Foram recusadas por empresas e uma entidade britânica, até que chamaram a atenção do Google e do laboratório clínico brasileiro Dasa. Agora, o plano é chegar a um banco de 200 mil DNAs esquadrinhados e já receberam sinalização do Ministério da Saúde de que o projeto pode ser encampado pelo governo.
O genoma é o conjunto de material genético de qualquer ser vivo. Funciona como um livro de receitas para definir características físicas, da altura à suscetibilidade a ter doenças, passando pela forma de responder a certos medicamentos.
Os objetivos das cientistas são:
  • incluir dados de genomas de brasileiros em bancos internacionais para aumentar a diversidade;
  • criar uma base de dados para fomentar pesquisas de saúde que levem os genomas de brasileiros em consideração;
  • encontrar traços de ancestralidade nas informações genéticas de brasileiros para traçar sua origem étnica.
Elas já veem voluntários surgirem para engordar o número de amostras, mas, para atingir a meta, pensam em recorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS). Em conversa com Tilt, as cientistas responsáveis pelo DNA do Brasil explicam suas motivações, seus planos e o que acham que serão as próximas revoluções no campo da genética.

A saga para tirar o sonho do papel

Após passar anos fazendo pesquisas genéticas usando dados de europeus, as duas pesquisadoras perceberam que a ciência do Brasil emperrava por não dispor de um banco de sequenciamento genômico de brasileiros. São com esses cadastros, por exemplo, que farmacêuticas calibram determinados tipos de remédios ou quais doenças uma população está predisposta a ter com mais frequência.
Para as populações caucasianas, já chegaram ao ponto de criar um algoritmo que calcula o risco genético de ter doença cardíaca. Você conhece o genoma da pessoa, vê as variantes genéticas que têm e pode categorizar essa pessoa em risco alto ou baixo. Se aplicar esse sistema para populações com genética distinta, sejam africanos, asiáticos ou brasileiros, a precisão muda completamente
Lygia da Veiga Pereira
O sonho de construir um banco de genomas brasileiros é antigo, mas ganhou corpo em 2014, diz Lygia. Na época, ela começou a estruturar o que seria preciso para tirá-lo do papel. A eleição de Dilma Rousseff para o segundo mandato na presidência a animou, porque o governo prometia incentivar a ciência.
Em 2015, veio o banho de água fria. As contas do país não iam bem e faltaria dinheiro. O impeachment de 2016 foi a gota d'água, e o projeto foi engavetado. Mas não por muito tempo.

Lygia da Veiga Pereira, professora da Universidade de São Paulo (USP)Lygia da Veiga Pereira, professora da Universidade de São Paulo (USP) - Marcos Santos/USP Imagens
Imagem: Marcos Santos/USP Imagens

No fim daquele ano, pipocaram artigos científicos acusando a falta de diversidade nos bancos genômicos usados na pesquisa. Lygia aproveitou que a comunidade estava encarando o problema e se uniu a Tábita, que conduzia pesquisas populacionais usando dados de DNA de brasileiros.
Aí começou outra saga. Por um lado, procuravam empresas ou entidades para financiar a iniciativa. Por outro, precisavam de gente disposta a permitir que seu DNA fosse mapeado. Este problema foi solucionado porque já é feito no Brasil um levantamento abrangente de dados clínicos, o Elsa Brasil, que coleta as informações de 15 mil servidores públicos.
Conseguir o dinheiro não foi coisa fácil. Elas tiveram um projeto recusado duas vezes pela Welcome Trust, uma agência britânica de financiamento científico que oferecia 4 milhões de libras. Ouviram "não" de outras tantas empresas, que Lygia prefere não dizer quais são. Até que no começo de 2018 recorreram ao Google. Ainda assim, o apoio só foi formalizado no começo de dezembro.
Se você está se perguntando por que o Brasil ainda não tem um desses bancos, olhe as cifras do projeto. Sequenciar os 15 mil genomas custaria cerca de US$ 7 milhões (R$ 28 milhões), estima Lygia. As patrocinadoras fornecerão estruturas apenas para processar os primeiros 3 mil genomas. Para o restante, as pesquisadoras terão de captar novos recursos.

Por que mapear o DNA do brasileiro?

Apesar de geneticistas, as duas possuem interesses diferentes. Tábita enxerga a genética como uma união entre biologia e história, capaz de encontrar no DNA dos indivíduos as pistas para iluminar o passado. Em uma de suas pesquisas, Tábita descobriu que os afrobrasileiros tinham uma variabilidade genética tão rica quanto a encontrada na África.
A gente arrancou da África 5 milhões de escravos. O que descobri é que há no Brasil quase todas as linhagens de DNA mitocondrial encontradas na África. Isso quer dizer que não trouxemos só número, mas também uma grande diversidade.Tábita Hünemeier

Tábita Hünemeier, professora da Universidade de São Paulo (USP)Tábita Hünemeier, professora da Universidade de São Paulo (USP) - Reprodução/YouTube
Imagem: Reprodução/YouTube

Já Lygia quase virou engenheira, pulou a cerca para o lado da física e abraçou a genética só no mestrado para não voltar mais. O que a atrai é o estudo da genética para compreender o surgimento de doenças e encontrar formas de curá-las.
Ela estuda terapia gênica desde quando o assunto ainda era inexplorado na academia, no fim dos anos 1980. "Na época, a gente ia curar tudo com terapia gênica. Você vê como é a ciência. Só agora vemos os primeiros tratamentos sendo comercializados. A ciência responsável demora a virar produto."

A falta de diversidade

Mas um assunto faz as duas convergirem: a diversidade. Algo que, quando está em falta, não penaliza apenas as pessoas excluídas, mas impede que a ciência evolua.
Descendente de imigrantes alemães e nascida no interior do Rio Grande do Sul, onde todos tinham características físicas parecidas com as suas, a loira de olhos claros Tábita não esconde o desconforto que sentiu ao chegar a São Paulo para trabalhar como pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP). Não encontrou por lá a diversidade que buscava mapear em suas pesquisas.
"O privilégio é invisível, mas, aqui [em SP], ele ficou claro. Quando entrei na USP, vi que todos os alunos eram brancos. No Rio Grande do Sul, apesar de ter mais gente branca, a federal [UFRGS] tinha muito mais aluno negro do que na USP", diz.
Se nos bancos universitários as demais etnias eram raras, as várias facetas do brasileiro surgiam aos montes em meio ao trabalho científico. Ainda na UFRGS, ela investigou ao lado de outros pesquisadores quais genes respondem pelas características físicas das populações latino-americanas. A coleta de amostras de DNA gerou uma das primeiras tentativas de rastrear as diferenciações genéticas do brasileiro, ainda que focasse algumas mutações e não fosse tão amplo.
A gente precisava de algo que fosse representativo. Não adianta fazer [pesquisa] em São Paulo e coletar só de Higienópolis, porque é pegar [DNA] europeu. Para coletar essa amostra, fui a várias cidades da Bahia, de Minas Gerais. Por mais que você saiba, quando começa a ver as pessoas, nota que a variabilidade é gigantesca. Pensa na minha realidade. Sou de uma cidade que só tem alemão, sai de lá e fui morar na Inglaterra. Meu conhecimento de Brasil era pequeno.Tábita Hünemeier
Para Lygia, o calo da falta de diversidade apera de outra forma. As terapias gênicas que ela estuda já produzem maravilhas. Está em estudo clínico, por exemplo, a modificação genética das células do sistema imunológico de pessoas com câncer. Por alguma razão, elas deixam de atacar o tumor e a doença avança. O tratamento muda isso.
O combate ao HIV passou a incorporar a engenharia genética. Nesse caso, a medula óssea do infectado é retirada. E é modificado o gene responsável pela produção da proteína que favorece a entrada do vírus nas células. Ao devolver a medula para o paciente, ele passa a produzir sangue que resiste melhor ao avanço do HIV. "Esse aumento na eficiência da edição de genoma para corrigir problemas é revolucionário."
Há um porém: o público-alvo desses tratamentos é restrito e passa longe de gente como eu e você. Isso porque essas pesquisas são desenvolvidas com base nos genomas sequenciados já disponíveis, ou seja, de brancos. E não pense que isso quer dizer qualquer um que tenha a pele clara. Em torno de 80% dos dados nesses bancos são de europeus.
É uma questão ética. Para quem a gente está fazendo essa medicina do futuro? Quem vai se beneficiar de todas essas pesquisas? E há a óbvia perda de oportunidade de não estudar outras populações. Deixamos de fazer descobertas, que ficam escondidas nos genomas de outras populações
Lygia da Veiga Pereira
Se 99,9% do genoma é igual para todos os seres humanos, as diferenças estão presentes em apenas 0,01%. "É isso o que me faz diferente da Gisele Bündchen", brinca Lygia. Mas estamos falando de 0,01% das 3,2 bilhões de bases nitrogenadas que compõem o genoma. Com isso, criar um tratamento que atenda as particularidades de uma determinada população pode gerar uma terapia que inútil para outra.

Dados do SUS?

Diante dos cadastros genômicos existentes no mundo, o plano das pesquisadoras parece modesto. Em países como Estados Unidos, China e Coreia do Sul, 1 milhão de indivíduos tiveram seu DNA mapeado, enquanto no Reino Unido foram outros 500 mil. É por isso que elas não querem ficar parar em 15 mil DNAs sequenciados. "Eu pretendo chegar a uma base de 200 mil", diz Lygia.
A pesquisadora explica que, enquanto inicia os trabalhos com os dados da Elsa Brasil, já começa a identificar outras fontes de DNA para ser sequenciado. Desde que o DNA do Brasil foi lançado, muitas pessoas já ligaram ou mandaram emails querendo se voluntariar para participar. Mas as pesquisadoras miram um pouco mais alto.
"Para chegar aos 200 mil brasileiros, a gente teria que eventualmente ter alguma conexão com o SUS. Se o SUS já tivesse prontuário eletrônico, seria maravilhoso, porque já teríamos bancos de dados da saúde do brasileiro. Aí a gente poderia entrar com o genoma."
Isso é por ora só um desejo, apesar de o Ministério da Saúde já ter manifestado interesse no projeto. Se vingar, obviamente, dependeria do consentimento dos donos dos dados. "A pessoa tem todo direito de não querer participar ou de ter medo de compartilhar seus dados. Mas o que a gente vê acontecendo em outros países é que há um percentual suficientemente alto de pessoas que topa participar para tornar esses projetos realidade", diz Lygia.

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