Eis talvez a maior qualidade desta obra: com raro talento é constituída a relação entre subjetividade dos personagens e as vicissitudes do tempo histórico
18/12/2019
Thiago B. Mendonça
O surgimento de um grande diretor não é algo corriqueiro. Kantemir Balágov, de apenas 28 anos, é possivelmente o maior nome do novo cinema russo. Já havia demonstrado sua importância em seu notável primeiro filme, 'Tesnota'. Agora, com 'Uma mulher alta', volta a surpreender ao apresentar um aterrador retrato das mulheres soviéticas após a Segunda Guerra. O filme foi um dos escolhidos para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e foi exibido no Festival de Cannes, onde levou o prêmio de melhor direção na Mostra 'Un Certain Regard'.
No filme, Lia (Viktória Mirochnitchênko), a mulher alta do título, trabalha em um hospital russo, onde são tratados soldados feridos. Ela vive em uma espécie de casa coletivizada, e ali procura sobreviver ao racionamento de comida e à miséria que a cerca. É nesse "tempo de gente cortada/ de mãos viajando sem braços/ obscenos gestos avulsos" (como descreveu a Segunda Guerra o poeta Carlos Drummond de Andrade) que ela sobrevive, procurando servir com integridade ao hospital. É o momento do fim do conflito. Sua amiga Masha (Vasilisa Perelygina) retorna do campo de batalha procurando colher os cacos de sua vida destroçada. É a partir destas duas personagens que nos é revelado o que a vida poderia ter sido e não foi. Há um vazio a ser preenchido, por uma história de amor, por um filho, por alguém que dê fim à miséria, que não é só material. Não há vitória a ser celebrada. Como o próprio autor afirma, é um filme que vai contra uma tendência atual dos russos de valorização do heroísmo nacional. Não há cenas de batalhas, não há imagens das cidades destruídas. O cenário é sóbrio, valorizando menos os danos espaciais, e mais os subjetivos. A violência da guerra transborda por suas bordas. É a relação de Lia e Macha, talhadas pelas feridas do conflito armado, que nos conduz. E se a relação é patológica, é porque assim é o mundo. Eis talvez a maior qualidade desta obra: com raro talento é constituída a relação entre subjetividade dos personagens e as vicissitudes do tempo histórico.
No filme, Lia (Viktória Mirochnitchênko), a mulher alta do título, trabalha em um hospital russo, onde são tratados soldados feridos. Ela vive em uma espécie de casa coletivizada, e ali procura sobreviver ao racionamento de comida e à miséria que a cerca. É nesse "tempo de gente cortada/ de mãos viajando sem braços/ obscenos gestos avulsos" (como descreveu a Segunda Guerra o poeta Carlos Drummond de Andrade) que ela sobrevive, procurando servir com integridade ao hospital. É o momento do fim do conflito. Sua amiga Masha (Vasilisa Perelygina) retorna do campo de batalha procurando colher os cacos de sua vida destroçada. É a partir destas duas personagens que nos é revelado o que a vida poderia ter sido e não foi. Há um vazio a ser preenchido, por uma história de amor, por um filho, por alguém que dê fim à miséria, que não é só material. Não há vitória a ser celebrada. Como o próprio autor afirma, é um filme que vai contra uma tendência atual dos russos de valorização do heroísmo nacional. Não há cenas de batalhas, não há imagens das cidades destruídas. O cenário é sóbrio, valorizando menos os danos espaciais, e mais os subjetivos. A violência da guerra transborda por suas bordas. É a relação de Lia e Macha, talhadas pelas feridas do conflito armado, que nos conduz. E se a relação é patológica, é porque assim é o mundo. Eis talvez a maior qualidade desta obra: com raro talento é constituída a relação entre subjetividade dos personagens e as vicissitudes do tempo histórico.
'Uma mulher alta' impressiona também pela forma como trabalha o tempo. São situações sucessivas que se apresentam, construindo um retrato monstruoso dos efeitos do conflito. É essa sucessão, feita de modo seco, sem sentimentalismo, que nos revela a forma como a guerra afeta a subjetividade das personagens, que aparecem a maior parte do tempo caladas frente às situações. Há uma certa sabedoria neste silêncio, marca daqueles que percebem que não há nada a ser dito perante o horror. Distante de uma tendência forte do cinema soviético da segunda metade do século XX, em que o uso de tempos mortos construía situações mais reflexivas, Balágov estrutura seu filme de modo que as ações se sucedam de uma maneira quase brutal. A partir do estado de entorpecimento ou de embrutecimento dos corpos dos personagens, nos deparamos com a destruição física e psíquica destes, num trabalho consistente de direção. Curvados, melancólicos, calados, seus corpos respondem ao momento histórico. A forma contida com que Balágov apresenta seus personagens ressalta essa violência. Não há espaço para o drama pessoal em um mundo destroçado. O filme constrói uma espécie de naturalismo moderno, onde personagens soltam ruídos, realizam movimentos ou reações corporais que remetem a bichos acuados em situações limites. Essa animalização do ser humano corresponde à destruição da guerra. Os destroços não estão nas cidades, mas nas pessoas. Subjetividades dilaceradas, vidas destruídas, mas que, mesmo assim, insistem em seguir. A bela fotografia da jovem Kseniya Sereda, utilizando-se em alguns momentos de imagens quase monocromáticas, fundamentalmente o ocre, o verde e o vermelho, acentua a sensação de patologia e esgotamento.
Mas o filme vai além. No final da Segunda Guerra Stalin anunciava que 7 milhões de soviéticos, entre militares e civis, haviam falecido. O número altíssimo ainda era menor do que o de alemães mortos. Nikita Khrushchov reviu esses dados: falava em 20 milhões de mortos. Hoje estima-se que os números sejam muito maiores. Restam os vivos em um mundo trágico. Nos pequenos gestos cansados há uma sobrevivente humanidade. Masha sonha com um filho, a esperança de recomeço. O romance com um garoto de família abastada em um país destruído tampouco é uma redenção. A vida resiste afinal, mas Masha verá desfiar seu fio? O que restou para os que ficaram?
Kantemir Balágov é um nome a ser lembrado. Seu primeiro longa-metragem, 'Tesnota', já revelava um diretor atento ao mundo contemporâneo, pensando as pequenas histórias de seus personagens diante da grande história de seu país. Era a Rússia do capitalismo selvagem, pós queda do Muro, que se apresentava em um retrato aterrador. Neste novo trabalho seu cinema avança, ao mesmo tempo em que retrocede no tempo: não há nada de heróico na União Soviética destroçada pela guerra. Se havia outra escolha, se o destino poderia ser outro, se o massacre evitou o mal maior do nazismo, cabe aos historiadores proclamarem. Mas o resultado em si é desolador.
Muitos soviéticos buscam compreender as marcas desse passado. A mais célebre é a escritora Svetlana Alexijevich, prêmio Nobel em 2015, que, de um modo muito particular, narra em seus livros o que foi a experiência soviética. Balagov não só tem familiaridade com a obra da escritora, como se inspirou no livro 'A guerra não tem rosto de mulher' para a feitura de seu roteiro (como afirmou em entrevista para a crítica Ela Bittencourt na revista Film Coment). Se há uma tendência no cinema russo de recuperar a "história gloriosa" do país, há muito mais vigor neste cinema feito a contrapelo da hegemonia nacionalista. O cinema de Kantemir Balágov nos surpreende pelo afeto que surge por caminhos tortos e pela humanidade que consegue exprimir-se em meio à violência e à carestia. Ele nos ensina como sobreviver à barbárie.
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