O projeto Luto do Homem se dedica a falar sobre as dores dos homens enlutados e vai produzir um Web documentário sobre o tema.
Quando minha esposa ficou grávida da Joana, a barriga virou a atenção de todas as pessoas ao nosso redor. Desde o momento do positivo ela havia deixado de ser a mulher que sempre foi e havia virado, aos olhos do mundo, uma mãe.
Isso sempre foi algo que a incomodou, mas que me parecia que ela havia assumido como uma consequência natural do processo de gerar uma vida. A mãe vinha antes de qualquer coisa e isso era foda.
Isso sempre foi algo que a incomodou, mas que me parecia que ela havia assumido como uma consequência natural do processo de gerar uma vida. A mãe vinha antes de qualquer coisa e isso era foda.
Ela era constantemente vigiada e cobrada por isso: as pessoas a entreolhavam quando tomava um remédio, quando dava um pique pra conseguir pegar o ônibus ou quando ela estava perto de bebidas (mesmo sem ter o hábito de beber). Minha esposa era mãe, mesmo que ela não sentisse plenamente esta maternidade ainda.
A mim, me diziam que eu só saberia o que é ser pai depois. Alguns me diziam que depois que ouvisse o primeiro choro; outros falavam que eu me tornaria pai quando cortasse o cordão umbilical; e para alguns, minha paternidade só seria nasceria quando eu pegasse minha filha no colo pela primeira vez.
Para o mundo, eu ainda não era pai. Eu era alguém que deveria cuidar da minha esposa, ser forte pra ela, fazer de tudo pra protegê-la e garantir e prover suas necessidades de mãe. Eu seria pai só depois. Aquele não era meu momento, era dela.
Joana nasceu com parada cardiorespiratória, completamente azul e mole. Foi direto pro CTI. Lá ficou 6 dias e não resistiu. O choro que tanto me falaram eu não ouvi. O cordão que eu cortaria eu nunca cortei. E quando peguei Joana no colo pela primeira vez ela já estava morta. Foi neste momento, com ela em meus braços enquanto eu só conseguia dizer repetidamente “Ô filha…” que me vi perguntando pela primeira vez: “Eu sou pai?”
Ninguém me via como pai. O mundo me negou a paternidade. Eu era invisível. Depois eu entendi porque…
O amor é mais forte que a morte
Eu gosto muito de uma história que eu descobri faz pouco tempo.
Samuel Finley Breese Morse era pintor. Ganhava a vida estudando os clássicos como Michelangelo e Da Vinci e sendo contratado para arte comissionada. Desfrutava de certo respeito e proeminência como artista. Morava em New Haven, no estado americano de Connecticut.
Sua esposa havia engravidado de seu terceiro filho e ele acabara de receber uma encomenda pela cidade de Nova York para um retrato e ele deveria viajar uns 500 km, até Washington D.C. E assim ele foi, deixando sua esposa grávida e seus dois filhos.
Enquanto se dedicava ao trabalho, certo dia lhe chega um mensageiro a cavalo, muito cansado de uma longa viagem, esbaforido, e lhe entrega um bilhete de seu pai que dizia somente e simplesmente: "Sua amada esposa está convalescente". Samuel larga absolutamente tudo, sobe em um cavalo e corre até sua cidade em uma longa jornada de volta. Ao chegar descobre que ela havia falecido durante a viagem e, inclusive, já havia sido enterrada.
Ele fica completamente devastado com a morte repentina da esposa, mas principalmente com o fato de não ter tido tempo para vê-la e se despedir. E promete pra si mesmo que faria de tudo pra que ninguém mais precisasse passar pelo que ele passou. Samuel então passa a dedicar a sua vida a inventar algum meio tecnológico que encurtasse tempo e comunicação entre as pessoas.
Samuel F. B. Morse é o inventor do Telégrafo, que revolucionou a comunicação mundial. O código é Morse por causa dele.
A morte levou a sua esposa, mas foi o seu amor por ela que o fez mudar o mundo. E eu gosto de pensar que até o mais odioso dos comentários na internet (esta tataraneta do telégrafo) só é possível, no fundo, por um ato grandioso de amor.
Eu descobri da maneira mais dolorida possível o que tem gente que passa a vida inteira sem perceber: o amor é mais forte do que a morte.
Foto por Ante Hamersmith
É este amor que me fez e me faz pai. É este amor que ultrapassa a dor e o sofrimento de me lembrar todos os dias da experiência que tive e das promessas não cumpridas que me foram feitas e descobrir que eu era pai muito antes de eu mesmo me dar conta. O amor pela Joana não morre. Não morrerá. E é deste amor que nasceu minha paternidade.
O amor invisível
Este amor me levou a perceber o quanto o mundo e as pessoas em geral não conseguem enxergá-lo, pelo menos não do jeito que ele realmente se manifesta: o amor que vence a morte. Afinal, a morte é um tabu, talvez o maior da humanidade. Lidar com nossa finitude nunca foi algo fácil. Viver no mundo de hoje talvez seja menos ainda.
O luto masculino é quase sempre invisível. Não se vê o sofrimento do homem frente a perda e a morte. Porque não querem ver. Porque o homem deve ser forte, deve ser a pedra que sustenta a vida após a perda. Ele deve aguentar tudo. E assim, seu sofrimento, sua dor não tem lugar. Assim foi comigo. Assim deixou de ser.
Assim surgiu o grupo “Luto do Homem”, um grupo de acolhimento a homens enlutados. O grupo acontece através de encontros conduzidos através de temas e demandas dos próprios homens participantes. E assim, no encontro, encontro com o outro, encontro consigo mesmo, encontro com a pessoa que se foi, o amor surge como protagonista do processo de luto.
É este luto que passa a guiar e abrir caminhos para o homem enlutado. É ele que questiona e mostra novas possibilidades de se viver apesar da perda. Que mostra como uma masculinidade muitas vezes intoxicada por processos singulares e ao mesmo tempo estruturais da nossa sociedade podem impedir a vivência saudável do luto.
O luto é um processo de aprendizagem.
É aprender a se encontrar no amor. A perda significativa de um ente querido pode muitas vezes desmobilizar o homem, que não aprendeu em sua vida a entrar em contato com suas emoções e sensibilidades. A hegemonia estrutura uma masculinidade patriarcal, fundada em uma brutalidade de si mesmo, em uma negação de si, em uma tentativa contraposição. E assim, o homem se nega no sofrimento, no enfrentamento da morte.
“Eu não sei sentir”
Essa é uma frase que muitos, de formas diferentes, chegam dizendo nos encontros do grupo. Sentir é algo que nós não aprendemos. Sabemos fazer. Somos exímios fazedores. De cara com a morte, tentamos enfrentá-la fazendo, tocando a papelada do enterro, ligando pra todos, pegando coisas e sempre se preocupando com todo mundo. Mas com a gente não há (quase) ninguém que se preocupe. Nem nós mesmos. Porque pro mundo não importa como nos sentimos desde que façamos o que se espera, que sejamos fortes pros que estão ao redor.
Acontece que o mundo não vê a nossa angústia, o nosso medo ao lado do caixão, o nosso choro solitário no banheiro, quando há sensibilidade suficiente pra isso. É preciso ver. Porque há muito sofrimento e dor no homem. E é nessa fragilidade, (esta que muitos entendem como algo ruim e desprezível) que reside a possibilidade de descoberta do amor incondicional. É nela que o homem se refaz, como um novo ser e como um novo homem. É no contato com esta dor que ele se redescobre e encontra a pessoa perdida, que se descobre um ser que ama.
O luto é uma forma de amor.
Esse amor incondicional pela mãe, pelo filho, pelo amigo que sucumbiu à morte, é esse amor incondicional que constrói novos significados pra vida.
Eu amo e por isso sou pai. Eu amo e por isso minha filha existe. Eu amo e por isso a morte passa a ser secundária.
O amor passa abrir os caminhos e o sofrimento fica como acompanhante, de mãos dadas, sempre pra lembrar que é o amor que fica a frente das coisas.
Um webdoc para falar do amor de homens diante da morte
Pensando assim, depois de um ano de existência, o “Luto do Homem” agora toca uma iniciativa fundamental para dar visibilidade ao luto masculino. Estamos com uma campanha de financiamento coletivo na plataforma Kickante para construirmos um Web Documentário.
Queremos dar visibilidade a histórias invisíveis de dores e amores frente a perda para a morte. Queremos reverberar histórias de homens enlutados por meio de depoimentos coletados, individualmente, em episódios, sobre como os participantes lidam com seu(s) luto(s), sob o ponto de vista deles mesmos.
Imagina só se este projeto, através dos vídeos, chegando no celular de homens que consigam perceber que outros homens passam por situações parecidas com a deles e conseguindo, então, falar sobre isso.
Talvez, e assim esperamos, consigamos ajudar essas pessoas a entender que lidar com perdas é legítimo e um direito do homem, que é, antes de tudo, alguém que ama.
Não há nada maior do que o amor. Hoje eu sou um pai que se consegue se sentir feliz com sua paternidade. Mas que sabe que esta felicidade é acompanhada de momentos de sofrimento, de angústia. É assim que encontro minha filha: com amor, de mãos dados com o meu sofrer. E considerando as singularidades de cada um, não conheço alguém que ame que também não sofra.
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