Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Na Índia, mulheres grávidas convivem com dores que são ignoradas pelo sistema de saúde

“Parecia que minha vagina estava quebrada.”

By Piyasree Dasgupta, HuffPost India
17/12/2019
A dor da DSP (Disfunção da Sínfise Púbica) é intensa, mas basicamente...
ILLUSTRATION BY SAMIA SINGH

A dor da DSP (Disfunção da Sínfise Púbica) é intensa, mas basicamente ignorada na Índia.


NOVA DÉLI – Ilamathi tentou descrever a dor para a mãe, mas não conseguia encontrar as palavras certas. Ela estava no quarto mês de gravidez, e sua pélvis parecia quebrada, mas a mãe insistia que aquilo não era possível – Ilamathi ainda conseguia sentar, o que não conseguiria em caso de fratura. Mas toda vez que Ilamathi tentava se levantar ou se virar na cama, a sensação era de ter tomado um chute na virilha: uma dor aguda e penetrante, que a levava às lágrimas.

Ainda assim, a maioria das mulheres à sua volta se recusava a acreditar que havia algo errado. Ilamathi não deveria pensar muito no assunto, diziam elas. Mas a dor só piorava. “Não conseguia dormir, não conseguia andar, nem subir na garupa de uma bicicleta e sentia uma dor enorme se caminhasse por mais de dez minutos”, disse em conversa por telefone com o HuffPost India.
O diagnóstico que ela recebeu não foi muito diferente do que outros há haviam dito a ela. O ginecologista de Ilamathi, um médico respeitado em Bagalore, insistia que a dor era normal e estava relacionada ao crescimento do bebê. O ultrassom também estava normal. Mas ela sabia que algo não estava certo.
“O médico não prescreveu nenhum exercício ou remédio. Disse apenas que eu deveria aturar a dor”, disse. Ela tentou. Continuou cuidando da casa, porque, segundo sua família, manter-se ativa seria a melhor maneira de ter um parto natural.
Já no oitavo mês de gravidez, ela viajou para Salem, sua cidade natal, no estado de Tamil Nadu. Ilamathi tinha se acostumado à dor – dormia de barriga para cima e se levantava lentamente, se apoiando em algo. Ela parou de andar de bicicleta e aprendeu a tolerar a dor. Quando o sofrimento era demais, ela rezava.
O médico não prescreveu nenhum exercício ou remédio. Me disse só que eu deveria aturar a dor.
Em Salem, quando as orações não funcionavam mais e a dor só piorava, outro médico recomendou que ela fosse a um fisioterapeuta. Era a primeira vez que alguém acreditava em Ilamathi. Na realidade, o fisioterapeuta não ficou nem um pouco surpreso – ela já tinha visto várias outras grávidas sofrendo de um mal parecido.
A dor não era parte normal da gravidez, mas sim uma problema chamado disfunção da sínfise púbica, popularmente conhecido pela sigla “DSP”. Não havia solução imediata, apenas um alívio temporário, mas, depois de meses ouvindo que sua dor não existia, Ilamathi finalmente se tranquilizou.
Pouquíssimos casos de DSP são relatados anualmente na Índia; portanto, há pouca conscientização sobre o problema. Mas, quando a reportagem do HuffPost India publicou alguns dos sintomas em vários grupos do Facebook, quase uma dezena de mulheres responderam, descrevendo dores intensas e falando sobre a dificuldade de obter um diagnóstico correto e preciso.
Ficou claro que existe uma cultura que simplesmente ignora a dor das mulheres ― não só porque muitas vezes elas não são capazes de encontrar as palavras certas para descrever o que estão sentindo. Fisioterapeutas entrevistados pelo HuffPost India dizem que vários fatores contribuem para o problema, incluindo mudanças no estilo de vida que complicam a gravidez e o parto. Mas, como elas têm menos renda que os homens, a dor delas conta menos para o Estado.
Ficou claro que existe uma cultura que simplesmente ignora a dor das mulheres – muitas vezes por outras mulheres e médicos --, porque elas não são capazes de encontrar as palavras certas para descrever o que estão sentindo.
Em um grupo do Facebook criado por uma norte-americana, uma mulher que sofre de DSP escreveu: “33 semanas e sinceramente estou sentindo tanta dor que chorei o caminho inteiro quando tive de ir a  uma loja. Me sinto sozinha e inútil”.
Assim como Ilamathi. Nas últimas semanas antes do parto, ela mal conseguia caminhar. Mesmo assim, ela estava empolgada – a consulta com a fisioterapeuta tinha sido ótima, mesmo que a dor tivesse melhorado pouco.
“Nos quatro meses anteriores, só me diziam que minha dor era normal e que eu estava exagerando. Ninguém da minha família tinha ouvido falar de algo parecido”, disse. As mulheres mais velhas da família estavam cansadas das reclamações: “Você não pode ficar choramingando por causa de uma dorzinha. Como vai ser uma boa mãe?”, contou.
“Me sentia isolada e sozinha. Comecei a questionar se estava dando importância demais à dor. Quando me diziam que era exagero, comecei a achar que estava mesmo sendo muito dramática”, disse. Ilamathi não conhecia ninguém que tivesse passado por algo parecido, e as conversas com outras grávidas sempre se restringiam às dificuldade da gravidez e de ser mãe.

O que é a DSP

Nikhil Datar, um ginecologista de Mumbai, afirmou que a DSP como uma espécie de “jogo”, um movimento mínimo de uma articulação chamada sínfise púbica, que une os ossos púbicos. É uma articulação muito rígida. Quando há um pouco de “folga”, o resultado é desconforto e dor. Uma disfunção, como a DSP, envolve uma “folga” maior entre os ossos – e dores muito mais intensas.
Conforme a gravidez avança, afirma Datar, um hormônio chamado relaxina começa a relaxar os ligamentos. Isso abre espaço para a passagem do bebê. “Normalmente, a articulação deveria voltar ao estado normal depois do parto, pois os hormônios como a relaxina e a progesterona não são mais produzidos”, afirma Datar.
A fisioterapeuta Yogyata Gandhi, especializada em grávidas, disse que a falta de força muscular na parte inferior do corpo pode contribuir para o problema.
“Vemos maior incidência de DSP porque as mulheres não se sentam mais tanto no chão ou ficam de cócoras”, diz Gandhi. “Não nos sentamos no chão de pernas cruzadas, não usamos banheiros tradicionais indianos. Isso leva a pélvis mais estreitas. Durante a gravidez, ela pode se expandir de maneira desigual.”

Desprezo e silenciamento

Várias mulheres entrevistadas pelo HuffPost India afirmaram ter ouvido que a dor na pélvis é normal durante a gravidez. O isolamento descrito por Ilamathi também foi sentido por Basundhara Ghosh, uma especialista em marketing digital que descreveu sua situação num post no Facebook, semanas depois de dar à luz seu filho, em junho passado. 
Ghosh disse ao HuffPost India que no começo do segundo trimestre de gravidez ela decidiu tirar um cochilo. “Quando tentei me levantar, ouvi um clique nos meus ossos. Senti um pouco de pânico, me acalmei e fui para a cozinha”, diz ela. Horas depois, começou a dor. Ghosh diz que a sensação era de esmagamento da virilha. Ela foi ao médico no dia seguinte, que lhe disse que a dor pélvica era normal  ― mas o caso dela parecia DSP. Quando Ghosh perguntou ao médico como aliviar a dor, recebeu uma receita de paracetamol.
Quando tentei me levantar, ouvi um clique nos meus ossos.
“O analgésico ajudou com a dor, mas ela voltava com força total quando passava o efeito”, diz Ghosh. “O médico disse que isso poderia acontecer, mas tampouco poderíamos fazer um raio-X, porque a radiação afetaria o bebê. Fiquei maluca”, diz ela. “E me perguntei: ‘como vou viver com essa dor? Parece um osso quebrado’.”
Ghosh começou a perguntar para outras mulheres se aquilo era normal. Algumas perguntaram se ela estava fazendo “sexo selvagem”. “Mais de uma me perguntou se eu estava fazendo coisas loucas na cama, quase tirando sarro da minha cara. Foi tão humilhante que parei de falar no assunto.”
Na sua primeira gravidez, em 2017, Aarti Mehta teve de ser levada ao pronto-socorro quando porque não conseguia levantar da cama. “Não conseguia me mexer e ouvia um clique no osso sacro quando tentava levantar. A dor era insuportável.”
Um fisioterapeuta do hospital a diagnosticou com DSP. Ela estava sentido dores havia tempo, mas amigos e parentes sempre falavam em “dores normais da gravidez”. O ginecologista disse somente que a dor passaria depois do parto.
Apesar de ter acesso a fisioterapeutas e médicos e receber o diagnóstico correto rapidamente, Mehta sentia que ninguém entendia ou reconhecia sua dor. Pelo menos não da maneira como ela a sentia.
Apesar de ter acesso a fisioterapeutas e médicos e receber o diagnóstico correto rapidamente, Mehta sentia que ninguém entendia ou reconhecia sua dor. Pelo menos não da maneira como ela a sentia. Ela lembra da luta que era descrever e explicar a dor. Ela foi procurar respostas na internet.
“Tentei tudo o que encontrei na pouca literatura disponível. Fisioterapia, quiropraxia, pilates, até mesmo reiki. Nada funcionou”, disse. A fisioterapia, aliada a compressas quente e frias, ajudavam um pouco. Quando a dor era extrema, ela atava um pedaço de tecido bem apertado na virilha.
Aishwarya Parijat, dona de uma loja de roupas, também recorreu à internet para entender a dor que sentia. No sétimo mês de gravidez, ela se deitou para um cochilo vespertino e percebeu que não conseguia fechar as pernas.
“Parecia que minha vagina estava quebrada”, diz Parijat. Seu médico disse que a explicação era a proximidade do parto: a cabeça do bebê estava se aproximando do cérvix, daí a dor.
Parecia que minha vagina estava quebrada.
Aishwarya Parijat, comerciante, em entrevista ao HuffPost India.
“Me disseram que eu deveria aguentar. Não podia tomar analgésico porque estava no sétimo mês”, diz Parijat. Então ela começou a dormir com três travesseiros entre as pernas. “A dor era tanta que, se por acaso eu fechasse as pernas, a sensação era de uma facada na virilha.”
Quando o HuffPost India perguntou a Datar sobre as queixas das mulheres – o desprezo generalizado por seus relatos de dor ―, ele afirmou que sempre recomenda fisioterapia.
“Mas você não pode prescrever analgésicos fortes e tem de esperar até depois do parto para lidar com o problema. Acho que alguns médicos simplesmente não se comunicam direito com suas pacientes”, afirma ele. Ghosh afirmou ao HuffPost que nenhum médico tentou explicar para ela o que estava acontecendo. O pouco que ela conseguiu descobrir for via internet. 
Parijat, Ghosh e duas outras mulheres disseram que caminhavam como “pinguins ou patos”. No caso de Ghosh, a dificuldade para andar era tanta que as pessoas perceberam a gravidez antes que ela estivesse pronta para contar a notícia aos colegas de trabalho.
Basundhara Ghosh teve de pesquisar na internet sobre a DSP, porque ninguém parecia entender seu
SAYANTAN SARKARBasundhara Ghosh teve de pesquisar na internet sobre a DSP, porque ninguém parecia entender seu problema.


Foi um “coach de gravidez” que Aishwarya descobriu na internet que recomendou que ela procurasse um fisioterapeuta. “Mas não encontrei muita coisa sobre a Índia. Acabei pesquisando informações em blogs estrangeiros.”
Gandhi, a fisioterapeuta de Mumbai, afirma que mulheres na faixa dos 50 e 60 anos tiveram menos oportunidades para falar do assunto e, portanto, não são as pessoas ideais para buscar ajuda. Além disso, ele diz que considerar normal a dor durante a gravidez leva as mulheres a evitar o tema.
“Espera-se que as mulheres aguentem as dores durante a gravidez. O resultado disso é que elas ficam em silêncio”, afirma ela. Como mostra o caso de Ilamathi, até mesmo quando elas procuram ajuda especializada a resposta muitas vezes está longe de ser satisfatória.
Espera-se que as mulheres aguentem as dores durante a gravidez. O resultado disso é que elas não falam do assunto nem buscam ajuda.
A consultora de gravidez Sonali Shivlani diz ao HuffPost India que uma das explicações para o diagnóstico tardio do DSP é que os médicos geralmente consideram as queixas das mulheres paranoia ou excesso de cautela.
“Às vezes as mulheres são paranóicas. Mas algumas perguntas pontuais e específicas podem indicar se elas realmente precisam de ajuda”, disse Shivali. Ela também aponta a narrativa segundo a qual o sofrimento faz parte da gravidez.
“As mulheres só ouvem uma coisa quando se queixam: ‘É normal’. E também costumam escutar coisas como ‘É lógico que vai acontecer alguma coisa, seu corpo está mudando’”, diz ela.
Demorou anos para que as mulheres levassem a dor a sério ― da depressão pós-parto à endometriose. É como se sentir parte de ser mulher.

Superstição

As indianas também são vítimas de uma cultura muito supersticiosa e resistente a novas ideias. Os fisioterapeutas Gandhi e Shilpi Srivastav apontam que na Índia é comum aconselhar as grávidas a não se exercitar demais.
As mulheres só ouvem uma coisa quando se queixam: ‘É normal’.
“Se o DSP ocorre durante a gravidez, a maioria dos ginecologistas tem receio de encaminhar as pacientes para fisioterapeutas ou ortopedistas. Eles estão desatualizados em relação à fisioterapia pélvica”, afirma Srivastav.
Aishwarya, por exemplo, foi repreendida pela família por passar muito tempo na academia. Quando a dor piorou, seus parentes disseram que ela havia se lesionado na academia.
“‘Você faz atividade físicas demais’” foi literalmente a reação inicial das pessoas.  Mas minha fisioterapeuta sugeriu que as mulheres grávidas deveriam fazer agachamentos, isso ajuda”, disse ela. A dificuldade de encontrar empatia causou uma depressão profunda na jovem de 29 anos. “Eu não dormia havia quatro meses, mas ninguém me entendia. Achavam que era drama ou que eu tinha feito algo irresponsável.”
Quando Ghosh viajou para Kolkata para o parto, seu ginecologista ―  conhecido por favorecer partos normais—não deu ouvidos às preocupações sobre DSP. “Ele disse que todas as mulheres têm deficiência de cálcio. Nada preocupante”, diz Ghosh ao HuffPost India. Perplexo, Ghosh teve de procurar outro médico, que reconheceu que a dor poderia ser um problema se ela quisesse ter um parto normal.
Ghosh fez cesariana. Semanas depois, ainda sentido dores, ela finalmente visitou um cirurgião ortopédico, que a diagnosticou com osteíte púbica, uma inflamação que se agravou porque o DSP não havia sido tratado a tempo.
A economia da dor
A questão do DSP está intimamente relacionado com a participação das indianas na economia do país. A dor é discutida quando é comercialmente viável – quando interessa às empresas farmacêuticas e ao setor médico. A economista feminista Mitali Nikore observa que a dor das mulheres atrai menos interesse e pesquisa porque, na maioria das economias, elas têm menor poder de compra do que os homens.
“A maioria das pesquisas médicas é facilitada pelas empresas farmacêuticas. Nos Estados Unidos e no Reino, há um aumento constante de pesquisas sobre condições médicas específicas para mulheres, mas ainda faltam muitos recursos financeiros”, afirma ela.
Na Índia, as mulheres têm pouquíssimo dinheiro para gastar consigo mesmas, então não é surpresa que haja pouco interesse em desenvolver produtos para a saúde feminina.
“Na Índia, as mulheres, especialmente as mães, são quase condicionadas a colocar sua própria saúde em segundo plano. Os gastos são com itens domésticos, com os filhos”, afirma Nikore. Ela cita uma pesquisa da Pesquisa Nacional de Saúde da Família de 2015-2016, que mostrou que um número impressionante de mulheres entrevistadas nem iam sozinhas às consultas médicas.
A diferença nas experiências das indianas em seu próprio país e as que vivem no exterior não poderia ser mais diferente. A influência econômica é determinante no que diz respeito à atenção dada à dor. Sangeeta Krishnan teve DSP grave durante sua segunda gravidez, no ano passado, quando deu à luz gêmeos, em Londres.
Krishnan disse que durante toda a gravidez seus médicos estavam atentos aos seus relatos de dor e eram muito claros sobre o que estava acontecendo.
Krishnan disse que durante toda a gravidez seus médicos estavam atentos aos seus relatos de dor e eram muito claros sobre o que estava acontecendo. A parteira sugeriu exercícios e o uso de uma cinta para limitar a dor. Apesar das dores, Krishnan não se sentiu abandonada nem incompreendida.
Ghosh, por outro lado, só descobriu a cinta depois de uma busca frenética na internet. Ainda assim, nenhum médico sugeriu que ela usasse o dispositivo. Quando ela encontrou um grupo de apoio no Facebook para mulheres com DSP, finalmente deixou de sentir-se sozinha. O grupo era uma ótima fonte de informações, mas poucas indianas participavam dele, afirma Ghosh.
“Se você não ganha dinheiro com a dor, não haverá pesquisas”, explica Nikore. Isso certamente parece verdade no caso da Índia.

Um comentário: