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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Lastesis: fenômeno na internet e nas ruas, as autoras do hino feminista de 2019 são cotadas para representar o Chile no Nobel da Paz

Lea Cáceres, Paula Cometa, Sibila Sotomayor e Dafne Valdés, todas de 31 anos, são as quatro integrantes do coletivo multidisciplinar em que convergem artes cênicas, design, moda e figurino, história e música, radicado em Valparaíso, segunda maior cidade do Chile depois de Santiago, e que, desde março de 2018 vem traduzindo teses de autoras feministas para performances em espaços públicos

CAROLA GONZÁLEZ, EM COLABORAÇÃO PARA MARIE CLAIRE, DE SANTIAGO, CHILE
30 DEZ 2019

Há semanas a #LasTesisAlNobel está circulando no Twitter e em alguns meios de comunicação alternativos chilenos, como o The Clinic, que replicam a hashtag em uma tentativa de impulsionar a candidatura do coletivo feminista Lastesis ao Nobel da Paz - o país já tem dois prêmios Nobel de Literatura, Pablo Neruda e Gabriela Mistral.

Sibila Sotomayor, Dafne Valdés, ambas atrizes e professoras, Paula Cometa, diretora de arte e Lea Cáceres, estilista e figurinista, todas de 31 anos, são as quatro integrantes do Lastesis, coletivo multidisciplinar em que convergem artes cênicas, design, moda e figurino, história e música, radicado em Valparaíso, segunda maior cidade do Chile depois de Santiago, e que, desde março de 2018 vem traduzindo teses de autoras feministas para performances em espaços públicos.
“Juntamos cifras oficiais e não oficiais e chegamos a dados alarmantes. A cada 25 minutos ocorre um estupro no mundo, de 10 casos, 3 são denunciados. E apenas 8% chegam a condenação”, diz Sibila.
Un Violador en tu Camino é um fragmento extraído da próxima performance de Lastesis, sem data de estreia, baseada na pesquisa da antropóloga argentina Rita Segato - que estuda questões de gênero nos povos indígenas e comunidades latino americanas - com condenados por violência sexual em presídios brasileiros.
“O resumo do resumo deste texto é desmistificar a ideia de que o abusador é um homem doente, que quer satisfazer seus desejos sexuais. Na sua pesquisa com acusados de estupro, Segato concluiu que são poucos os homens que querem se satisfazer sexualmente e sim querem ensinar por meio da violência à mulher a voltar ao seu lugar de mulher, é uma forma de castigo e de demonstração de poder e virilidade aos seus pares masculinos”, explica Sibila Sotomayor em entrevista após um encontro com fãs no final de dezembro de 2019 no teatro do Centro Cultural Gabriela Mistral, epicentro das atuais manifestações em Santiago.
A performance completa do coletivo - que é composta de pequenos atos de aproximadamente 15 minutos - foi adiada por conta do levante popular chileno, mas o trecho Un Violador en tu Camino foi encenado em 20 de novembro na rua a convite do evento de artes cênicas Fuegos/Acciones en Cemento em Valparaíso com uma convocatória pelo Instagram em que apareceram 45 voluntárias - número festejado pelas quatro artistas. “Jamais imaginávamos que agora chegaríamos a estas dimensões”, diz Sibila entre risos.
Un Violador en tu Camino chegou a Santiago em 25 de novembro de 2019, Dia Internacional de Combate a Violência Contra a Mulher, na Plaza de Armas - marco da instituição militar chilena - e na Universidade Sotomayor. No convite, pediam que viessem com uma venda de tecido preto para os olhos, roupas de festa - em menção ao verso “a culpa não era do que vestia” - e com a letra e a dança aprendidas. Foi o suficiente para dias depois a performance fosse replicada nas mídias sociais e ruas do país.
Pedidos para a realização da performance vieram de inúmeras partes do mundo, várias cidades do Brasil, México, Peru, Argentina, Colômbia, Estados Unidos, França, Espanha, Turquia, Bélgica, Alemanha, Inglaterra, Índia, Austrália fizeram suas versões de Un Violador en tu camino com traduções e adaptações - no Brasil, por exemplo, o verso “es la violencia que no ves” foi trocado por “´é o racismo que não vês” e com citações à Mariele Franco com “o assassino dela é amigo do presidente”. Em Pari,s a batida era mais rápida, em Istambul, onde seis mulheres foram presas por fazer a performance, a percussão executada ao vivo tinha mais elementos.
A reprodução foi liberada pelas Lastesis para todas as mulheres e as dissidências. “Por isso fizemos a convocatória aberta, para qualquer território. A ideia é que as pessoas possam se apropriar da letra, pudessem mudar o figurino, mudar os locais da performance [que foi feita por diferentes grupos em escolas, frente a delegacias, clubes de prostituição, hospitais psiquiátricos, entre outros]. Pedimos que nos enviassem os registros. Temos um email que estamos tentando sistematizar, mas é muito material que chega. Ainda não vimos tudo e ainda sabemos o que vamos fazer, mas algo vamos fazer futuramente”, adianta Dafne Valdés.
O direito livre para uso, no entanto, não tira o domínio da autoria do coletivo, “teve um homem que tentou inscrever a música como se fosse propriedade intelectual dele. mas a gente já havia feito isso. Daí recebemos uma notificação oficial de que esse ser queria fazê-lo. É bem cafona e patético. O mesmo aconteceu com o site, que quiseram vender o domínio de lastesis.com para a gente por 26 milhões de Pesos Chilenos [o equivalente a R$ 140 mil]. É mais uma vez um homem querendo se apropriar da obra de mulheres. Isso saiu na imprensa e ele se cagou de medo”, conta Sibila.
"E a culpa não era minha, nem de onde eu estava, nem de como eu me vestia. O estuprador é você."
Trecho de "Un violador em tu caminho", do coletivo feminista Lastesis
No início de dezembro, outro grupo intitulado de Lastesis Senior, fez um chamamento público para mulheres com mais de 40 anos, para fazer a coreografia na praça em frente ao Estádio Nacional - que na ditadura militar chilena nos anos 70 serviu de campo de concentração para torturar presos políticos, entre eles mulheres.
Segundo a porta voz das Lastesis Senior Marcela Betancourt, a convocatória foi feita para discutir a nova constituinte e sobretudo dar voz a mulheres que viveram na época do regime - estiveram presentes 10 mil de todas as idades, sendo a mais velha de 90 anos. “Nesse período a violência sexual por parte dos militares foi usada como castigo de guerra. E atualmente nesta crise sócio política já se soma 19 denúncias coletivas de abuso de carabineros (como são chamados os policiais chilenos) contra civis”.
Segundo o último relatório da ONU, de 18 de outubro a 6 de dezembro, parte do período das manifestações chilenas, em todo país houveram 26 mortes, 2113 casos específicos de tortura e maus tratos, aproximadamente 200 casos de perda total ou lesão ocular por balas de borracha - recorde mundial e histórico - e 24 casos de violência sexual contra mulheres perpetrados por membros da polícia e militares.


Em Un Violador en tu Camino, as referências à polícia e aos militares são claras, vão desde o agachamento com as mãos na cabeça comum nas revistas ao uso irônico da estrofe na íntegra do Hino dos Carabineros “Duerme tranquila, niña inocente, sin preocuparte del bandolero, que por tu sueño dulce y sonriente, vela tu amante carabinero” (Dorme tranquila, menina inocente, sem se preocupar com o bandoleiro, que por seu sono doce e sorridente, vela seu amante carabinero)
Para a professora da Universidade de Santiago, pesquisadora de linguística e teórica e ativista feminista chilena Andrea Franulic, o fenômeno Lastesis se deve a vários fatores: “El violador eres tu` está muito conectada com o contexto mundial, é uma continuação de um movimento que já vinha em gestação, acontecendo em rede mundialmente, como no ano passado as estudantes chilenas que denunciaram os professores de universidades e escolas no movimento Por Uma Educação Não Sexista, no cinema de Hollywood veio a #metoo, entre outros casos. Não é geração espontânea”. Ela cita o artigo escrito por outra pensadora feminista, a espanhola MIlagros Rivera, que diz que “o fim do patriarcado faz com que saiam à luz os patriarcas, o abusador, o estuprador, o cafetão - de onde vem a política sexual do patriarcado. Mas a intuição artística e política da Lastesis é genial. E veio com um canto em todos os idiomas e uma dança muito potentes, é precioso”.

As quatro integrantes do Lastesis afirmam que estão orgulhosas das dimensões que obra adquiriu e ao mesmo tempo emocionadas com os inúmeros relatos que ouvem, mas ressaltam que são mulheres normais como todas. Quando questionadas sobre a possível nomeação ao Nobel da Paz, Dafne sorri discretamente, faz uma pausa e diz, “o prêmio é de todas as mulheres e suas dissidências que lutam diariamente contra o patriarcado e que saíram às ruas para se manifestar. É um prêmio de todas”.

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