Natalia Mota foi primeira brasileira indicada a prêmio da Nature por programa que pode diminuir o tempo de diagnóstico, que hoje leva dois anos
por Helena Bertho
4 de dezembro de 2019
Natalia Mota desenvolveu tecnologia para diagnosticar esquizofrenia com maior rapidez (Foto: Rebeca Figueiredo)
Hoje, o diagnóstico de transtornos mentais é feito com base na observação clínica de um médico de um conjunto de sinais apresentados pelos pacientes durante um período. O tempo que se leva para fechar um diagnóstico é, em média, de dois anos. Período em que a falta de um diagnóstico e tratamento adequado podem ter danos mentais e impactos sociais na vida do paciente. Mas esse prazo pode ser reduzido drasticamente com o trabalho da neurocientista e psiquiatra cearense Natalia Mota.
Em sua pesquisa de pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ela desenvolveu um programa de computador que mede a organização do pensamento por meio da fala e, assim, consegue diagnosticar esquizofrenia a partir da análise de apenas 30 segundos de discurso do paciente. Tudo isso com 90% de precisão.
O programa ainda está em fase de testes, mas graças a ele Natalia foi a primeira brasileira e única sul-americana indicada ao prêmio Nature Research Award de 2019, na categoria Ciência Inspiradora. O prêmio é promovido por uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo e Natalia concorreu ao lado de outras nove cientistas do mundo todo.
Em entrevista à Revista AzMina, Natalia, que fundou o Sci-Girls, um grupo de mulheres cientistas, conta da sua pesquisa e também da importância do prêmio para ela e outras cientistas mulheres. “A mulher tem um papel muito singular na ciência, justamente por trilhar o caminho mais difícil. Isso faz a gente criar soluções de baixo custo, mais fáceis e mais úteis para a sociedade. Fazer ciência que realmente tem impacto.”
Leia mais: Quando a loucura é filha do machismo
Natalia também falou sobre o impacto dos recentes cortes de investimento em educação e pesquisa realizados pelo governo. “A situação do Brasil é urgente. O mundo todo está sabendo, recebi convites de várias pessoas para sair do país.”
AzMina: Qual o benefício social do seu projeto?
Natalia: Primeiro, combater o preconceito em relação à esquizofrenia e entender que ela faz parte do comportamento humano. Não é uma coisa só de um grupo de pessoas, que as torna diferentes. Somos todos iguais, mas uns funcionam de um jeito, outros funcionam de outro. Se a gente for botar uma régua, com várias gradações, ninguém se encaixa em nada. Outro benefício é poder agir precocemente, para que as pessoas não esperem dois anos por um diagnóstico de esquizofrenia, que é a média de tempo hoje em dia para fechar um diagnóstico. Passar dois anos perdendo cognição, sofrendo, sem nem saber o que tem, é muito sofrimento.
AzMina: Esse diagnóstico precoce evita a perda de cognição?
Natalia: Você pode planejar ações, principalmente de reabilitação social. O que mais se deve cuidar nessas fases precoces, do aparecimento dos primeiros sintomas, é que a pessoa não perca seus laços sociais, que ela continue frequentando os lugares, que ela se sinta acolhida. É importante fazer essa rede de interconexão entre a família, a escola, os ambientes em que elas circulam, para que acolham o sujeito. Se ele não se sentir acolhido, ele vai perder facilmente os laços no momento que mais precisa deles. É só no contraste com a realidade que ele vai poder ver emergir essa autocrítica e aliviar um pouco o sofrimento.
Imagina que você está pensando que está todo mundo te perseguindo, querendo te fazer mal. Se você se isola, aí é que vai ter certeza. É só indo lá e perguntando: ‘fulaninha, você quer me fazer mal?’ e ela falando que não… É desse jeito que você quebra o preconceito e permite que a pessoa se ressocialize. Mas é uma conversa complicada. Você chega para o sujeito e dá a oportunidade para ele para que ele tenha um parâmetro mais palpável.
AzMina: Você pode explicar sua pesquisa que foi indicada ao prêmio?
Natalia: Hoje em dia, temos computadores muito potentes, que permitem fazer análises inimagináveis há algumas décadas. A ideia da pesquisa foi trazer esse poder computacional, aliado à precisão matemática, para o campo da psiquiatria. O psiquiatra é treinado para perceber os sintomas na relação com o sujeito, então a questão era: como a gente pode medir esses sintomas de uma maneira objetiva.
Desde as primeiras descrições da esquizofrenia, os médicos perceberam que algumas pessoas têm alucinações e delírios e, com isso, tinham um declínio cognitivo, muitas vezes até chegar a demência mesmo. Enquanto outras pessoas também apresentavam alucinações e delírios, mas conseguiam manter a vida, apresentando só variações de humor, o que foi caracterizado depois como psicose maníaco-depressiva ou transtorno bipolar. Então a ideia era entender como podíamos prever o futuro da pessoa logo no início dos sintomas. Ver se ela vai perder a cognição e o laço social, para saber como ajudar e prevenir danos.
AzMina: E vocês criaram um programa para isso. Como é que ele funciona?
Natalia: Existe uma série de sintomas [da esquizofrenia] chamados de desordens da forma do pensamento, que se mostra na dificuldade que o sujeito tem de organizar a fala. Mas como é que a gente mede isso? Vários sintomas que predizem a esquizofrenia têm a ver com essa quebra de trajetória. Quando alguém diz que ‘estava com um discurso descarrilado’, ou seja, estava com o discurso que saiu dos trilhos. Ou ‘está com o discurso fragmentado, quebrado’. Até chegar no ponto do paciente crônico, que você percebe que está soltando as palavras ali aleatoriamente.
Tem um ramo da matemática que chama teoria dos grafos, uma teoria que tem centenas de anos e está na base de várias tecnologias que a gente usa hoje em dia, como a rede da internet, por exemplo. O grafo estuda as relações entre os objetos de um determinado conjunto. Os elementos são representados por ‘nós’ e as relações entre esses nós são representadas por links ou arestas. Na pesquisa, eu decidi colocar a trajetória de palavras num grafo.
Então cada palavra diferente é um nozinho e a sequência de palavras é a seta entre elas. A maneira como elas se repetem espontaneamente no discurso é que vai dizer se aquele grafo vai ser mais ou menos conectado, medindo o nível de desordem no sistema de pensamento.
Grafo da resposta anterior, gerado pelo programa de Natalia
AzMina: É o programa de computador que faz essa análise?
Natália: Sim, o nome do programa é SpeechGraph e foi desenvolvido em linguagem Java. Ele está disponível no nosso site, quem quiser baixar e brincar com ele, pode baixar.
AzMina: Como você usa o programa?
Natalia: Eu peço para as pessoas me contarem um sonho ou uma imagem negativa. Porque num relato de sonho apenas, de 30 segundos, o programa já consegue dizer com bastante acurácia quem tem esquizofrenia e quem não tem. Isso desde os primeiros sintomas. Durante a pesquisa, entrevistei adolescentes que estavam passando por surtos psicóticos pela primeira vez e os acompanhei com uma equipe multidisciplinar por seis meses. Só depois que a gente estabeleceu o diagnóstico de maneira tradicional, por observação clínica, eu comecei a fazer as análises com o programa e constatei que naquela primeira entrevista lá trás, depois do primeiro surto, em um minuto de discurso, já predizia o diagnóstico que levamos seis meses para conseguir.
AzMina: Com o programa é possível prever um surto?
Natalia: Não. Uma analogia legal para entender é um hemograma. Você está com febre, dor de cabeça, nariz escorrendoe não sabe dizer se é alergia, vírus ou bactéria. No pronto socorro, pedem um exame de sangue. O que a gente vê no resultado do exame é um parâmetro para contar essas células. No programa, a gente sabe o que contar, o que olhar. E tem uns valores de referência, mas baseados ainda numa população pequena, que foram as pessoas que eu entrevistei. A partir desses parâmetros, eu posso dizer se você tem um conjunto de parâmetros parecidos com uma classe ou com outra de pessoas. Só baseada nesses dados de conectividade a gente consegue dizer se aquele relato veio de uma pessoa controle [usada como base de comparação], de uma pessoa com esquizofrenia ou de uma pessoa bipolar, com mais de 90% de acurácia. Praticamente não erra.
AzMina: Essa pesquisa já está sendo usada como clínica?
Natalia: Não. Precisamos estudar uma população maior. Como referência, eu tenho um número limitado de participantes, em torno de uns 70 sujeitos que tinham a patologia, que tinham psicose. Não dá pra dizer que todas as pessoas do mundo que têm psicose têm esse padrão. A gente já validou o teste em populações diferentes, validamos recentemente em inglês também.
AzMina: Quais são os próximos passos?
Natalia: A gente se preocupou como pode haver um mau uso desse tipo de diagnóstico fácil e levar à patologização de situações. Porque outras situações sociais também podem impactar a fala, então a gente poderia começar a diagnosticar analfabetismo ou dificuldade de acesso à educação como esquizofrenia. Será que a pessoa que não teve letramento vai falar com a mesma conectividade, com a mesma eloquência, com a mesma quantidade de informações que uma pessoa da mesma idade que teve acesso a educação? Para entender isso, a gente foi atrás de saber como é o desenvolvimento típico das conexões na fala. Agora, estamos aplicando a pesquisa a novos grupos de pessoas.
“As dificuldades fazem mulheres criarem soluções de baixo custo, mais fáceis, mais úteis pra sociedade. Fazer ciência que realmente tem impacto” (Foto: Rebeca Figueiredo)
AzMina: Você foi indicada ao prêmio da Nature por essa pesquisa. O que acha da existência de um prêmio só para mulheres?
Natalia: Eu fiquei super feliz, animada, me deu um gás extra. A gente vem sofrendo muitas perdas com o atual governo: cortes, perda de bolsa de aluno, gente muito talentosa desistindo da carreira. No dia a dia, isso mina sua energia de trabalhar. Além disso, a gente tem um grupo no laboratório [Sono, Sonhos e Memória, da UFRN], o Sci-Girls, que é uma reunião só de mulheres e também um grupo de terapia. A gente senta para discutir o que está acontecendo. E são questões que vão desde “eu acho que não vou aprender matemática”, ou então “eu cheguei num lugar e notei que a galera não tava dando crédito para o meu trabalho, sempre achava que era o segundo autor, ou terceiro autor”, até coisas mais de dia a dia mesmo, por exemplo: “eu não sei como eu faço minha sogra entender que eu tenho que trabalhar, que eu não posso ficar em casa o dia inteiro com o meu filho”.
A mulher tem um papel muito singular na ciência, justamente por ter esse caminho mais difícil. Quando ela persiste nisso, ela desenvolve muita criatividade e maneiras de lidar com essa comunicação, de entender como é mais importante ter essa sensibilidade de entender essas dificuldades na carreira, sabe? Isso faz a gente criar soluções de baixo custo, mais fáceis, mais úteis pra sociedade. Fazer ciência que realmente tem impacto.
Acho que quando tem uma premiação assim é para melhorar a autoestima de um grupo de pessoas e dizer “teu ponto de vista é importante”.
AzMina: Você mencionou as perdas que estão tendo com o atual governo. Como os cortes impactaram o trabalho de vocês?
Natalia: Está todo mundo super assustado, com medo inclusive de perseguição, pessoal e física. Foi uma guinada muito forte, com um discurso político de enfraquecimento da ciência, colocando a ciência como um inimigo. Não só a ciência, mas todo o movimento intelectualizado.
E isso é um tiro no pé, porque não há país que se desenvolva economicamente sem ciência. O que a gente fez aqui foi alimentar uma comunidade que começou a gerar frutos. E o que está acontecendo? Eles estão indo embora. A gente tá arrancando as árvores do pé e distribuindo pro mundo. Isso vai impactar a economia desses outros países positivamente. Vários cérebros vão fugir para os Estados Unidos, desenvolver e criar soluções lá, movimentar a economia lá.
AzMina: Vocês perderam pesquisadores?
Natalia: Sim, vários alunos. No Nordeste, as universidades cresceram tanto e ficaram tão diversas, tão coloridas. E são pessoas que não têm uma geração que veio antes. A ciência no Brasil ainda tem disso: é um pouco aristocrática, de famílias, de pessoas que investiram, que não precisam trabalhar para sobreviver. O Nordeste não tinha tradição de ciência. A ciência que surgiu aqui é de gente que quer fazer, que quer trabalhar, quer produzir a partir daqui e tira seu sustento daqui.
São pessoas que precisam de incentivo, que têm muita garra pra fazer e têm uma cultura de trabalho de muita resistência e criatividade. Eu vejo alunos empolgados, que falam: “Caraca, é minha oportunidade! Não só minha, é da minha família”. É de quebrar essa tradição de subemprego para ter um emprego massa. Então o aluno vem com toda essa autoestima e chega lá e não tem bolsa, não tem como sobreviver.
AzMina: Você acredita ser importante ter no Brasil e no Nordeste pesquisadores locais trabalhando em contextos locais?
Natalia: Com certeza. Quem é que vai limpar o óleo da praia? Quem é que vai assegurar se os peixes que a gente está consumindo agora, esse mês, têm segurança para serem consumidos? Quem é que vai ver o impacto do hidrocarboneto que penetrou no manguezal? E quem é que vai criar a solução para filtrar esse óleo para voltar a crescer a caça de cultura lá? Eu duvido que saia do centro-oeste, de Brasília essa solução, né? Não me parece haver muito esforço para que essa solução saia de lá.
Esse problema é nosso. Do mesmo jeito que a zika é problema nosso. Epidemias de dengue são problemas nosso. Como é que a gente ainda não controla o Aedes aegypt? Como é que a gente vê voltar o crescimento da mortalidade infantil? Isso é problema nosso como sociedade. Lógico, tem toda uma questão de decisão política. Mas vai além disso. Não adianta a gente ter bons representantes se a gente não tem uma massa de pesquisadores que queiram e que trabalhem aqui para fazer ciência aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário