Artemisia Gentileschi foi a maior artista da era barroca e uma das mais brilhantes da história da arte. Estuprada na adolescência, transformou os horrores de sua biografia em pinturas bíblicas brutais que desafiaram a misoginia dominante em seu mundo. Tornou-se a primeira mulher aceita na Academia Del Disegno de Florença e, mesmo assim, teve sua vida apagada da história postumamente por causa de seu gênero. Aqui, Marie Claire investiga o redescobrimento da pintora esquecida por mais de 400 anos, que ganha, em 2020, retrospectiva na National Gallery, em Londres
FERNANDA MOURA GUIMARÃES
13 MAR 2020
Um homem é segurado à força por duas mulheres sobre uma cama. Uma delas pressiona a cabeça do sujeito com o punho fechado, enquanto a outra se debruça sobre o corpo da vítima com todo seu peso, seus braços musculosos segurando uma espada que atravessa o pescoço do inimigo. Sangue vermelho-vivo esguicha da nuca do homem, que, ainda com vida, assiste à decapitação de olhos abertos.
A cena do Antigo Testamento, uma das preferidas dos artistas barrocos, mostra o general assírio Holofernes, inimigo do povo israelita, e a mulher que executa o militar em nome de seu povo, Judite. Porém, na versão gráfica e teatral da artista italiana Artemisia Gentileschi, a situação é mais do que uma passagem bíblica. Assim como muitos quadros assinados por uma das mulheres mais importantes da arte do século 17, a tela é uma metáfora autobiográfica — e, muito provavelmente, uma espécie de vingança.
Judite Decapitando Holofernes (1614) foi concluído poucos anos depois de um dos episódios pelo qual Artemisia é mais conhecida: o estupro por seu professor, o italiano Agostino Tassi (no quadro, ela é Judith e Holofernes, o pintor Agostino). Filha de Orazio Gentileschi, proeminente artista da época, a jovem começou a carreira no ateliê do pai, numa época na qual o contexto familiar era o único possível para que uma mulher aprendesse o complexo ofício da pintura. Aos 17 anos, o talento singular da filha fez com que Orazio convocasse Agostino, artista querido pelo alto clero do Vaticano, para ensinar a filha. Depois do que se suspeita terem sido alguns meses de assédio, Agostino estuprou Artemisia, que, por sua vez, feriu o homem tentando se defender. Os detalhes e testemunhos do crime cometido em 1611 sobrevivem nas transcrições do julgamento de sete meses que se institui após a acusação de danos materiais feita por Orazio, um caso que chocou a Roma da época.
“É verdade, é verdade, é verdade”, escreve Artemisia diversas vezes em seu relato. Tendo os dedos amarrados por corda e puxados à força, um tipo de tortura comum na época, a pintora teve de atestar a veracidade da acusação, além de ter se sujeitado a exame ginecológico em pleno tribunal. Ninguém pensou em fazer o mesmo com o acusado, que, depois de estuprá-la, teria feito promessas vazias de casamento. “É importante lembrar que a questão em jogo era muito mais a honra da família do que justiça pelo crime contra Artemisia”, explica a professora Maia Cristina Pereira, do departamento de História da FFLCH – USP, especialista em história da arte e representação de gênero. À época, uma garota que não fosse virgem era considerada “mercadoria estragada” para qualquer potencial noivo.
Também não é coincidência que Artemisia tenha pintado pelo menos quatro vezes durante a vida outra cena emblemática de sua carreira: Susana e os Anciãos. Novamente, ela usa uma história bíblica para dramatizar o que era ser mulher no século 17. O episódio mostra dois velhos espiando uma jovem que toma banho, mas, enquanto outros artistas tendem a mostrá-los escondidos a distância, Gentileschi traz os voyeurs sem vergonha, se debruçando invasivamente sobre a personagem, sussurando. “A pintura nos dá uma reflexão, não do estupro em si, mas sobre os sentimentos de uma jovem sobre sua própria vulnerabilidade sexual em 1610”, escreve a historiadora da arte Mary D. Garrard em Artemisia Gentileschi: The Image of the Female Hero in Italian Baroque Art, uma das obras mais profundas e contundentes da história da arte sobre Artemisia.
A VIDA IMITA A ARTE
Anacronismos à parte, impossível não considerar o peso da contemporaneidade do trabalho e biografia de Artemisia, principalmente em tempos de #MeToo e do julgamento de Harvey Weinstein, acusado de assediar e estuprar mulheres em troca de favores profissionais em Hollywood. Não à toa, a pintora ganha no próximo mês uma de suas maiores retrospectivas na National Gallery, em Londres. “Mais do que vítima de violência de gênero, ela foi uma mulher de talento artístico excepcional, determinada e resiliente, a primeira a ser aceita numa das maiores academias artísticas da Itália”, conta Letizia Treves, curadora da exposição.
De fato, Artemisia alcançou algo tão improvável para sua época que merece reconhecimento tanto quanto Caravaggio – pintor que, aliás, frequentou sua casa durante a infância e influenciou a jovem. Ela não apenas se tornou uma artista de grande sucesso em uma época em que guildas e academias fechavam as portas para artistas do sexo feminino. Teve sucesso em atingir algo que nenhuma de suas contemporâneas conseguiu: comunicar sua perspectiva do mundo enquanto mulher tal como artistas posteriores como Frida Kahlo, Nan Goldin, Judy Chicago ou Tracey Emin.
Após o julgamento, Artemisia se tornou uma celebridade – mas não de forma positiva. O relacionamento de Agostino com o papa lhe rendeu o perdão e, mesmo culpado, o pintor cumpriu apenas alguns meses de sua sentença. A saída de Artemisia foi casar-se às pressas e trocar Roma por Florença. “O casamento, com um marido um tanto medíocre, aconteceu por pressão de seu pai. Foi pura convenção social”, conta Letizia. Mas eram suas pinturas que sustentavam a família. A obra da primeira mulher a ser aceita pela Accademia di Arte del Disegno de Florença, uma das mais respeitadas da Itália.
Foi justamente lá que conheceu seu amante, um homem nobre da corte florentina. Sua predileção por personagens femininas fortes, cenas dramáticas e viscerais conquistaram uma clientela internacional, com comissões da corte inglesa e francesa. No entanto, por mais de 400 anos, Artemisia foi ignorada tanto pela classe artística quanto pela academia. Teve muitas obras, inclusive, creditadas a seu pai. Apenas no século 20 o movimento feminista a “redescobriu” como um de seus ícones, o que significa que ainda há muito que explorar sobre sua biografia e obra.
Em 2017, por exemplo, foi encontrado em uma coleção privada na França um dos mais importantes autorretratos da artista, até então não atribuído a ela. Em 2011, cartas da pintora para seu amante que ninguém sabia da existência ressurgiram em um arquivo pessoal de Florença e estarão em exposição na National Gallery. “Esse material mostra que Artemisia aprendeu a ler e escrever, algo raro para uma mulher, e que o próprio marido sabia do caso extraconjugal e até se correspondia com o amante da artista. Mais ainda, as cartas mostram uma Artemisia apaixonada e os contornos do universo íntimo de uma mulher que hoje se encaixa no que consideramos como feminista, porém 400 anos antes de qualquer movimento surgir”, completa Letizia.
O título de artista feminista, porém, tanto a curadora quanto Maria Cristina refutam. “É anacrônico falar de uma artista feminista no século 17, muito antes desse conceito existir. Mas digo que Artemisia tinha uma práxis que chamaria de feminista, tomou controle de sua arte e de sua vida”, opina a historiadora, lembrando a carta a um patrão em que Artemisia refere-se a si mesma com a frase “Você encontrará o espírito de César na alma desta mulher”. Letizia concorda e acrescenta: “Mesmo indivíduos que celebram a obra de Artemisia a olham pelo viés do estupro. Esse reducionismo em si é antifeminista. Penso que ela própria não gostaria que a colocassem nesse lugar de vítima. Ela foi muito mais do que a própria tragédia”. Evocando a mesma carta citada por Maria Cristina, a curadora finaliza: “Artemisia Gentileschi foi uma mulher que, no século 17, escreveu para seu patrão homem: ‘Eu vou lhe mostrar do que uma mulher é capaz’. E mostrou”.
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