Segunda-feira, 18 de maio de 2020
Por Fabiana Cristina Severi, Ana Carolina de Sá Juzo e Inara Flora Cipriano Firmino
No início de março, tivemos a notícia do primeiro caso de brasileiro testado positivo para a COVID-19. Ficamos, sem dúvidas, apreensivas. Mas, naquele momento, para muitas de nós, especialistas, acadêmicas e militantes na temática da violência doméstica e familiar contra as mulheres, a nossa inquietação ainda era outra. A Bancada Feminina da Câmara dos Deputados discutia um conjunto de propostas de alterações legislativas, a maioria delas voltadas ao agravo de medidas penais ligadas à violência doméstica contra as mulheres, encaminhadas pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública à época, Sérgio Moro. A intenção era que as parlamentares aceitassem conduzir as propostas para aprovação em regime de urgência, ou como substitutivas de outros projetos de lei que já estavam em tramitação na Câmara dos Deputados.
Desde a aprovação da Lei Maria da Penha, as organizações feministas e o movimento de mulheres brasileiro mantiveram um trabalho de incidência junto ao Congresso Nacional, buscando dissuadir parlamentares de proporem alterações no texto da Lei, ao menos sem que houvesse a mínima implementação do modelo previsto e um tempo para a produção de análises sobre seu funcionamento, referenciada em dados e estudos de qualidade. Antes de alterá-la, o mais importante seria empregar esforços, especialmente junto ao Poder Executivo, para a ampliação de recursos orçamentários e de serviços especializados que pudessem operacionalizar aquilo que é central na Lei: o atendimento integral às mulheres e a garantia dos direitos nela elencados.
Desde a aprovação da Lei Maria da Penha, as organizações feministas e o movimento de mulheres brasileiro mantiveram um trabalho de incidência junto ao Congresso Nacional, buscando dissuadir parlamentares de proporem alterações no texto da Lei, ao menos sem que houvesse a mínima implementação do modelo previsto e um tempo para a produção de análises sobre seu funcionamento, referenciada em dados e estudos de qualidade. Antes de alterá-la, o mais importante seria empregar esforços, especialmente junto ao Poder Executivo, para a ampliação de recursos orçamentários e de serviços especializados que pudessem operacionalizar aquilo que é central na Lei: o atendimento integral às mulheres e a garantia dos direitos nela elencados.
A primeira alteração no texto da Lei Maria da Penha foi ocorrer, então, em 2017 (Lei 13.505/17)[1]. O número de Projetos de Lei propostos entre 2006 e 2017 foi de 29. Em 2018, o saldo foi de uma lei aprovada e 14 propostas submetidas. Em 2019, foram mais cinco leis aprovadas e 139 Projetos de Lei. Até a primeira semana de março deste ano[2], havia 133 Projetos de Lei em tramitação com propostas de alteração da Lei Maria da Penha ou de mudanças legislativas que a impactam indiretamente. Desse total, 74[3] tratam de matéria penal com caráter punitivo, criando novos tipos penais, aumentando penas e restringindo o acesso à justiça de mulheres em situação de violência.[4]
O pacote proposto por Sérgio Moro pegou carona nessa tendência de crescimento quase exponencial de PLs voltados à alteração do modelo de enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres. Algumas das propostas do ex-Ministro apresentadas às parlamentares, na reunião no dia 04 de março, foram: o aumento das penas mínima e máxima do crime de lesão corporal, o aumento de pena nos crimes contra a honra quando se tratar de violência doméstica, a criminalização da violência psicológica e da violência patrimonial e a possibilidade de uso do monitoramento com tornozeleiras eletrônicas como medida protetiva.
A nossa preocupação não era, apenas, com o incremento disparado de PLs deste tipo, sobretudo nos últimos dois anos. Ela tinha como fundamento o desmanche acintoso das políticas públicas e dos serviços ligados à implementação da Lei Maria da Penha. Desde 2015, o orçamento federal destinado às políticas de enfrentamento à violência doméstica e familiar vem diminuindo substancialmente. Em 2019, não houve repasse por parte do Governo Federal de orçamento aos outros entes da federação para as políticas de violência doméstica. No início de 2020, o Governo Federal chegou a indicar recursos orçamentários zerados no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos em tal temática.[5]
Dias depois da apresentação das propostas do ex-Ministro às parlamentares, foi decretado no país o estado de calamidade pública diante da nova pandemia mundial. E diante do novo coronavírus, os discursos de sustentação dessas e de outras tantas propostas calcadas no populismo penal parecem um escárnio. Não porque a violência doméstica contra as mulheres deixou de ser assunto em tempos de COVID-19. Muito pelo contrário, ela ganhou ainda maior visibilidade, já que na pandemia ela tem alcançado índices elevadíssimos e assumido novas configurações em muitas partes do mundo, em decorrência da nova conjuntura socioeconômica. Foram as alternativas ao recrudescimento penal, comumente vendidas no varejo pelo preço que a magia do encarceramento oferece, que foram despojadas de sentido.
Para que muitas mulheres possam permanecer em casa e isso significar, de fato, maior segurança, é preciso que os serviços destinados às mulheres e meninas em situação de violência doméstica (de assistência social, de saúde, de segurança etc.) mantenham sua continuidade. Também, mais do que nunca, que esses serviços funcionem em rede, seguindo um olhar e uma práxis interseccional e de direitos humanos. Isso tudo dispensa novos tipos penais. Considerando esse ambiente e as desigualdades de raça, classe e gênero que tangenciam o país, é necessário reforçar as capacidades estatais para implementação da Lei Maria da Penha.
Tal lei considera a violência doméstica contra as mulheres como um fenômeno baseado no gênero e que reforça múltiplas e interseccionais formas de discriminação e desigualdade, ao se articular com outros marcadores sociais da diferença, como raça, etnia, idade, origem territorial, deficiência etc. Ela também reconhece ser esse tipo de violência um tipo de violação de direitos humanos. Por consequência, as ações para seu enfrentamento devem contemplar medidas integradas de prevenção, investigação, sanção e reparação, informadas por uma perspectiva interseccional para ampliar a compreensão das particularidades que envolvem a questão da violência doméstica contra todas as mulheres.
A crise sanitária atual, então, escancara o caráter inócuo e oportunista das propostas voltadas ao endurecimento de medidas punitivas. Ela também lança luz à importância de defendermos o paradigma preconizado pela Lei Maria da Penha. Ao invés de buscarmos inovar com a produção de outras tantas leis, o momento exige que levemos a sério a tarefa de inovar na forma como cada um dos poderes públicos tem buscado implementar a Lei Maria da Penha.
Antes da pandemia, diversos estudos sobre o tema já apontavam para o caráter insuficiente dos serviços disponíveis às mulheres criados até então e para a incapacidade deles em fazer frente aos efeitos do racismo institucional e aos estereótipos variados que permeiam as práticas de agentes públicos e afetam desproporcionalmente as mulheres não brancas e socialmente marginalizadas, que são silenciadas e seguem na base da pirâmide econômica e social brasileira. Agora, diante da COVID-19, assumir tais desafios tornou-se ainda mais urgente e indispensável.
Entre março e abril, tivemos mais seis PLs submetidos na Câmara, voltados ao tema da violência doméstica[6]. Mas, diferente de grande parte dos PLs anteriores, a maioria destes veem em reforço ao paradigma da Lei da Maria da Penha em tempos de pandemia. Suas propostas centram-se em medidas de reforço à continuidade e à melhoria de serviços, com flexibilização de procedimentos burocráticos e previsão de maior alocação de recursos orçamentários, durante a vigência do estado de calamidade pública. A exceção é o PL n. 641/2020, que dá forma ao pacote enviado à Bancada Feminina pelo ex-ministro e segue em tramitação na Câmara dos Deputados.
Com os tantos revezes que o novo vírus tem provocado nos discursos oportunistas e em lideranças políticas incautas, talvez tenhamos agora mais condições de reagir contra a epidemia de PLs em tramitação, a maioria tendente à domesticação[7] do modelo de enfrentamento à violência contra as mulheres previsto na Lei Maria da Penha.
Fabiana Cristina Severi é livre docente em direitos humanos, professora no curso de graduação e no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP). Coordena o Centro de Estudos em Direito e Desigualdades (CEDD) da FDRP-USP.
Ana Carolina de Sá Juzo é mestranda em direito pela FDRP-USP, graduada em direito pela Faculdade de Direito de Franca e membra do Centro de Estudos em Direito e Desigualdades (CEDD) da FDRP-USP.
Inara Flora Cipriano Firmino é mestranda em direito pela FDRP-USP, graduada em direito pela Faculdade de Ribeirão Preto da USP e membra Centro de Estudos em Direito e Desigualdades (CEDD) da FDRP-USP.
Notas:
[1] Há, também, algumas leis aprovadas antes de 2017 que, apesar de não trazerem mudanças diretas no texto da Lei Maria da Penha, produziram efeitos no modelo de enfrentamento à violência doméstica por ela preconizado. Podemos citar, por exemplo, a Lei do Feminicídio (Lei n. 13.104/15), que agrava a pena do homicídio de mulheres e a Lei 13.427/2017, que garante o atendimento especializado no SUS a mulheres em situação de violência doméstica. O monitoramento e a análise dos PLs no tema estão sendo feitos pela consultora Myllena Calasans Matos do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea). Ver: https://www.cfemea.org.br/images/stories/RadarFeminista-27a30abril20.pdf.
[2] Levantamento realizado pela consultora Myllena Calasans Matos do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea). Ver: https://www.cfemea.org.br/images/stories/RadarFeminista-27a30abril20.pdf
[3] No ano de 2020, 15 Projetos de Lei foram apresentados na Câmara, dos quais, cinco tratam de recrudescimento penal ou coibição (PL. 2315, PL. 2311, PL. 1319, PL. 279, PL. 311. Esses projetos tratam, em síntese, do aumento do tipo penal de feminicídio; de decretar prisão preventiva em caso de descumprimento de medida protetiva; aumento de pena nos casos de violência doméstica no período de pandemia; e imposição do uso de tornozeleira eletrônica como medida protetiva).
[4] Dos Projetos de Lei analisados no estudo feito pela CFemea, 74 dos PLs tratam de coibição; 51 alteram as medidas protetivas; 32 versam sobre assistência; 19 sobre acesso à justiça; 16 trazem medidas de prevenção; 14 sobre atendimento policial; 9 sobre serviços, 6 mudariam conceitos sobre o texto da Lei Maria da Penha.
[5] O orçamento do Ministério da Mulher, hoje em conjunto com a família e direitos humanos, no período entre 2015 e 2019, teve redução de R$ 119 milhões para 5,3 milhões. No mesmo lapso temporal, os repasses de recursos financeiros para o atendimento às mulheres em situação de violência passaram de R$34,7 milhões para R$194,7 mil reais. Ver: Governo não faz repasses a programa de combate à violência contra a mulher. Exame. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/governo-nao-faz-repasses-a-programa-de-combate-a-violencia-contra-a-mulher/. Acesso em 11 de mai. de 2020.
[6] Nota Técnica referente aos Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional sobre medidas para o enfrentamento à violência doméstica e familiar, no contexto do distanciamento social, decorrente da vigência do Estado de Calamidade Pública instituído pelo Decreto nº 6/2020. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2020/04/Nota-T%C3%A9cnica-do-Cons%C3%B3rcio-Lei-Maria-da-Penha-frente-%C3%A0-COVID-19.pdf. Acesso em 12.05.2020.
[7] Ver: SEVERI, Fabiana Cristina. Lei Maria da Penha e o projeto jurídico feminista brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
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