Atividades domésticas como nutrir, educar e criar são essenciais à economia real, mas ignoradas. Historicamente realizadas por precarizadas ou mulheres da casa, correspondem a 11% do PIB brasileiro — caso fossem contabilizadas e pagas
Paulo do Santos, em entrevista Juliana Sayuri, no Intercept
“Já passou da hora de acordar”, me disse o economista brasileiro Paulo dos Santos, professor da New School for Social Research, em Nova York, no começo da semana passada, enquanto o Brasil acompanhava a novela sobre a possível demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Ele se referia ao modelo que predomina no atual debate econômico: ênfase no mercado em detrimento da sociedade. “Quem tem acesso a exame e remédio, quem pode ou não pode trabalhar home office, quem morre e quem sobrevive, tudo isso está em jogo na atual pandemia”, ele me disse.
Em entrevista por FaceTime – ele, em Acra, em Gana; eu, em Aichi, no Japão –, o economista me falou sobre como a crise do coronavírus pode ressignificar o valor do trabalho, e mudar o foco do debate econômico. “Essa não é apenas uma crise epidemiológica e econômica, é uma crise social. É também uma oportunidade aberta para focar na sociedade. É vingar o social”, define Santos.
Em entrevista por FaceTime – ele, em Acra, em Gana; eu, em Aichi, no Japão –, o economista me falou sobre como a crise do coronavírus pode ressignificar o valor do trabalho, e mudar o foco do debate econômico. “Essa não é apenas uma crise epidemiológica e econômica, é uma crise social. É também uma oportunidade aberta para focar na sociedade. É vingar o social”, define Santos.
Há cerca de um mês, Santos preferiu sair dos Estados Unidos, atual epicentro da pandemia com mais de 676 mil infectados e 34 mil mortes, para ficar com a família no país africano no Golfo da Guiné, que registrou 214 casos de coronavírus e cinco mortes até a manhã de 7 de abril. No Brasil, são 31 mil casos e mais de duas mil mortes.
“A pandemia é um choque global, que a certo ponto nos faz reconhecer que todos estamos conectados. Nos quatro cantos do mundo, a crise está revelando dois tipos de trabalho essenciais. Um é visível, os serviços que todos notam o quanto precisam agora: luz, internet, gás. Outro ainda é invisível, o trabalho de cuidado”, afirma o economista.
Trabalho de cuidado é um campo que inclui atividades diárias diretas (cuidar de crianças, idosos, indivíduos com doenças ou com deficiências físicas e mentais) e indiretas (cozinhar, lavar, limpar etc). Embora essenciais, tais tarefas são mal pagas ou até não pagas, como é o caso para muitas mulheres “do lar”.
No mundo todo, mulheres e meninas diariamente dedicam 12,5 bilhões de horas ao trabalho de cuidado sem receber um centavo, segundo o estudo “Tempo de Cuidar”, lançado pela ONG Oxfam Brasil em janeiro deste ano, às vésperas do Fórum Econômico Mundial. Se fosse remunerado, esse tipo de trabalho movimentaria no mínimo US$ 10,8 trilhões por ano, mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo. Se esta cifra impressiona, imagine o abismo socioeconômico entre homens brancos bilionários e mulheres negras e pobres: os 22 homens mais ricos do mundo acumulam mais riqueza do que todas as mulheres da África juntas, indica o estudo.
“A pandemia pede uma mobilização sem precedentes do que as economistas feministas chamam de ‘trabalho de cuidado’, cuidar de nós mesmos, nossas famílias, nossas comunidades. Nas próximas semanas ou meses, a maioria precisará focar nesta tarefa essencial: cuidar da saúde coletiva e ajudar a salvar milhares ou até milhões de vidas ficando em casa. Muitas pessoas precisarão fazer isso e, ao mesmo tempo, cuidar de milhões de crianças que estão fora da escola, de outros entes queridos que não conseguem cuidar inteiramente de si sozinhos, e dos que ficarem doentes, mas não precisarem de internação. Nós precisamos alocar recursos para permitir que essas pessoas façam esse trabalho”, escreveu Santos no blog The Developing Economics.
Mestre pela London School of Economics e Doutor pela Universidade de Londres, Santos se define como aluno eterno de economistas feministas como Nancy Folbre, Julie Nelson, Nancy Fraser, Cinzia Arruzzo e Alessandra Mezzadri. “Aprendi e continuo aprendendo muito com o trabalho delas”.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Intercept – No Brasil de Bolsonaro, instaurou-se uma discussão sobre proteger a economia ou priorizar as vidas dos trabalhadores diante das recomendações de paralisação de atividades e isolamento social. O que diz o dilema?
Paulo dos Santos – Obviamente é uma oposição falsa. A economia não é nada senão um sistema de processos, instituições e ações através das quais nós, enquanto sociedade, produzimos o que precisamos. Não há dicotomia entre economia e sociedade. Há dicotomia entre lucro e vida. Neste contexto, a resposta que nós damos diz muito sobre quem somos como sociedade.
Na situação atual, precisamos pensar e decidir como podemos nos organizar para produzir o que precisamos. Isso traz certas tensões, com questões de fundo: o que é, afinal, essencial? Quem produz o que é essencial? Quais são os custos para reorientar a economia ao que é necessário? Em outras palavras, a crise atual é uma ilustração do valor do trabalho, do trabalhador.
E qual é o valor do trabalho?
O pensamento econômico atual é pautado por uma visão de preços de mercado de trabalho, isto é, o salário, medido a partir da ideia de produtividade. “Você não ganha muito porque você não é muito produtivo”, dizem. É uma lógica torta e não precisamos ir muito longe para ver isso. O trabalho de cuidado é o maior exemplo: é um trabalho sem o qual uma sociedade simplesmente não funciona, envolve horas de dedicação, mas muitas vezes não é sequer reconhecido, é mal ou nem é remunerado.
“Por que eu, empresário, tenho que pagar licença maternidade ou paternidade porque você decidiu ter filho e vai ficar fora para cuidar dele?”, alguém vai dizer. Ora, você emprega pessoas? Sim. Pois é, alguém cuidou e educou essas pessoas, você já está se aproveitando desse trabalho que alguém desempenhou 25-30 anos atrás. Mas o pensamento econômico atual não considera esse trabalho, que não tem nada a ver com produtividade, como algo de valor: não tem valorização salarial, não tem prestígio, não tem condições.
O primeiro passo é reconhecer esse problema. E reconhecer, como há muito tempo indicavam teóricos tão diferentes como Adam Smith e Karl Marx, que todo mundo depende de todo mundo e não há trabalho totalmente independente. Que as medidas de valor do trabalho estão erradas. Que querem se mostrar como critérios meramente técnicos, mas, na verdade, refletem a posição social de quem desempenha qual tipo de atividade. E o trabalho que importa, o que precisamos agora mais do que nunca, é o cuidado.
É possível quantificar o trabalho de cuidado?
Pois é, neste contexto, como a gente recompensa esse trabalho tão importante? Ninguém tem uma proposta definitiva, e eu não vou me atrever a arriscar. É muito difícil quantificar e precificar, pois o modelo de mercado já contém dentro dele uma desvalorização, um dado viciado.
Desde a década de 1990, economistas feministas vêm destacando como o trabalho de cuidado é desvalorizado. Funções cotidianas como nutrir, educar e criar são historicamente associadas a mulheres, dentro e fora de casa (a responsabilidade recai ou sobre a própria dona de casa ou sobre uma cuidadora contratada, uma babá ou uma enfermeira, por exemplo).
De um lado, o trabalho doméstico não é remunerado e nem é considerado no PIB [no Brasil, as mulheres respondem por 85% dos afazeres domésticos, com dedicação diária de até 6 horas, enquanto a participação dos homens chega a 60 minutos; se fossem remuneradas pelo trabalho feito dentro da própria casa, elas responderiam por quase 11% do PIB nacional, indica um estudo da demógrafa Jordana Cristina de Jesus, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte]. De outro, se contratados, cuidados de casas, crianças e idosos são mal remunerados. São atividades fundamentalmente importantes, desempenhadas por pessoas de posições sociais mais vulneráveis.
Toda sociedade vai revelar muito sobre sua realidade ao se pensar quem cuida de quem cuida de nós. No Brasil, a maioria dos servidores domésticos são mulheres pobres, periféricas, negras. Surpreende, por exemplo, que uma das primeiras mortes no país foi de uma empregada doméstica infectada pela empregadora que voltou de viagem da Itália? Isso revela a desvalorização da vida de quem desempenha essas funções. É ignorar o valor da vida dos vulneráveis.
Por que historicamente tais trabalhos foram delegados às mulheres?
Diversas autoras, como Nancy Folbre, Julie Nelson e Nancy Fraser, tratam dessa questão, sobre como se construiu a ideia de que cuidar da casa é “naturalmente” para meninas e mulheres. Mas um dos primeiros a apontar para a questão foi o teórico alemão Friedrich Engels, no século 19, a partir do trabalho do antropólogo americano Lewis Henry Morgan, que trata do “acidente histórico” que levou nossa espécie a uma divisão de trabalho entre homens e mulheres, o que não tinha o significado de gênero tal qual o atual. Engels tratou da possibilidade de acumulação de riqueza nas esferas de atividade ocupada por homens historicamente, relegando às mulheres as atividades do lar. Em outras palavras, na época da ascensão do capitalismo, a sociedade se dividiu entre a esfera “pública”, masculina, e a esfera “privada”, feminina. De lá pra cá, foi ladeira abaixo, cristalizando a desigualdade de gênero que persiste até hoje.
No Brasil, médicos e enfermeiros foram aplaudidos por sua atuação na pandemia. Por que esses trabalhos são valorizados e outros não?
É uma pergunta importante, na qual antropólogos e sociólogos devem se debruçar. É uma diferença abismal, de fato. Mas não custa lembrar: na Grã-Bretanha, onde médicos e enfermeiros também foram aplaudidos recentemente, a resposta foi a seguinte: aplauso é muito bom, mas não vale nada se cortarem investimentos para a rede pública de saúde. Vale para o Brasil.
A crise pode ressignificar e revalorizar o trabalho de cuidado?
Como diz o físico alemão Max Planck, as ideias avançam um funeral de cada vez. Quer dizer, nada é automático, é preciso mobilizar.
Esta é uma crise epidemiológica terrível, que deve levar a uma recessão econômica assustadora, com desemprego cataclísmico – segundo a estimativa do Federal Reserve de Saint Louis, a previsão é de 32% nos Estados Unidos para fins de junho, o que quer dizer mais de 50 milhões de desempregados. Terá um custo altíssimo de desumanização, degradação, sofrimento social. Isto é, não é apenas uma crise epidemiológica e econômica, é uma crise social. É também uma oportunidade aberta para focar na sociedade. É vingar o social.
Nós nunca pensamos como um carro funciona até que ele quebre e a gente precise rever o motor, tentar descobrir o problema. Pois é, o carro quebrou, assim como em 2008, quando o mundo passou por uma crise financeira internacional, gigantesca. Não é uma pedrinha no caminho, é uma ponte que caiu. Já passou da hora de acordar, de pensar como modular a atividade econômica de uma forma mais justa, mobilizar trabalhadores e intelectuais para gerar discursos novos para mostrar que o que importa é o social, o público, o comum.
Diante de uma epidemia, se você tem acesso a médicos, você ajuda a preservar a saúde coletiva da sociedade; se você cuida de alguém, você está desempenhando um papel que faz toda a diferença; se você tem acesso a seguro desemprego, você pode manter despesa desempregado, quer dizer, gera um bem social. E nós, economistas, precisamos entender o que está acontecendo e ajudar a engajar a sociedade.
O trabalho de cuidado é subestimado pelos economistas?
A economia ignorou isso por muito tempo. A esquerda ignorou isso por muito tempo. O trabalho de cuidado foi negligenciado por parte de acadêmicos marxistas e pós-keynesianos, por parte do movimento sindical, que ignoraram a dimensão de gênero. E a gente está pagando o preço agora, pois essa negligência abriu brecha para feministas liberais, não necessariamente progressistas, para quem a emancipação começa e termina quando você tem uma CEO mulher, de um lado, e milhões de mulheres discriminadas, de outro. É óbvio que é importante ter uma CEO, mas não é suficiente – se você não tem igualdade, você tem desigualdade. O que estamos tentando articular é uma visão integrada de um projeto de emancipação, que não tem como desconsiderar o social. É um trabalho em andamento.
Quem deve cuidar de quem cuida de nós?
Todos nós. Vivemos em economias de mercado, então, é preciso prover para as pessoas que atuam no trabalho de cuidado. E, veja só, existe uma tecnologia antiga, a moeda, a renda. É preciso, portanto, instituir programas de renda universal, transferências sociais e tudo mais para essas pessoas, principalmente agora. Não como medida emergencial apenas, mas de longo prazo, um benefício garantido pela sociedade através do estado.
É um pequeno passo em direção ao reconhecimento e, principalmente, de cuidado para as necessidades básicas de quem sempre cuidou de nós. É o mínimo para garantir o funcionamento de uma casa, um nível básico de acesso e consumo. No fundo, isso quer dizer reconhecer que 1) existe este trabalho; 2) é essencial este trabalho; 3) cuidadores são membros da sociedade; 4) eles estão trabalhando o tempo todo para o bem-estar dos outros; 5) e devem ser remunerados, valorizados. Se nós, como sociedade, não fizermos isso, ninguém fará.
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