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domingo, 10 de maio de 2020

Sai à luz o romance inédito mais íntimo de Simone de Beauvoir, ’As Inseparáveis'

Filósofa e escritora contou no texto a trágica história de sua amizade juvenil com Élisabeth ‘Zaza’ Lacoin, mas nunca se decidiu a publicá-lo em vida

El País

SILVIA AYUSO

Paris - 10 MAY 2020

Élisabeth ‘Zaza’ (esquerda) e Simone de Beauvoir em Gagnepan (França) em 1928.
Élisabeth ‘Zaza’ (esquerda) e Simone de Beauvoir em Gagnepan (França) em 1928.ASOCIACIÓN ELISABETH LACOIN
Teria havido uma Simone de Beauvoir sem uma Élisabeth Zaza Lacoin? A responsável pelo despertar feminista de milhões de mulheres durante gerações deve a uma amizade da juventude, que a marcaria por toda a vida, boa parte de sua própria tomada de consciência sobre os espartilhos impostos pela sociedade. A amizade de Zaza, que conheceu aos nove anos e de quem foi praticamente inseparável até sua morte repentina pouco antes de fazer 22 anos, em 1929. Seu rastro aparece em várias obras de Simone de Beauvoir. Mas nunca como em Les Inséparables, o romance totalmente dedicado a essa curta amizade que a escritora nunca se decidiu a publicar em vida.

Sua filha adotiva e depositária de sua herança literária, Sylvie Le Bon de Beauvoir, decidiu que o livro seja conhecido agora, transformando-o na primeira obra de ficção da autora de O Segundo Sexo que se poderá ler depois da sua morte, 34 anos atrás, e à qual o EL PAÍS teve acesso. O livro será lançado na França em outubro − quando sairá também no Brasil pela editora Record, com o título de As Inseparáveis.
Talvez o melhor exemplo da importância de Lacoin na vida de Simone de Beauvoir —segundo sua filha, a escritora “queria ressuscitar sua amiga da juventude”— seja o fato de que antes de terminar Les Inséparables, em 1954, tenha feito quatro tentativas anteriores de escrever sobre isso. “Hesitava entre a ficção e a autobiografia”, explica em um correio eletrônico Sylvie Le Bon de Beauvoir, que escolheu o título do romance —que a filósofa deixou pronto, mas sem nome.
Para a editora francesa do inesperado livro, que deveria ter sido posto à venda na França em maio, mas devido ao coronavírus teve o lançamento adiado para outubro (na Espanha e em alguns outros países não estará disponível antes de 2021), a ficção pela qual a autora acabou optando foi um acerto. “Como romance, tem uma força completamente diferente para o leitor, porque há uma forma de identificação, é possível estabelecer relação com sentimentos e encenação” de uma forma que outros formatos não permitem, diz por telefone Laurence Tâcu, da Éditions de L’Herne.

Uma jovem formal

Zaza não é uma desconhecida para os leitores de Simone de Beauvoir. É a Elisabeth Mabille que marca também Memórias de uma Jovem Formal, primeiro volume autobiográfico no qual em 1958, quatro anos depois de acabar Les Inséparables, Beauvoir contava e refletia precisamente sobre essa vida burguesa e espartilhada que a esperava como jovem nascida de “boa família” e contra a qual acabaria se rebelando.
Em Les Inséparables, Zaza é Andrée Gallard, uma “pequena desconhecida de cabelos castanhos, bochechas afundadas e olhos escuros e brilhantes que fitam com intensidade” e cuja “segurança e fala rápida e precisa” desconcertam e fascinam imediatamente Sylvie Lepage, pseudônimo de Simone de Beauvoir, ao ponto de se transformar em um amor adolescente, o primeiro talvez. “De repente, entendo, com estupor e alegria, que o vazio do meu coração, que o sabor triste dos meus dias, tinham apenas uma causa: a ausência de Andrée. Viver sem ela não era viver”, escreve alguém que, no entanto, sabe que sua amiga “ignora completamente” o que sente por ela. Tampouco a corresponderia. “Qual é o sentimento inominado que, sob o rótulo convencional da amizade, abraça seu coração novo, entre a admiração e os transes, senão o amor?”, decodifica Le Bon no prólogo. “Ela compreende rapidamente que Zaza não sente um apego semelhante, e que nem suspeita da intensidade do seu, mas o que isso importa diante do deslumbramento que significa amar?”, acrescenta.
Outros nomes e detalhes da vida real das duas foram mudados no romance. “Sua educação as limita, não há familiaridades, elas se tratam com formalidade, mas, apesar dessa reserva, conversam como Simone nunca conversou com ninguém”, assinala sua filha no prólogo.

Simone de Beauvoir em sua casa de Paris.
Simone de Beauvoir em sua casa de Paris. JACQUES PAVLOVSKY / EL PAÍS

Para Tâcu, “o magnífico do livro é que Simone o escreve quando já é uma pessoa reconhecida [cinco anos antes, havia publicado O Segundo Sexo] e, mesmo assim, apresenta-se em um plano secundário, um pouco como a sombra daquela jovem que admira e que é uma rebelde muito antes que ela”.
Mas, com o passar dos anos, diz Sylvie Le Bon, “intelectualmente foi Simone que influenciou Zaza, que a encorajou a ser ela mesma”. A importância da amiga, afirma, “está em outro plano: a presença de Zaza ao seu lado quando ela travava um difícil combate por sua emancipação foi valiosa. As duas lutaram juntas contra o ‘destino lamacento’ que as esperava como mulheres naquela época, e nessa luta Zaza sucumbiu. Essa tragédia atormentou Simone de Beauvoir”. Mas também a transformou no que chegaria a ser, insiste Tâcu, que recorda as palavras da própria filósofa em suas memórias: “Acredito que paguei minha liberdade com sua morte”.
Por que uma obra que narra um episódio tão fundamental ficou tantos anos engavetada? Por um lado, há um aspecto protocolar. Após a morte da filósofa em 1986, Sylvie Le Bon se tornou a depositária de sua herança literária. “Tive de publicar primeiro sua correspondência, porque ela já tinha começado a fazer isso: cartas a Sartre, a Nelson Algren, a Jacques-Laurent Bost […] Agora vou poder me dedicar aos romances e aos romances curtos”, afirma. Depois, há o fato de que a própria Simone de Beauvoir não se decidiu a publicar o livro, principalmente depois que seu companheiro Jean-Paul Sartre a desprezou. “Acho que ela era muito severa consigo mesma. E Sartre era muito severo com Simone. Talvez ele também não quisesse vê-la como como escritora, mas como filósofa”, relativiza Tâcu, que, como Le Bon, destaca o fato de que a própria escritora nunca destruiu essa obra: “Se tivesse sido apenas um rascunho, não a teria datilografado. Acredito que era algo tão íntimo que para ela era difícil trazê-la à luz em vida. É um livro acabado. É um bom livro”.

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