A série da Netflix não evita mostrar traumas e dores que famílias de origem asiática frequentemente varrem para baixo do tapete.
By Vyshnavee Wijekumar, HuffPost Australia
16/05/2020
Em 2014 meu pai morreu. Foi uma tragédia que alterou a trajetória da minha vida, quem eu sou e a relação que tenho com minha cultura tâmil cingalesa.
Muitas famílias migrantes costumam varrer os traumas para debaixo do tapete, especialmente os traumas associados à morte e à fuga de guerras. Mas a nova série de Mindy Kaling, Eu Nunca..., da Netflix, sobre as experiências de uma adolescente, encara o sofrimento e a tristeza de uma ótica cultural, de maneira autêntica e com a qual muitas pessoas podem se identificar.
A série é estrelada pela estreante canadense de origem tâmil Maitreyi Ramakrishnan no papel de Devi Vishwakumar e explora o significado de ser uma criança de terceira cultura, termo cunhado pela socióloga americana Ruth Hill Useem na década de 1950 para descrever crianças que crescem em países que não são o país de origem de seus pais
A série é estrelada pela estreante canadense de origem tâmil Maitreyi Ramakrishnan no papel de Devi Vishwakumar e explora o significado de ser uma criança de terceira cultura, termo cunhado pela socióloga americana Ruth Hill Useem na década de 1950 para descrever crianças que crescem em países que não são o país de origem de seus pais
Observamos desde o primeiro momento o cabo de guerra entre Devi e seus pais. Estes querem preservar os valores culturais de seu país de origem, enquanto ela anseia por uma experiência adolescente que se assemelhe às narrativas mainstream popularizadas pela cultura americana.
Aproximadamente autobiográfica, a série de Kaling mostra a protagonista sentindo-se tímida, tratada como um ser exótico quando usa roupas tradicionais em locais públicos, e revoltando-se contra o que enxerga como sendo o domínio tirânico de seus pais. E parece guardar semelhanças espantosas com a minha própria vida, provavelmente porque tem sua origem em vivências autênticas.
A sequência inaugural do primeiro episódio me lembra minha própria adolescência. Vemos Devi sentada diante de seu livro de geometria que está posicionado em uma espécie de pequeno altar cheio de imagens de divindades hindus. Ela pede às divindades um convite para uma festa cool de pessoas do colégio, pede para os pelos que cobrem seus braços ralearem e, como não poderia deixar de ser, pede um namorado. É um ritual seguido tradicionalmente por muitos hindus da etnia tâmil, e, como muitos adolescentes tâmeis que crescem numa comunidade resultante de uma diáspora (foi meu próprio caso, anos atrás), em vez de rezar para receber notas boas, você pede aos deuses para ser tremendamente popular e conseguir um namorado bonito.
Mas a parte da série que mais me emocionou, e onde, para mim, Eu Nunca... realmente triunfa, é quando Devi encara e aceita a morte de seu pai.
Como eu disse antes, o trauma emocional é algo que nem sempre é reconhecido por famílias migrantes. Com frequência a palavra de ordem nessas famílias é simplesmente, nas palavras do músico americano Curtis Mayfield, “keep on keeping on” (continue a segurar a onda). Ver Devi tentando trabalhar sua tristeza com sua psicóloga (representada com muita verve por Niecy Nash) – algo que eu só comecei a fazer depois de adulta – é subversivo, de uma maneira boa. Na semana passada minha psicóloga me ajudou a entender que eu estava carregando o manto do legado de meu pai – especialmente no que diz respeito a conservar vivas as tradições tâmeis – em uma tentativa de conservar a essência dele viva. É um comportamento de adaptação próprio de quem perdeu uma pessoa próxima. Já se passaram seis anos desde que meu pai faleceu.
A penúltima cena do episódio final, em que a família de Devi se reúne na praia para espalhar as cinzas de seu pai, realmente calou fundo no meu coração. Em vez de uma praia de Malibu durante a tarde, meus tios, minha irmã e eu fomos de traje tradicional completo até Manly Beach, em Nova Gales do Sul (Austrália), ao raiar do dia, para espalhar as cinzas de Appa, meu pai. Em lugar de toparmos com John McEnroe com roupa de surfista, nos deparamos com dois surfistas australianos cuja expressão perplexa mostrava que eles deviam estar pensando: “esse pessoal pardo é maluco”. Com as ondas batendo nas calças enroladas do meu churidar, tentei entender como uma pessoa tão presente agora estava reduzido a cinzas que estavam sendo derramadas, dissolvendo-se rapidamente na água e sendo levadas lentamente pelo mar aberto.
Quando o som de Beautiful Day, do U2, se elevou na série ao fundo nesse momento carregado de emoção, as lágrimas escorreram por meu rosto. Toda a raiva, tristeza e dor residuais de meu próprio adeus doloroso, porém poético, voltaram a me inundar. Adoro o uso que Mindy Kaling faz do humor adolescente, mas o que torna Eu Nunca... tão especial é o modo como ela mostra o sofrimento.
Eu Nunca... brilha no retrato que faz de uma garota educada numa família imigrante essencialmente tâmil, embora hindu. O modo como Sendhil Ramamurthy (que representa o pai de Devi) pronuncia mal a palavra “thakalli” (tomate, em tâmil), deu origem a mil memes virais nos grupos de Facebook “Subtle Curry Traits” e “Subtle Tamil Traits” (podem pesquisar, é toda uma onda). De modo geral, porém, o humor e as caracterizações próprias de Mindy Kaling criam um equilíbrio entre lágrimas e gargalhadas. Qualquer pessoa que tenha sido desajeitada na adolescência ou tenha enfrentado a dor de perder uma pessoa querida pode se identificar.
Espero que haja uma segunda temporada. Talvez eu até reze para Ganesha por isso.
*Este artigo foi publicado originalmente no HuffPost Austrália e traduzido do inglês.
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