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domingo, 24 de maio de 2020

Trabalhadoras no front de combate ao coronavírus no Brasil

Por Mayara Rodrigues de Almeida
Quarta-feira, 20 de maio de 2020
Ao analisarmos a composição dos postos de trabalho que fortalecem a “linha de frente” do combate ao novo coronavírus, nos deparamos com muitos rostos femininos, situação recorrente também em outros países.

Neste sentido, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) apontou que no contexto pandêmico houve o aumento das desigualdades de gênero e a piora da qualidade de vida das mulheres, uma vez que elas compõem 70% da força de trabalho em serviço social e de saúde ao redor do mundo [1].  Assim, para além da romantização das jornadas exaustivas associadas ao tratamento complexo de uma doença recém surgida, é necessário não apenas observarmos o protagonismo feminino, mas validá-lo através de valorização, respeito e proteção no âmbito laboral.

Nesta percepção, ao contemplarmos o papel desempenhado pelo trabalho da mulher ao longo da história, concluímos que o mesmo é imerso em valores tidos como vocacionais e simbólicos. Neste cenário, em especial, é necessário relembrarmos o que é conceituado como “feminização do cuidado” na divisão sexual do trabalho. Conforme Lopes e Leal [2]: 
“coexiste com o cuidado doméstico às crianças, aos doentes e aos velhos, associado à figura da mulher-mãe que desde sempre foi curandeira e detentora de um saber informal de práticas de saúde, transmitido de mulher para mulher. É a condenação desses saberes, especialmente para o controle social e religioso da sexualidade e da reprodução, que impõe questionamentos a sua legitimidade e mudanças no seu livre exercício.”.
Silveira [3] considera que o debate sobre as políticas integradas de gênero é um tema distante para a maioria dos organismos de políticas para mulheres na administração pública brasileira e ressalta a importância das articulações contra-hegemônicas que possibilitam “práticas de cidadania ativa para a concretização da justiça de gênero, sobretudo pela responsabilidade do Estado de redistribuir riqueza, poder, entre regiões, classes, raças e etnias, entre mulheres e homens etc”. À vista disso, demonstrar o trabalho executado pelas mulheres na linha de frente do combate ao coronavírus no Brasil é a oportunidade para questionarmos as relações entre o saber e a manutenção da hegemonia do tratamento sobre o cuidado; as relações entre o poder e a garantia da hierarquia de posições e de postos de decisões no ambiente de trabalho e nas vidas pessoais dessas mulheres (haja vista a divisão do trabalho doméstico, por exemplo); além da discussão acerca da manutenção de diferentes remunerações baseadas em supostas qualificações e valores de trabalho atravessados pela dicotomia “homemXmulher” tão marcadas no ambiente laboral.

Particularmente, no cenário pandêmico, a Medida Provisória 927/2020, previu a prorrogação da jornada dos trabalhadores da saúde, os quais, em sua quase totalidade, cumpriam 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso. Ou seja, tais previsões permitiram uma afronta a direitos constitucionalmente previstos, como a dignidade da pessoa humana e de proteção à saúde e à segurança no trabalho, uma vez que foi permitida a extrapolação da jornada de trabalho sem considerar o ambiente tensionado a que estas trabalhadoras estão submetidas, além do risco alto de exposição ao contágio. Vejamos os trechos da referida Medida:
“Art. 15.  Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, fica suspensa a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto dos exames demissionais. (…)
Art. 16.  Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, fica suspensa a obrigatoriedade de realização de treinamentos periódicos e eventuais dos atuais empregados, previstos em normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho. (…)
Art. 26.  Durante o de estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, é permitido aos estabelecimentos de saúde, mediante acordo individual escrito, mesmo para as atividades insalubres e para a jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso:
I – prorrogar a jornada de trabalho, nos termos do disposto no art. 61 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943; e
II – adotar escalas de horas suplementares entre a décima terceira e a vigésima quarta hora do intervalo interjornada, sem que haja penalidade administrativa, garantido o repouso semanal remunerado nos termos do disposto no art. 67 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943. (…)
Art. 29.  Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.”
Nesta perspectiva, recente publicação do IPEA demonstrou que:
“Com base em dados do Censo de 2000, a participação das mulheres no setor saúde chega a quase 70% do total, sendo 62% para as categorias de nível superior e 74% de nível médio e elementar. Em algumas carreiras, como Fonoaudiologia, Nutrição e Serviço Social, elas alcançam quase a totalidade, ultrapassando 90% de participação. Em outras, como Enfermagem e Psicologia, estão com percentuais acima de 80%. Entre os médicos, representam 36% (…)”
Logo, o “patriarcado do salário” [4] interfere diretamente na força do trabalho feminino, uma vez que muitas destas mulheres trabalham em mais de uma instituição de saúde, o que aumenta a exposição ao vírus. Além de estarem privadas do convívio familiar diante do alto perigo de contágio e da possibilidade de execução do “trabalho invisível” (doméstico) fora da jornada de trabalho – esta já prorrogada pela MP 927/2020. 

Assim, deve ocorrer o resgate da solidariedade política entre as mulheres também na “compaixão compartilhada em casos de sofrimento comum” [5]. A vice-secretária geral da ONU e diretora executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, ao analisar os papéis e responsabilidades das mulheres em importante declaração datada de março de 2020, refere que:
“O surto de Ebola de 2014-2016, nos países da África Ocidental da Guiné, Libéria e Serra Leo,a e a epidemia de zika 2015-2016, na América Latina, fornecem lições essenciais de saúde pública e socioeconômicas de gênero. As mulheres nesses surtos foram expostas a riscos de saúde e econômicos, como estão novamente, agora, de maneira intrinsecamente conectada com seus papéis na comunidade e responsabilidades como cuidadoras no lar e na família.”[6]
Diante desta conjuntura, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), guarnecido por dados do IBGE, indica que mulheres representam 65% dos mais de seis milhões de profissionais atuantes no setor público e privado de saúde, em todos os níveis de complexidade da assistência. Em algumas carreiras, como Fonoaudiologia, Nutrição e Serviço Social, elas ultrapassam 90% dos profissionais e em outras, como Enfermagem e Psicologia, representam mais de 80% [7]. 

Estima-se, ainda, que 69,2% das pessoas trabalhando na administração direta da área da saúde, a gestão federal do SUS, são mulheres [8]. No Brasil, conforme a Portaria 639/2020, do Ministério da Saúde, há quatorze profissões regulamentadas para atuação em ações estratégicas de combate ao coronavírus, dentre as quais: Serviço Social, Biologia, Biomedicina, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia e Técnicos em Radiologia. Consequentemente, o número de profissionais de saúde com suspeita e confirmação de contágio pelo vírus no Brasil é crescente, apenas em maio, 31.790 casos foram confirmados pelo ministério da Saúde. Se tomarmos por base o que vem acontecendo na Espanha, por exemplo, 14% do total de casos confirmados (aproximadamente, 40 mil, em 24 de março de 2020) eram de profissionais de saúde [9].

A Organização das Nações Unidas (ONU-MULHERES), em apoio à Agenda 2030, lançou a iniciativa global “Por um planeta 50-50 em 2030: um passo decisivo pela igualdade de gênero”, onde todas e todos são convocados a trabalharem de maneira “determinada, concreta e sistemática para eliminar as desigualdades de gênero” através do compromisso firmado por 90 países, entre eles o Brasil. Assim, não podemos falar do futuro, ou de um “novo agora”, sem a análise da força de trabalho feminino, das condições saudáveis para o exercício do trabalho, da eliminação de todos os tipos de assédios e discriminações. 

Se provocamos o repensar das condições do trabalho feminino atualmente radicado na sensibilidade e na coragem do front combatente, também salientamos os exemplos oriundos de líderes [10] como Jacinda Ardern (Nova Zelândia), Katrín Jakobsdóttir (Islândia), Angela Merkel (Alemanha), Erna Soldberg (Noruega) e Mette Frederiksen (Dinamarca), as quais souberam preparar as equipes de combate à pandemia, rastrear, testar, tratar, eliminar e/ou monitorar o coronavírus com sucesso.  Devemos avaliar qual o lugar da mulher neste sistema e qual a real disponibilidade das políticas públicas no fomento e na manutenção dos direitos duramente conquistados pela Constituição Federal de 1988, pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e por inúmeros movimentos de mulheres trabalhadoras dispostas a resgatá-los e defendê-los. 

Mayara Rodrigues de Almeida é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGPSS/UFRGS); especializanda em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPG Dir. do Trabalho/UFRGS); Bacharela em Direito pela PUCRS (2016/01); Advogada Trabalhista (OAB/RS 108.494-B)
Notas:
[1] UNFPA – United Nations Population Fund. COVID 19: Um olhar para gênero. Resumo Técnico, março 2020. Disponível em https://brazil.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/Covid19_olhar_genero.pdf Acesso em: 15/05/2020.
[2] LEAL, Sandra Maria Cezar; LOPES, Marta Júlia Marques. Cadernos pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp.105-125. Disponível em:   https://www.scielo.br/pdf/cpa/n24/n24a06.pdf  . Acesso em: 15/05/2020.
[3] SILVEIRA, Maria Lucia. Políticas Públicas de Gênero: impasses e desafios para fortalecer a agenda política na perspectiva da igualdade. in: SEMINÁRIO NACIONAL DE COORDENADORIAS DA MULHER NO NÍVEL MUNICIPAL, 2003, São Paulo. Anais… São Paulo: URBES, 2003. p. 1‐8.
[4] FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.
[5] HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução: Ana Luiza Libânio. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
[6] ONU-MULHERES (2020). COVID-19: Mulheres à frente e no centro, 27/03/2020. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/noticias/Covid-19-mulheres-a-frente-e-no-centro/. Acesso em: 14/04/2020.
[7] CONASEMS – Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Protagonismo feminino na saúde: mulheres são a maioria nos serviços e na gestão do SUS. Publicado em 06/03/2020. Disponível em https://www.conasems.org.br/o-protagonismo-feminino-na-saude-mulheres-sao-a-maioria-nos-servicos-e-na-gestao-do-sus/. Acesso em: 14/05/2020.
[8] HERNANDES, Elizabeth; BOSCO, Zaira Farias; RIBEIRO, Maircon Batista. Perfil socioeconômico e epidemiológico dos trabalhadores do Ministério da Saúde do Brasil. In: Comun. ciênc. Saúde; 28(3-4): 303-312, jul. 2017. Disponível em https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-972678 Acesso em: 13/05/2020.
 [9] The New York Times, Virus Knocks Thousands of HealthWorkers Out of Action in Europe, 24/03/2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/03/24/world/europe/coronavirus-europe-covid-19.html#click=https://t.co/9h8TqDnDx8 . Acesso em 15/05/2020.
[10] BBC Brasil, Coronavírus: por que países liderados por mulheres se destacam no combate à pandemia?, 22/04/2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52376867?fbclid=IwAR1faf-eiOUmKHmJTMpHmPF2_4TvwBOcNjGaMmK7c0YASjHf6l1HnJIQNfE. Acesso em: 16/05/2020.

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