A filósofa e escritora Djamila Ribeiro escreve sobre as dimensões do "cancelamento": "Talvez um cenário novo seja o incômodo, de fato, com o termo. Porque pessoas pertencentes a grupos vulneráveis têm sido canceladas no país desde Terra de Santa Cruz e isso nunca gerou grande comoção por aí"
Após o uso reiterado do termo nas redes sociais, “cancelamento” tem sido tema de mesas de debate, capas de revista e discussões na internet. O termo tem sido usado em diferentes sentidos, sendo o mais usual o que se refere ao boicote pela não menção, pelo ignorar das opiniões, imagens de uma instituição ou alguém por um comportamento ofensivo, preconceituoso ou discriminatório.
Vale dizer que tal conduta é uma prática antiga em termos de militância e me parece uma estratégia correta em muitos casos. Como afirma o antropólogo Rodney William: “De fato, uma instituição ou um negócio, uma cantora ou ator famoso, um político ou empresário deve cuidar de sua imagem e conduta e agir com um mínimo de responsabilidade. Nesse contexto, boicote a organizações e pessoas públicas por meio do cancelamento até me parece justo e adequado, especialmente em casos de declarações e comportamentos racistas, misóginos, machistas, transfóbicos ou homofóbicos”.
Vale dizer que tal conduta é uma prática antiga em termos de militância e me parece uma estratégia correta em muitos casos. Como afirma o antropólogo Rodney William: “De fato, uma instituição ou um negócio, uma cantora ou ator famoso, um político ou empresário deve cuidar de sua imagem e conduta e agir com um mínimo de responsabilidade. Nesse contexto, boicote a organizações e pessoas públicas por meio do cancelamento até me parece justo e adequado, especialmente em casos de declarações e comportamentos racistas, misóginos, machistas, transfóbicos ou homofóbicos”.
Agora, de fato, é preciso aprofundar o que se pensa sobre cancelamento, uma vez que por ser uma ação que visa o remanejamento de poder ela será eficaz quando o alvo for uma pessoa negra. Como explica Carla Akotirene, doutoranda em Estudos de Gênero pela UFBA e autora de Interseccionalidade: “A meu ver, cancelar pessoas brancas não tem efeitos estruturais, porque brancos são uma raiz colonial estável rica e reestruturada, então a paisagem do boicote é superficial. Imagens são reposicionadas”.
Um caso emblemático para analisarmos é o cantor Simonal. Negro, lotou estádios e suas músicas fizeram muito sucesso. No seu auge, porém, espalhou-se o boato, uma mentira comprovada, de que teria sido um delator no regime ditatorial branco no país. O resultado foi um cancelamento de toda sua carreira, relegando-o ao esquecimento e loucura. Nina Simone, épica cantora, foi cancelada por seus rompantes contra situações de injustiça que presenciava, passando parte da sua carreira cantando em botecos de Paris.
"A facilidade com que se cancela pessoas negras deveria ser um alarme. Não, Simonal não foi um agente da ditadura, mas e se fosse? Tem muito branco que assumidamente foi e até hoje é rei.""Djamila Ribeiro
A facilidade com que se cancela pessoas negras deveria ser um alarme. Não, Simonal não foi um agente da ditadura, mas e se fosse? Tem muito branco que assumidamente foi e até hoje é rei.
Volto a Akotirene, minha irmã, que em mesa recente no Festival GRLS, em São Paulo, exatamente sobre esse tema lembrou as inúmeras mulheres negras que têm sido canceladas definitivamente por terem suas vidas ceifadas nas mãos, facas e revólveres de homens canceladores. Trata-se de uma epidemia de morte contra mulheres – muito mais letal que qualquer coronavírus – e tem escalado a morte de mulheres negras nos últimos anos, enquanto a de mulheres brancas tem diminuído, embora ainda assim um absurdo.
Em face dessa epidemia, o que podemos esperar de uma ministra que afirma que meninos vestem azul e meninas vestem rosa? Uma mulher que simplesmente não conseguimos cancelar, pois amparada pelo poder patriarcal e branco. Quantas mulheres foram canceladas dos livros de história? Quantos indígenas tiveram suas propriedades medicinais canceladas por farmacêuticas que se valeram de seus conhecimentos ancestrais para patenteá-los em países do Norte Global?
Volto a Akotirene, minha irmã, que em mesa recente no Festival GRLS, em São Paulo, exatamente sobre esse tema lembrou as inúmeras mulheres negras que têm sido canceladas definitivamente por terem suas vidas ceifadas nas mãos, facas e revólveres de homens canceladores. Trata-se de uma epidemia de morte contra mulheres – muito mais letal que qualquer coronavírus – e tem escalado a morte de mulheres negras nos últimos anos, enquanto a de mulheres brancas tem diminuído, embora ainda assim um absurdo.
Em face dessa epidemia, o que podemos esperar de uma ministra que afirma que meninos vestem azul e meninas vestem rosa? Uma mulher que simplesmente não conseguimos cancelar, pois amparada pelo poder patriarcal e branco. Quantas mulheres foram canceladas dos livros de história? Quantos indígenas tiveram suas propriedades medicinais canceladas por farmacêuticas que se valeram de seus conhecimentos ancestrais para patenteá-los em países do Norte Global?
Minha impressão é que a partir de que as redes sociais passaram a dar um mínimo de espaço para quem era cancelado diariamente dos veículos de comunicação, pessoas inquestionáveis passaram a ser questionadas e canceladas, gerando o incômodo sobre o tema. De repente, uma pessoa que jamais sonharia em ser questionada vai ter mais dificuldade em se reabilitar em redes sociais após votar a reforma trabalhista e da previdência. De repente, ter feito campanha por um golpe parlamentar que descambou no desgoverno atual torna mais difícil a reabilitação.
Talvez um cenário novo seja o incômodo, de fato, com o termo. Porque pessoas pertencentes a grupos vulneráveis têm sido canceladas no país desde Terra de Santa Cruz e isso nunca gerou grande comoção por aí.
Djamila Ribeiro é mestre em filosofia política e feminista, autora dos livros O Que é Lugar de Fala, Quem Tem Medo do Feminismo Negro? e Pequeno Manual Antirracista.
(@djamilaribeiro1)
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