Em entrevista exclusiva, a ministra do STF diz que o país tem tirado seu sono, defende a liberdade de imprensa e discorre sobre as raízes do preconceito e da violência contra a mulher
A mineira Cármen Lúcia Antunes Rocha foi a primeira mulher a entrar de calças compridas no Supremo Tribunal Federal. O ano era 2007 e ela decidiu quebrar o protocolo a pedido de uma jornalista, impedida de trabalhar por usar a peça. Foi também a segunda mulher a ocupar uma cadeira na mais alta corte brasileira - a primeira foi Ellen Grace, que entrara ali seis anos antes. Cármen Lúcia foi ainda a primeira mulher a presidir o Supremo, entre 2016 e 2018, onde, diante dos olhos de todo o país, repreendeu o ministro Luiz Fux, quando este interrompeu seguidas vezes a colega Rosa Weber no discurso de um voto. “Foi feita uma pesquisa, em todos os tribunais constitucionais onde há mulheres, o número de vezes em que elas são apartadas é 18 vezes maior do que entre os ministros”, explicou Cármen Lúcia ao magistrado. “Aqui, eu e a ministra Rosa, não nos deixam sequer falar e por isso não somos interrompidas. Mas agora é a vez da ministra Rosa, por direito constitucional, votar. Tenha a palavra, ministra”, encerrou a colocação que entrou para a história do Supremo e virou um dos memes mais compartilhados no Brasil naquele maio de 2017.
Católica, Cármen Lúcia conta que a violência mais forte que sofreu no cargo aconteceu depois da sessão que legalizou o aborto de fetos anencéfalos no Brasil, em 2012. “Um grupo que assistiu ao julgamento gritou muito contra mim. Não gritaram contra os homens, só comigo, que sou mulher”, me contou Carminha, como é chamada pelos amigos, em uma entrevista de uma hora e meia pela internet, momentos antes da publicação do video da reunião ministerial em que o titular da pasta da educação brasileira, Abraham Weintraub, disse que, por ele, “botava todos aqueles vagabundos na cadeia”, em referência aos ministros do STF — Cármen Lúcia não quis se manifestar sobre o episódio. Contam no currículo da juíza, que carrega a Constituição brasileira literalmente nos bolsos, outras decisões progressistas: a legalização das uniões homoafetivas e a liberação das biografias não autorizadas, por exemplo. No julgamento desta última, enfatizou: “Cala a boca já morreu”, disse ao ler o voto.
Nascida em Montes Claros e criada em Espinosa, norte de Minas Gerais, é a terceira filha de uma família de sete irmãos. O pai, Florival, era o dono de um posto de gasolina. A mãe, Anésia, professora, virou dona de casa depois que ela nasceu. Suas lembranças de infância mais doces, conta, são dos sábados de feira em Espinosa, quando dona Anésia abria as portas da casa para receber conterrâneos que precisavam de alguma ajuda. “Lembro de contar 10 muletas do lado de fora da casa enquanto o pessoal almoçava”, diz, referindo-se também à diversidade que povoou sua infância. Aos 10 anos, foi estudar em um internato de freiras. Carrega até hoje o hábito de acordar cedo (mais especificamente 5h30), arrumar a própria cama antes de começar o dia. Também é ela quem cozinha e arruma a casa — em Brasília, onde passa a maior parte do tempo, recebia uma faxineira uma vez por semana antes da pandemia. É ela, por exemplo, quem limpa as folhas que caem sobre o seu telhado, o que fez com que, certa vez, um homem que passava na calçada a alertasse. “Senhora, é melhor sair daí porque é casa de ministro”.
Dona de um sotaque mineiro carregado, os olhos grandes e um humor espirituoso, Cármen Lúcia é também professora de Direito e foi procuradora do estado de Minas Gerais. Na presidência do Supremo, instituiu um programa chamado Justiça pela paz em casa, que incentiva mutirões nos tribunais brasileiros para julgar casos de violência doméstica e feminicídio três vezes por ano. Também se dedicou a fazer com que mulheres grávidas pudessem cumprir pena em prisões domiciliares. “É preciso fazer valer a lei do Ventre Livre”, dizia, à época. Nomeada pelo ex-presidente Lula em 2006, ela deve permanecer no tribunal até 2029, quando completará 75 anos. De seu apartamento em Belo Horizonte, onde passa a quarentena, disse a Marie Claire que o Supremo é tão machista quanto a sociedade brasileira, lembrou de um assédio que sofreu de um chefe no começo da carreira, discorreu sobre as raízes do aborto clandestino. Por fim, falou que o Brasil tira seu sono e que mandar jornalistas calarem a boca, como fez Jair Bolsonaro, é um ato inconstitucional.
Nascida em Montes Claros e criada em Espinosa, norte de Minas Gerais, é a terceira filha de uma família de sete irmãos. O pai, Florival, era o dono de um posto de gasolina. A mãe, Anésia, professora, virou dona de casa depois que ela nasceu. Suas lembranças de infância mais doces, conta, são dos sábados de feira em Espinosa, quando dona Anésia abria as portas da casa para receber conterrâneos que precisavam de alguma ajuda. “Lembro de contar 10 muletas do lado de fora da casa enquanto o pessoal almoçava”, diz, referindo-se também à diversidade que povoou sua infância. Aos 10 anos, foi estudar em um internato de freiras. Carrega até hoje o hábito de acordar cedo (mais especificamente 5h30), arrumar a própria cama antes de começar o dia. Também é ela quem cozinha e arruma a casa — em Brasília, onde passa a maior parte do tempo, recebia uma faxineira uma vez por semana antes da pandemia. É ela, por exemplo, quem limpa as folhas que caem sobre o seu telhado, o que fez com que, certa vez, um homem que passava na calçada a alertasse. “Senhora, é melhor sair daí porque é casa de ministro”.
Dona de um sotaque mineiro carregado, os olhos grandes e um humor espirituoso, Cármen Lúcia é também professora de Direito e foi procuradora do estado de Minas Gerais. Na presidência do Supremo, instituiu um programa chamado Justiça pela paz em casa, que incentiva mutirões nos tribunais brasileiros para julgar casos de violência doméstica e feminicídio três vezes por ano. Também se dedicou a fazer com que mulheres grávidas pudessem cumprir pena em prisões domiciliares. “É preciso fazer valer a lei do Ventre Livre”, dizia, à época. Nomeada pelo ex-presidente Lula em 2006, ela deve permanecer no tribunal até 2029, quando completará 75 anos. De seu apartamento em Belo Horizonte, onde passa a quarentena, disse a Marie Claire que o Supremo é tão machista quanto a sociedade brasileira, lembrou de um assédio que sofreu de um chefe no começo da carreira, discorreu sobre as raízes do aborto clandestino. Por fim, falou que o Brasil tira seu sono e que mandar jornalistas calarem a boca, como fez Jair Bolsonaro, é um ato inconstitucional.
Marie Claire Como a senhora se adaptou a rotina do distanciamento social?
Cármen Lúcia Diferente da maioria, não foi difícil porque sou muito caseira. Normalmente, vou de casa pro trabalho e do trabalho pra casa. Acordo por volta de 5:30 da manhã e saio pra fazer meu café. Já deixo a cama arrumada, seja domingo, seja feriado. A adaptação se faz, claro, no trabalho; na forma de desempenhar as atividades. Com os advogados já fazia audiências virtuais, agora são todas. Nos julgamentos, a gente entra numa sala virtual, todo mundo tem que se togar [vestir as togas] para a seção. O que noto é que estou trabalhando mais e tendo menos tempo, por exemplo, para uma leitura. O trabalho com o computador é quase obsessivo. De sexta para sábado, trabalhei até 2h da manhã. Isso vai dando uma exaustão. Preciso tomar um certo cuidado para saber a hora de parar, fazer um exercício.
MC Como cuida da saúde?
CL Uma jornalista uma vez perguntou para o Paulo Autran o que ele fazia pra chegar com aquela memória e vigor a certa idade. Ele respondeu: "Não me pergunte porque sou um péssimo exemplo. Fumo, não faço exercícios". Já eu não fumo e não tenho a dimensão de um Paulo Autran, mas não faço exercícios. Fico sempre pensando em quantos processos teria olhado nesse tempo. Preciso me educar nisso. Cuido muito pouco de mim, na verdade. Diz uma das minhas irmãs que gosto muito pouco de mim. Nesses últimos dias tenho pensado mais nisso. Com o seu alerta, quem sabe amanhã faça alguma coisa.
MC Como a Covid-19 impactou a sua vida?
CL Tenho dois amigos que tiveram. Um ficou em casa, se cuidou e está bem. O outro foi internado e o relato me tocou enormemente. Claro que a doença preocupa todo mundo, é algo gravíssimo para humanidade, não só por causa de um círculo mais próximo. Escancarou-se a profunda desumanidade da desigualdade. As pessoas dizem que estamos no mesmo barco. Não estamos. Estamos na mesma tempestade. Há quem esteja no barco no seu camarote, com medo, sofrendo, com dor; mas há pessoas que não têm nem ao menos um barco, estão nas ruas. Essa pandemia mostrou a cara de uma humanidade muito disforme, pouco solidária. A desigualdade se transformou em dor física. É a certeza de que a construção estava errada. Temos que reconstruir uma sociedade na qual a solidariedade não seja só uma palavra, mas uma prática permanente.
MC Na semana passada o STF votou a MP 966, que atrela a responsabilidade dos agentes públicos à conduta recomendada pelos cientistas durante a pandemia. A ciência diz que a cloroquina não é eficiente no combate ao novo coronavírus e pode levar à morte. Como fica a responsabilização dos governantes brasileiros, que recomendam amplamente o uso da droga?
CL A decisão do Supremo vai ser cumprida. Julgamos a responsabilidade civil e administrativa — a penal não é tratada na Medida Provisória 966 —, dos casos que sejam considerados erro grosseiro não cumprir as determinações, entre outras, da Organização Mundial da Saúde em relação a tudo que diga respeito a Covid-19. Portanto, vai se cumprir essa decisão do Supremo Tribunal. Verificada que há a responsabilidade de alguém, provavelmente os órgãos competentes, do Ministério Público ou da própria sociedade, vão tomar providências para apuração. Mas aí vai ser caso a caso.
MC Também na semana passada foi preso um grupo de criminosos que mandaram mensagens ameaçando o ministros do STF de morte. Recebeu essas mensagens?
CL Nem sei. O Supremo e os 11 ministros atualmente volta e meia são alvo desses criminosos. No meu WhatsApp não chegou. O que sempre chega, com muita frequência, são e-mails. Aí a Central do Cidadão ou os gabinetes recebem. Em várias ocasiões tivemos esse tipo de situação. Quando um tema é muito candente para a sociedade, acaba acontecendo. Agora, no entanto, esses ataques são feitos de uma forma dirigida. É a raiva pela raiva, a fúria pela fúria. É mais grave por isso. Precisamos dizer que o exercício de cargo público não é direito, é dever. Então, é pelo cumprimento do dever que o ministro do Supremo está ameaçado.
MC Que outros episódios se recorda desse tipo de violência?
CL A única vez que me lembro de agressão específica foi no julgamento de interrupção de gravidez por anencefalia. Havia um grupo de participantes no plenário que assistiu às sessões. Ao final, quando foi proclamada a decisão — fui um dos votos à favor da interrupção da gravidez — esse grupo gritou muito contra mim especificamente, por eu ser mulher e ter votado à favor. Não agrediram os homens. O Direito é razão, mas a Justiça desperta muita paixão.
MC Desde a redemocratização, nunca se viu tanta hostilidade ao Supremo como neste momento. Precisou aumentar a quantidade de seguranças?
CL Não. Na minha vida pessoal até agora consegui me manter como uma servidora pública cumprindo dever sem nada que fosse além da estrutura do Supremo mesmo [que prevê segurança particular]. Agora, você tem razão, o nível de virulência, violência e fúria, especialmente contra a democracia, e daí o Supremo que tem que garantir a vigência da constituição democrática, aumentou.
MC Como avalia a participação de Jair Bolsonaro em manifestações que pedem o fechamento do Congresso e do Supremo?
CL Não vou me manifestar sobre isso por uma razão: são temas que estão judicializados. Então, no momento oportuno, se for o caso e se for levado ao Supremo, você vai ver minha manifestação.
MC No julgamento sobre as biografias não autorizadas, a senhora disse: “Cala boca já morreu […]. Quem por direito não é senhor do seu dizer, não se pode dizer senhor de qualquer direito". Há algumas semanas, o presidente mandou jornalistas calarem a boca quando perguntado sobre a ingerência na polícia federal. Como avalia a conduta?
CL Vi que os jornalistas não se calaram. Prefiro acreditar nos jornalistas, continuar apostando que a imprensa livre é a garantia de nós, cidadãos, que não precisaremos nos calar diante de quem quer que nos mande calar a boca. Isto é uma agressão muito grave. Mas felizmente, mande quem mandar calar a boca, o jornalista não tem calado. A história do jornalismo brasileiro é a história de busca de liberdade, portanto é uma luta democrática.
MC É uma conduta antidemocrática?
CL Acho que todo mundo que mandar outra pessoa calar a boca se conduz contrariamente ao que fala a Constituição, que é a liberdade de expressão. Aliás, não acho, tenho certeza. A Constituição é taxativa: é livre a manifestação do pensamento. Portanto o "Cala a boca" é inconstitucional.
MC A democracia brasileira está sob ameaça?
CL A democracia é muito forte e não se deixa abater por causa de uma tempestade, um temporal. A pandemia é um temporal. As condições econômicas do Brasil são muito graves. As condições políticas são desafiadoras por conta desses e de outros problemas, porém acho que a vertente democrática ainda é a principal fonte de convivência pacífica. A democracia se retroalimenta permanentemente e se fortalece, mas pra isso é preciso que a gente tenha não uma palavra numa Constituição, mas uma vivência no dia a dia da sociedade e do estado igualmente coerentes com o que a Constituição determina. A democracia vai passar por desafios, mas prevalecerá enquanto prevalecer essa Constituição.
MC Um impeachment no Brasil seria um problema?
CL Impeachment é sempre um problema, um processo muito traumático. Agora, é preciso só afirmar que é uma previsão constitucional para os casos que se fizerem necessários. Sua aplicação é algo muito grave e sério. Mas é um instituto previsto constitucionalmente, claro. Não significa que por ter um remédio na prateleira pode-se tomar como se fosse água.
MC Diante do atual debate sobre a abertura da economia e o isolamento social, qual seu posicionamento?
CL A prioridade é cuidar da doença provocada pelo novo coronavírus. Como fazer isso? Como repetimos no julgamento: de acordo com os dados científicos. O momento é de incerteza até para Ciência porque é um vírus novo. Porém, eles têm uma demarcação, uma rota com sinais. Então, o que nós dissemos é que ninguém está autorizado a adotar políticas genocidas. Ninguém está autorizado a velar pela morte, aliás uma morte sem velório, que nem isso está podendo fazer, ao invés de cuidar da vida. Primeiro salva quem tá afogado, depois vamos ver como que a gente cuida deste que saiu agora da água todo molhado e com uma pneumonia. Não queremos uma pneumonia econômica, mas também não queremos deixar a morte tomar conta.
"A verdade é que o Brasil me tira muito o sono, sabe? Este é o problema do cargo, as alegrias vão ficando menores""Cármen Lucia
MC Na presidência do Supremo, a senhora se dedicou à situação das mulheres grávidas que estavam dando a luz e criando seus filhos dentro de presídios. Como está essa situação hoje?
CL Hoje temos pouco mais de 60 mulheres grávidas presas no Brasil. Com relação a estas, temos um cuidado específico. No Conselho Nacional de Justiça, criei um cadastro para que os juízes saibam onde elas estão. A maioria está em casa, em prisão domiciliar, e, portanto, acho que este é um problema agora não tão grave como há quatro anos, quando tínhamos mais de 500 mulheres grávidas presas e algumas em condições realmente subumanas. O que é que me preocupa hoje? O vírus. Os presídios são superlotados e em vários deles temos as condições mais absurdas de desumanidade. Os diretores dos presídios não têm muito como solucionar isso de uma hora pra outra, como foi a chegada deste novo corona. Então o Conselho Nacional de Justiça também editou uma recomendação para que os juízes responsáveis pelos presídios verifiquem as possibilidades, em cada caso, de adotar outras medidas cautelares que a legislação brasileira prevê. Não é uma situação simples.
MC Imaginava que algum dia fosse ocupar a presidência do Supremo Tribunal Federal?
CL Não. Sempre tive, desde a faculdade, o gosto pelo Direito Constitucional. Naquela época, não conseguia ver nada mais importante do que algo que pudesse nos dar uma lufada de ar quando abríssemos a janela. Primeiro lutamos pelo o direito de votar pelo representante acadêmico - e conseguimos. A gente queria ser livre para escolher desde o representante estudantil até o presidente da República. O Direito Constitucional foi me oferecendo isso: um bote salva vidas que me levou para este mar aberto que é a experiência cívica de ser servidora pública, depois como procuradora. Mas um país como o Brasil, que tem uma Constituição que garante igualdade com tantas desigualdades, preconceito, discriminação, me coloca o desafio de poder dormir. Fico 24 horas ligada no que deveria desempenhar. A verdade é que o Brasil me tira muito o sono, sabe? Este é o problema do cargo, as alegrias vão ficando menores.
MC A senhora não faz nada, ministra? Não toma remédio?
CL Nada. Tenho muito medo de remédio e de qualquer coisa que pode mexer com meu cérebro. Gosto de chás. Outro dia um médico me disse que quando a gente toma café , uma taça de vinho, também se altera. Sim, mas aí tenho prazer [risos].
MC Ainda a presidência do Supremo, fez uma fala célebre em que dizia que os colegas homens não deixavam as ministras falar. Qual é o grau de machismo do Supremo?
CL É o da sociedade. O preconceito continua também no Supremo, nos tribunais. Preciso dizer que meus colegas são muito gentis nos damos muito bem. Mas o machismo é o próprio da sociedade, tão introjetado que não se sabe que está praticando aquilo. Esse tipo de situação invisível é muito comum. Não há agressividade, agressão, ofensa. Há uma sociedade machista, preconceituosa que ao criticar ou elogiar não o faz em razão de desempenho, mas em razão do autor da prática. As circunstâncias de sermos tratadas igual formalmente não significam que não tenha preconceito. E vale o mesmo para advogados, promotores, procuradores. Eu me lembro bem: quando fui procuradora geral do estado de Minas Gerais, um dos assessores do gabinete disse que não se submeteria a uma mulher. E isto foi no ano 2000 tá? É um procurador com quem sempre me dei muito bem. Ele disse: "Cármen, não é nada com você, não é nada pessoal. Agora, não me submeto a mulher. Nem dentro de casa obedeço minha mulher, vou obedecer no trabalho?”. O que mudou desde então? Estamos vendo isso. E sabemos que se dá de maneiras diferentes. Quando uma mulher mais pobre deveria ter mais oportunidades, tem menos. Nós somos uma sociedade na qual o jeito de vestir e de se apresentar numa repartição pública ou numa empresa privada muda a forma de ser atendido.
MC E a cor da pele né, ministra?
CL A cor da pele, o jeito de vestir, a forma de se apresentar. Continua acontecendo isso, e nós estamos no ano 2020. Então isso tudo é muito patente pra mim, muito claro. E é preciso reverter isso com uma rapidez enorme.
MC Em uma entrevista, a senhora disse que foi assediada por um chefe.
CL Comigo aconteceu na juventude, há 40 anos. Era como se fosse normal para os homens dar uma cantada. Como se isso não nos agredisse. Foi ruim, agressivo, desagradável. Era chato inclusive dizer paro o namorado que levou uma cantada. Tinha medo que pensassem que demos espaço pra isso. O grave é que é que continua acontecendo com a maioria de nós.
MC No ano passado, a Marie Claire fez um levantamento das notícias de mulheres assassinadas pelos parceiros chegou num número próximo a 5 mil casos. Os dados do feminicídio em 2019 são 1.314 assassinatos de mulheres.
CL Notificados.
MC Notificados, exato.
CL Porque a gente nem sabe aquilo que continua na penumbra, mas já é um número estarrecedor o dos casos notificados.
MC Sem dúvida. Na opinião da senhora, por que não conseguimos garantir às mulheres brasileiras o direito à vida?
CL Estamos lutando com mais de 500 anos de opressão. As mulheres eram juridicamente tidas como objeto até relativamente pouco tempo. A mulher casada precisava da autorização do marido pra fazer, por exemplo, a venda de um bem que fosse seu por herança. A mulher representava o mal e por isso precisava ser resguardada. Chegamos a ter no Brasil frases repetidas a título de gracejo de que toda mulher gosta de apanhar. Estamos falando da década de 70. E há quem continue a acreditar que é isso mesmo. Nós somos uma sociedade que não conseguiu proteger as nossas crianças, as mulheres e os idosos. Nós somos uma sociedade que ainda dá ênfase ao homem médio branco ocidental. O nosso sistema protetivo garantidor de tudo que é fundamental pra que a pessoa viva com dignidade tem de ser transformado. Esse momento que estamos vivendo é transformador. Dessa sofrida experiência, talvez a gente possa sair com uma lição, que seja essa: somos necessários uns aos outros.
MC Ainda sobre a garantia de direitos, temos visto uma escalada de mortes feitas pelo Estado pelas mãos da polícia. Os casos das comunidades cariocas são emblemáticos, na semana passada um menino de 14 anos foi assassinado dentro de casa em uma operação desse tipo. Como podemos garantir o direito à vida dessas pessoas que hoje estão na mira do estado?
CL Em primeiro lugar, o estado não pode ser causa de sofrimento porque ele existe exatamente para o oposto: garantir que cada um seja capaz de se fazer mais digno, de viver melhor, de cumprir sua vocação, seu sentido de vida. Portanto, quando o estado comparece matando ao invés de garantir a vida, temos aí uma equação absolutamente equivocada. A polícia existe para garantir, não existe para matar. Homicídio é crime. Isso está com todas as letras no Artigo 121 do Código Penal. Agora, um homicídio praticado por um agente do estado é muito mais grave. A sociedade acredita no estado. Ora, se o estado te põe em desassossego não é que ele descumpre, ele cumpre um papel oposto ao que é a sua finalidade. Este modelo está errado. Agora, este modelo no Brasil é inconstitucional, ilegal, injusto, portanto essas mortes precisam ser apuradas e o sistema depurado.
MC Muitas matérias sobre a senhora citam o seu peso. Nunca li uma matéria que fale sobre o peso de um homem magro. Isso te incomoda?
CL É isso mesmo, para mulher a parte física conta e é mostrada como um dado que influiria na personalidade e no jeito, né?
MC E pra além disso, algumas insinuam que a senhora tem distúrbios alimentares, ou seja, não só fiscalizam o seu peso como a sua relação com...
CL Alimentação.
MC Como encara essa informações?
CL Não me toca muito não. Acho isso pequeno diante de tantos compromissos, desafios, responsabilidades.
MC A senhora se considera feminista?
CL Não sei muito bem qual é a definição hoje de feminismo. Sou incomodada com todas as injustiças, sejam elas praticada contra a mulher, o índio, o pobre, o negro, o gay, como a gente cansa de ver. Todos esses preconceitos acabam se unindo para demonstrar um sofrimento desnecessário que a sociedade pode superar ou pelo menos combater. O depoimento que posso dar de preconceito e de injustiça passa pela minha condição de mulher. Em determinados cargos você pode dar alguma contribuição para superar isto. Por isso batalhei muito pra criar o que institucionalizei no Conselho Nacional de Justiça como a Campanha da Justiça pela paz em casa, que em três semanas no ano, (março, agosto e novembro) o Judiciário brasileiro foca e prioriza o julgamento dos casos de feminicídio e violência doméstica. Mas isso não é um ato de feminismo, é um compromisso com os direitos humanos.
MC O ministro relator da Lava Jato, Teori Zavascki, morreu em um acidente de avião quando a senhora estava na presidência do Supremo. Foi o momento mais difícil da sua carreira?
CL Da minha carreira nem sei avaliar. Foi difícil primeiro porque o ministro Teori era um grande amigo, frequentava a minha casa nos fins de semana quando não ia à Porto Alegre. Era um ser humano aprazível, divertido, profundo. Foi, portanto, uma perda pessoal. Uma morte é sempre inesperada, mas num caso como aquele muito mais. Se há momento fácil na história do Brasil, aquele não era um. Ele sendo relator das ações da Lava Jato, misturaram as emoções pessoais com a responsabilidade do cargo, com a preocupação inclusive com os familiares, os filhos dele, que são pessoas preciosas.
MC Qual é o seu maior medo?
CL Não cultivo medos não. Acho que tenho uma preocupação permanente com o dia seguinte do Brasil, principalmente em relação aos mais pobres. Na primeira década desse século, tivemos a certeza de que tínhamos conseguido chegar a uma estabilidade política, financeira, e caminhávamos para uma igualação. Hoje, o que me tira o sono no Brasil é o Brasil. É a responsabilidade que preciso ter. O Brasil para mim é igual um homem por quem a gente é apaixonado. Sabe que tem problemas, mas não dá conta de deixar de gostar.
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