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quinta-feira, 7 de maio de 2020

O indesejado ‘baby boom’ provocado pela pandemia

Um relatório do Fundo Populacional da ONU alerta que algumas medidas para combater a covid-19, como o confinamento e o fechamento de clínicas por falta de material e pessoal, deixarão 47 milhões de mulheres sem acesso a métodos anticoncepcionais

El País

ALEJANDRA AGUDO

Paracuellos De Jarama (Espanha) - 29 ABR 2020

Elisabeth X., de 25 anos, carrega sua filha de um ano e cinco meses enquanto espera sua vez para que uma enfermeira em visita à sua comunidade lhe administre anticoncepcionais. Escolhe os comprimidos. Joana Mauricio, enfermeira do hospital de Moamba, lhe dá três tabletes, um para cada mês até que a clínica ambulante que instalaram à sombra de uma grande árvore volte a Mahulane. Nesta dispersa aldeia de Moçambique, onde vivem cerca de mil pessoas, o centro de saúde mais próximo fica a mais de 20 quilômetros. Por isso, e dada a dificuldade para que uma população rural pobre se desloque até o consultório, trimestralmente um grupo de profissionais vai ao seu encontro para administrar vacinas e medicamentos contra a malária, Aids e outras doenças e prestar serviços de saúde sexual e reprodutiva, como a entrega de anticoncepcionais. “É muito importante que venhamos, porque para elas é muito difícil ir aos hospitais. É bom que usem estes métodos; explicamos a elas a importância de que os utilizem para reduzir os casos de gravidez indesejada e partos em casa”, conta a especialista.

A próxima visita deveria acontecer no começo de junho, mas é possível que Elisabeth X. e as demais mulheres da região que não desejam ficar grávidas não recebam os métodos para impedi-lo. O ministério de Saúde não descarta interromper este tipo de atividade em áreas rurais de Moçambique devido ao coronavírus (pelo qual foram notificados até agora 76 infectados no país, sem nenhuma morte). “Depende da evolução do número de casos”, explicam fontes do gabinete. Pode acontecer que, mesmo que a clínica ambulante esteja lá, a população não apareça por medo de se contagiar, ou que, embora compareçam à consulta trimestral, não haja distribuição de anticoncepcionais. Estas são as causas pelas quais, segundo as estimativas do Fundo Populacional da ONU (UNFPA, na sigla em inglês) publicadas nesta terça-feira, 47 milhões de mulheres deixarão de ter acesso a métodos de planejamento familiar e haverá sete milhões de gestações indesejadas nos próximos seis meses em 114 países de renda baixa e média.
A pesquisa do UNFPA, feita com contribuições da Advir Health, da Universidade Johns Hopkins (EUA) e da Universidade de Victoria (Austrália), revela que, a cada trimestre que dure a interrupção dos serviços de saúde sexual e reprodutiva, haverá dois milhões adicionais de mulheres que deixarão de usar anticoncepcionais modernos. Isso representará um grande passo atrás nos progressos que vinham propiciando a ampliação do seu uso, que quase duplicou em duas décadas, passando de 470 milhões que os utilizavam em 1990 para 840 milhões em 2018.

Joana Mauricio, enfermeira do hospital de Moamba (Moçambique), participa da equipe que a cada três meses viaja a comunidades remotas para informar sobre saúde sexual e reprodutiva e distribuir anticoncepcionais às mulheres que solicitam. No começo de março, ela esteve na aldeia de Mahulane.
Joana Mauricio, enfermeira do hospital de Moamba (Moçambique), participa da equipe que a cada três meses viaja a comunidades remotas para informar sobre saúde sexual e reprodutiva e distribuir anticoncepcionais às mulheres que solicitam. No começo de março, ela esteve na aldeia de Mahulane.A. AGUDO

“A pandemia está tendo um impacto catastrófico para as mulheres e as meninas em nível mundial. E temos que enfrentá-lo. Agora”, sentencia Ramiz Alakbarov, diretor-executivo-adjunto do UNFPA, em uma conversa via internet. “Os serviços de atenção à saúde materna e o acesso a anticoncepcionais não são opcionais. São essenciais e devem ser mantidos. As mulheres continuam ficando grávidas e também dão à luz durante a crise”, enfatiza. “O assessoramento e informação sobre planejamento familiar, assim como a anticoncepção de emergência, consideram-se salvadores de vidas; devem proporcionar-se, estar disponíveis e ser acessíveis”, sublinha.
Neste sentido, o organismo da ONU tem evidência de que esta classe de problemas já está acontecendo, sustenta Alakbarov. “Em primeiro lugar, as cadeias de fornecimento se veem afetadas por dinâmicas que incluem o fechamento de fronteiras, problemas de transporte, dificuldades de fabricação, e outros obstáculos para a distribuição”. Mas matiza: “Obviamente, a situação varia de um país para outro devido ao nível de sua infraestrutura de desenvolvimento e a situação epidemiológica atual”. Os autores do relatório também alertaram que há mulheres que evitam ir ao centro de saúde por medo de se exporem à infecção. “E existe um problema de disponibilidade de equipamentos de proteção pessoal para aquelas clínicas, como as de planejamento familiar, que podem não ser consideradas essenciais e, portanto, não tenham sido devidamente equipadas”, prossegue.
Um estudo do Instituto Guttmacher publicado há 10 dias na revista International Perspectives on Sexual and Reproductive Health reforça a advertência da ONU. Calcula que “uma diminuição proporcional de 10% no uso de anticoncepcionais reversíveis em curto e longo prazo teria como resultado que 49 milhões de mulheres veriam insatisfeita a sua necessidade de anticoncepção moderna em países de renda baixa e média”. Elas se somariam a 232 milhões que não estavam, já antes da pandemia, usando métodos de planejamento familiar apesar de querer evitar uma gravidez.
Ocorreriam, além disso, 15 milhões adicionais de gestações indesejadas, alertam os pesquisadores da organização norte-americana. O que por sua vez “levaria a mais abortos inseguros e outros resultados negativos” como uma maior mortalidade materna. Concretamente, segundo suas projeções, uma diminuição de 10% na provisão de atendimento médico relacionado à gravidez e ao recém-nascido “teria consequências desastrosas”: 1,7 milhão de mães e 2,6 milhões de bebês experimentariam complicações graves, e ocorreriam 28.000 mortes maternas e 168.000 falecimentos de recém-nascidos adicionais aos que já acontecem.
Haverá sete milhões de gestações indesejadas nos próximos seis meses em 114 países de renda baixa e média devido à falta de acesso a métodos e serviços de planejamento familiar
“As mulheres grávidas com sintomas de covid-19 devem ter um acesso prioritário ao teste, e as unidades de saúde pré-natal, neonatal e materna devem estar segregadas dos casos identificados de coronavírus”, recomenda o diretor-adjunto do UNFPA. “As emergências de saúde pública anteriores demonstraram que o impacto de uma epidemia na saúde sexual e reprodutiva frequentemente não é reconhecido, porque os efeitos não são em muitos casos o resultado direto da infecção, mas sim se produzem como consequência indireta das interrupções no atendimento e do redirecionamento de recursos”, analisa Elizabeth Sully, pesquisadora científica principal do Instituto Guttmacher.
Para que isso não aconteça, “há passos claros e concretos que os formuladores de políticas podem e devem adotar para mitigar o dano e promover a saúde. Não é tarde demais, mas o momento de agir é agora. O tempo está correndo”, aponta Sully. Primeiro, promover a atenção à saúde sexual e reprodutiva, incluídos o aborto seguro, a anticoncepção e o atendimento materno e neonatal, pois são essenciais. Outros são garantir as cadeias de suprimento, procurar formas inovadoras de oferecer atendimento, como a telemedicina, e não abandonar as populações mais remotas e marginalizadas, como a de Mahulane.

Os outros efeitos da covid-19

“Não havia igualdade de gênero antes que esta epidemia começasse, então a desigualdade que gera se sobrepõe à que já existia”, analisa Alakbarov. Nenhum país estava em posição de garantir às mulheres que seus direitos seriam 100% preservados, e os recursos para promovê-los nunca chegavam a ser os minimamente necessários, esclarece o diretor-executivo-adjunto do UNFPA. A pandemia é chover nesse molhado. E a saúde sexual e reprodutiva não é o único direito ameaçado pela covid-19 e pelas medidas adotadas para contê-la.
No caso da violência de gênero, a decisão de confinar à população obriga milhões de mulheres a conviverem com seus agressores. “Espera-se que a pandemia de covid-19 aumente os níveis de violência”. Já há indícios de que isso está acontecendo, diz o relatório do UNFPA, pois aumentaram os chamados às linhas diretas de prevenção da violência. Notícias sobre violência de gênero e assassinatos machistas nos meios de comunicação também corroboram essa impressão. “A sociedade civil e os Governos não deveriam abandonar as vítimas. Devem ter acesso a ajuda psicológica e, obviamente, a todas as outras formas de apoio”, pede o executivo do UNFPA.
As estatísticas mostram que os abusos aumentam 20% durante os períodos de confinamento. De tal modo que haveria 15 milhões adicionais de casos de violência de gênero em 2020 para uma duração média de três meses, que seriam 31 milhões para um confinamento de seis meses, 45 milhões para um bloqueio de nove, e 61 milhões se o período for de um ano. São dados do UNFPA. E não é o único drama que milhões de mulheres enfrentam. Devido à interrupção dos programas para prevenir a mutilação genital feminina, enquanto a humanidade se centra em combater a pandemia dois milhões de meninas serão vítimas desta prática na próxima década. “E poderia ser evitado”, escrevem os autores do documento. Como também se podem prevenir os 13 milhões de casamentos infantis que a ONU calcula que ocorreram entre 2020 e 2030 devido apenas à redução de esforços neste capítulo.
Por isso, porque é uma questão de vida ou morte, porque o sofrimento pode ser evitado, Alakbarov pede: “Priorizemos as mulheres e as meninas no momento da pandemia, não nos esqueçamos das suas necessidades”.

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