Revista Consultor Jurídico, 23 de maio de 2020
Estamos vivendo uma pandemia. Para alguns, uma guerra contra um inimigo imperceptível, silencioso e poderoso, que já tirou a vida, até agora, de muitas e muitas pessoas em todo o planeta. Para a presidente da Fiocruz, primeira mulher no cargo em 120 anos de existência da instituição, uma crise sanitária e humanitária e, no Brasil, a situação ainda é agravada por um ambiente de forte desigualdade social [1].
A Covid-19 não pediu licença para modificar a vida das pessoas no mundo inteiro, assim como fez com que as instituições se reinventassem, inclusive as mais tradicionais, que desenvolvem atividades do sistema de Justiça, possibilitando a não interrupção dos serviços públicos do Poder Judiciário, por exemplo, a partir dos mecanismos proporcionados pela tecnologia da informação, com o incremento das atividades profissionais não presenciais.
Nesse cenário, e atenta à nova realidade, no dia 12 de maio a Folha de São Paulo publicou a matéria intitulada "Em casa, procuradores, ministros e advogados conciliam processos com filhos e lives" [2]. Importantes atores foram ouvidos e compartilharam a rotina de trabalho desenhada para ser realizada em casa. O que chama a atenção? O lugar de fala é completamente masculino. Os personagens principais da narrativa são homens e as mulheres são referenciadas como coadjuvantes, mesmo quando dividem o espaço físico de trabalho e desempenham profissão também integrante do sistema de Justiça.
Algo está errado. Apesar de esforços de séculos, a invisibilidade das mulheres ainda é naturalizada por um grande e importante veículo de comunicação, e o papel que lhes é oferecido não é de protagonismo. É certo que não é apenas na mídia que as representações e estereótipos persistem. O fenômeno da invisibilidade naturalizada faz com que as pessoas "não percebam" a reprodução do homem como centro da história, do poder, como medida de todas as coisas, descrito pelo androcentrismo, criando a necessidade de se dizer, e repetir "que o rei está nu". Ainda está nu, mesmo nos dias de hoje, no século XXI, quando se observa a reprodução de estereótipos que reforçam a internalização do papel do homem no exercício do poder e tomada de decisão, quando a narrativa é vista do ponto de vista masculino.
Em artigo denominado "Mídia e estereótipos: as representações da diversidade social no discurso jornalístico" [3], Denise Mantovani reflete sobre o "discurso hegemônico presente no conteúdo noticioso dos meios de comunicação tradicionais, que tende a reforçar estereótipos de gênero, raça e posições de classe, colaborando, assim para a sustentação de hierarquias e posições socialmente dominantes". Para Mantovani, é necessário refletir sobre "as dinâmicas da construção discursiva numa perspectiva interseccional e, assim, verificar como determinadas visões de mundo atuam e dão forma para o texto jornalístico".
Atento ao viés de gênero e comunicação, a Área Prática de Gênero do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento da América Latina e Caribe elaborou o "Manual de Género para Periodistas" [4], indicando orientações, exemplos específicos, mas, principalmente, convidando os profissionais do jornalismo "ao desafio de olhar com diferentes lentes a realidade que nos cerca", mostrando formas de comunicação que contribuam à igualdade, construindo ativamente, além de informar.
No sistema de Justiça, muitas mulheres estão trabalhando em casa. São advogadas, magistradas, integrantes do Ministério Público, defensoras públicas, advogadas da União, procuradoras, servidoras públicas e a invisibilidade naturalizada em relação ao trabalho feminino merece ser rejeitada.
Adaptar-se ao trabalho em home office, em um momento de pandemia, exige de todos, mas, para muitas mulheres, exige-se o malabarismo próprio de quem ainda é responsável, em regra, pela amplidão das tarefas de cuidado [5]. Além disso, exige demais daquelas que enfrentam a violência doméstica em suas variadas formas, fenômeno multiplicado em tempos de pandemia, pela convivência diária com o próprio algoz, no lugar em que se vive.
No resumo técnico "Covid 19: um olhar para o gênero. Proteção da saúde e dos direitos sexuais reprodutivos e promoção da igualdade de gênero" [6], elaborado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), publicado em março de 2020, duas de suas mensagens-chave evidenciam que: 1) "Os surtos de doenças afetam mulheres e homens de maneira diferente, e as pandemias tornam piores as desigualdades existentes para mulheres e meninas e a discriminação de outros grupos em situação de vulnerabilidade, como pessoas com deficiência e pessoas em extrema pobreza. Isso precisa ser considerado, dados os diferentes impactos em torno da detecção e acesso ao tratamento para mulheres e homens"; 2) "Em tempos de crise, como um surto, mulheres e meninas podem estar em maior risco de violência por parceiro íntimo e outras formas de violência doméstica devido ao aumento das tensões na família. Como os sistemas que protegem mulheres e meninas, incluindo estruturas comunitárias, podem enfraquecer ou quebrar, medidas específicas devem ser implementadas para proteger mulheres e meninas do risco de violência por parceiro íntimo com a dinâmica de risco imposta pela Covid-19".
A crise humanitária e de saúde pública trazida pela Covid-19 precisa de muita solidariedade em seu enfrentamento. Muitos perderam a vida, cidades no mundo ficaram desertas, pessoas perderam seus postos de trabalho, empresas se redescobriram e se redesenharam para continuar funcionando e outras, infelizmente, não sobreviveram ou não se manterão ativas quando tudo melhorar, quando tudo residir no passado.
E, mesmo assim, em um cenário tão difícil e triste, ainda é necessário que se ilumine, com a luz de uma lua inspiradamente cheia, a condição das mulheres, principalmente quando inseridas em uma situação de crise como a da pandemia da Covid-19. Foi o que fez o coletivo UMA — União de Mulheres Advogadas e a Rede Feminista de Juristas — deFEMde, publicando manifesto de descontentamento em relação à matéria publicada pela Folha de São Paulo, devidamente publicizado pelo veículo jornalístico [7].
Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, com a competência de dirigir a instituição em meio a uma pandemia extremamente grave, e que leva em seu nome a lembrança do nome de uma brasileira, potiguar, reconhecida internacionalmente, que lutou pelo avanço das mulheres, Nísia Floresta, nos alerta que as "mulheres são maioria entre trabalhadoras e pesquisadoras, mas minoria nos cargos diretivos", e assume a responsabilidade quando sentencia "que a minha posição na presidência não sirva só como exemplo, mas como motor de reduzir essa iniquidade".
A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmou que se não forem tomadas ações firmes, o coronavírus pode se tornar uma doença endêmica e não desaparecer, sendo muitos os desafios para controlar a doença, mesmo com uma vacina. Temos muito trabalho pela frente e, certamente, a humanidade vencerá a Covid-19, com um legado de aprendizado importante. Mas não é somente esse vírus que precisamos combater. Precisamos, todas e todos, ser agentes de transformação para eliminar de vez o vírus que provoca a invisibilidade das mulheres. Há muito trabalho a ser feito.
[1] Disponível em <http://cienciahoje.org.br/artigo/a-fiocruz-diante-da-covid-19/>. Acesso em 13 de maio de 2020.
[2] Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/em-casa-procuradores-ministros-e-advogados-conciliam-processos-com-filhos-e-lives.shtml>. Acesso em 13 de maio de 2020.
[3] MANTOVANI, Denise. Mídia e estereótipos: as representações da diversidade social no discurso jornalístico. In Feminismos em rede. Organizado por Danusa Marques, Daniela Rezende, Maíra Kubik Mano, Rayza Sarmento, Viviane Gonçalves Freitas. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2019.
[4] Disponível em: <https://www.eird.org/orange-day/docs/genero/manual-de-genero-para-periodistas-pnud.pdf>. Acesso em: 13 de maio de 2020.
[5] Disponível em <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/wcms_674751.pdf>. Acesso em: 13 de maio de 2020.
[6] Disponível em: < https://www.unfpa.org/sites/default/files/resource-pdf/Portoguese-covid19_olhar_genero.pdf>. Acesso em: 13 de maio de 2020.
[7] Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/entidade-de-advogadas-e-rede-feminista-criticam-ausencia-de-mulheres-em-reportagem-da-folha.shtml>. Acesso em: 13 de maio de 2020.
Daniela Lustoza é juíza titular da 11ª Vara do Trabalho de Natal, vice-presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 21ª Região (Amatra 21), integrante do Conselho Fiscal da Anamatra, membro da Comissão Anamatra Mulheres e doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza (Unifor).
Nenhum comentário:
Postar um comentário