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domingo, 24 de maio de 2020

Sonia Nassery Cole: uma mulher, uma missão



Sonia Nassery Cole (Foto: Getty Images)
Sonia Nassery Cole (Foto: Getty Images)
  • MONICA SERINO
  • COLABORAÇÃO PARA A MARIE CLAIRE, DE NOVA YORK

19 MAI 2020

Sonia Nassery era uma adolescente refugiada do Afeganistão quando chegou à Casa Branca para uma reunião com o então presidente Ronald Reagan. Ela escrevera para ele pedindo ajuda aos afegãos que sofriam com a ocupação soviética. O presidente, tocado, convidou a menina para visitar Washington D.C. Enquanto esperava, o chefe de gabinete James Baker disse-lhe para ser breve: "Você tem quatro minutos e meio", enfatizou.

No Salão Oval, Reagan olhou para a garota pequena e de cabelos escuros e perguntou se sua mãe havia escrito a carta. "Não", ela disse. "Eu escrevi." Impressionado, o presidente perguntou se ela gostaria de tomar uma xícara de chá. "Não tenho tempo", respondeu. "Sério?", indagou o presidente. "Aonde você vai depois da nossa reunião?" E ela respondeu: "Oh, não, senhor presidente. É porque ele me disse que eu tinha apenas quatro minutos e meio para falar." 
Reagan pediu chá e eles conversaram. Quando Sonia saiu da Casa Branca, meia hora depois, ela tinha uma missão que se tornou o trabalho de sua vida. Ao longo do caminho, fez três filmes, escreveu um livro, casou-se e criou um filho, e estabeleceu uma fundação que arrecada milhões de dólares para o alívio humanitário do seu país e de seu povo.
Sonia Nassery Cole, filha de um diplomata afegão e mãe educadora, cresceu em Cabul na década de 1960, um período raro em que a vida na cidade não era tão diferente de qualquer capital mundial. Seu pai a levava ao cinema, ela seguia as últimas novidades da moda europeia e se destacava na escola.
Em dezembro de 1979, sua infância terminou. As tropas soviéticas invadiram o Afeganistão, transformando seu país em uma região nevrálgica da Guerra Fria, um lugar de miséria e morte para seus cidadãos, um campo de treinamento para futuros terroristas.
Sonia fugiu do país atravessando o deserto até a fronteira do Paquistão. De lá, ela foi para a Alemanha e finalmente chegou à América, onde pediu asilo político. Estava só, sua família ficara para trás. Voltaram a se reencontrar anos depois e hoje moram todos nos Estados Unidos.
No total, a jornada durou uma semana, desde a saída de seu país até a chegada aos EUA. Os acontecimentos durante a fuga foram profundamente traumáticos. Depois de mais de 35 anos, Sonia ainda não consegue falar sobre isso, nem mesmo com a família e amigos íntimos. Relembrar esse momento de sua vida é doloroso demais.


Sonia, aos 10 anos, com a família na embaixada do Afeganistão em Roma, onde seu pai serviu como embaixador por alguns anos (Foto: Arquivo pessoal)
Sonia, aos 10 anos, com a família na embaixada do Afeganistão em Roma, onde seu pai serviu como embaixador por alguns anos (Foto: Arquivo pessoal)

Sonia está pensando em escrever um livro de memórias. Como primeiro passo, está contando a história para o filho. "Eu sei o que aconteceu comigo e sei como isso me marcou. Mas sei também que isso me transformou, me tornou uma mulher forte, uma guerreira."
Em Nova York, Sonia conseguiu um emprego na Organização das Nações Unidas, onde fazia um pouco de tudo - trazia café, arquivava papeis e até fazia alguma tradução.
Um dia, em casa, em seu minúsculo apartamento de um cômodo, ela estava lutando para conseguir melhorar a imagem na sua pequena TV em preto e branco que só funcionava quando ela segurava as antenas. Uma reportagem sobre seu país mostrava uma mulher andando descalça na neve, segurando uma criança em cada braço, com uma terceira segurando a saia enquanto tentavam chegar ao Paquistão para escapar da guerra. De pé junto ao aparelho, segurando as antenas, ela chorou.
Quando o programa terminou, ela se sentou e, de um fôlego só, escreveu uma carta de nove páginas ao presidente Reagan.
"Prezado senhor presidente, meu nome é Sonia Nassery, e acabei de ver um documentário na TV sobre a guerra no Afeganistão, meu país. O que está acontecendo por lá é genocídio. O senhor é o presidente dos Estados Unidos e precisa fazer algo a respeito. Poderia me ligar o mais rápido possível? Precisamos conversar, precisamos consertar essa situação."
"Na carta, dei um número de telefone, dizendo que era do meu escritório. Na verdade, eu não tinha escritório, nem mesa, ou mesmo um telefone." Ao chegar no trabalho, Sonia explicou à recepcionista que estava esperando uma ligação do presidente Reagan e pediu a ela que a localizasse assim que recebesse a chamada.
"Ela olhou para mim - era uma linda jamaicana -, deu um tapinha nas minhas costas, sorriu e falou: “Querida, você está sentindo falta da sua família, não é? Não se preocupe, tudo vai ficar bem."  Eu disse: "Não, é sério, o presidente vai me ligar."
Alguns dias depois, Sonia estava agachada sob um móvel, arquivando papeis, quando ouviu seu nome pelo interfone, "Sonia, a Casa Branca está chamando." 
"Bati minha cabeça com força na prateleira e corri para o telefone ainda um pouco tonta'', conta Sonia. "A voz no telefone dizia ser o chefe de gabinete: 'O presidente Reagan leu sua carta e ficou muito emocionado', disse. 'Você poderia encontrá-lo na próxima terça-feira, às 11 horas, no Salão Oval?', perguntou."
Em sua reunião, Reagan disse a Sonia que estava preocupado com as notícias do Afeganistão. Os soviéticos estavam deixando bombas disfarçadas de brinquedos onde as crianças podiam encontrá-las. Muitas foram mutiladas ou mortas. Seus pais eram obrigados a levar as crianças feridas para o Paquistão ou para o Irã. Nos pequenos vilarejos, tudo havia sido destruído pela guerra, de escolas a postos de saúde. Esse era o objetivo, afastar os homens da luta. Reagan estava convencido de que os combatentes afegãos poderiam vencer os invasores se tivessem ajuda dos Estados Unidos.
Foi quando o presidente pediu um favor à adolescente. Ele queria que ela fosse para o Afeganistão acompanhando um comitê de ajuda humanitária para trazer crianças feridas pelas minas soviéticas. Com a ajuda da Casa Branca, ela viajou para a fronteira do Paquistão. As crianças foram trazidas e levadas para o Capitólio, onde testemunharam perante o Senado. Reagan obteve a aprovação que buscava para enviar armas aos combatentes afegãos. A guerra duraria ainda alguns anos e os soviéticos seriam expulsos em 1989. A derrota foi um dos fatores que contribuiram para o enfraquecimento e subsequente dissolução da União Soviética.
Alguns anos depois, aos 19 anos, agora morando em San Francisco, Sonia conheceu Christopher H. Cole. Foi amor à primeira vista. Eles se encontraram no elevador do Transamerica Building. "Eu era muito tímida e nunca tinha estado com um garoto antes, namorando ou qualquer coisa assim. Eu praticamente saí correndo do elevador e entrei em uma cabine telefônica no saguão do prédio para me esconder dele. Fiquei lá por alguns minutos." Quando finalmente saiu, ele havia voltado e estava esperando por ela. Dois cafés da manhã e um almoço depois, eles se casaram.
Um ano depois, nasceu seu primeiro filho, Christopher, como o pai. Sonia e seu marido Christopher H. Cole ficaram juntos por 22 anos antes de se divorciarem.
Em 1987, já casada há alguns anos, Sonia organizou seu primeiro evento beneficiente, chamado "A Night for Afghanistan". O contato com Ronald Reagan facilitou sua entrada em círculos conservadores. Para o evento, ela contou com o apoio do vice-presidente George H. W. Bush, Henry Kissinger, John McCain, Nancy Reagan e estrelas de Hollywood. Foi um sucesso, levantando milhões de dólares na primeira de muitas angariações de fundos que ela organizaria.


Sonia com o presidente Reagan em um evento filantrópico para levantar fundos para o Afeganistão (Foto: Arquivo pessoal)
Sonia com o presidente Reagan em um evento filantrópico para levantar fundos para o Afeganistão (Foto: Arquivo pessoal)

Em 2002, pouco depois do ataque terrorista de 11 de setembro, Sonia criou a Afghanistan World Foundation, uma organização não-governamental que se concentra em promover educação, saúde, desenvolvimento econômico e, especialmente, em melhorar as condições de vida de mulheres e crianças afegãs.
Após décadas de guerra e ocupação, o Afeganistão estava devastado: 70% das escolas foram destruídas, assim como hospitais, museus, estradas e pontes. As mulheres foram impedidas de ir à escola e de trabalhar. Hoje, o Afeganistão é considerado um dos piores países do mundo para as mulheres: 87% são analfabetas, 90% sofrem violência doméstica, mais de 70% delas enfrentam um casamento forçado, muitas vezes sendo vendidas pelo próprio pai. 
"Ninguém está ouvindo o grito das mulheres afegãs", lamenta Sonia. "Às vezes penso em como o mundo funciona. Estamos vivendo uma crise mundial com a pandemia de coronavírus e estamos todos vivendo com medo, nos sentindo ameaçados. Talvez tenha uma lição aí."
Durante uma viagem a seu país, em 2004, Sonia se deparou com um garoto vendendo jornais e calendários na rua. Ele tinha pouco mais de 9 anos e sustentava uma família de sete pessoas. O pai era inválido. Algo a atraiu especialmente naquele menino, talvez seu olhar. Ela começou a seguí-lo e filmou um dia na vida desse garoto, um curta-metragem. Foi o que a levou de volta ao sonho de uma vida inteira, interrompido pela urgência do ativismo social: ser cineasta. Naquele momento, percebeu que o cinema poderia ser um mais um instrumento para trazer visibilidade para a situação do país. Estudei roteiro, direção e produção em Los Angeles por mais de 11 anos. De alguma maneira, já estava me preparando para ser o que sou hoje", conta. Seu curta-metragem The Bread Winner foi lançado em 2007. Seu filho, Chris, escritor, produtor e diretor de cinema, co-produziu esse curta e os dois longas-metragem de sua mãe.

Em seguida, trabalhou em seu primeiro longa-metragem, The Black Tulip, lançado em 2010. Foi a primeira vez em 30 anos que uma produção ambientada no Afeganistão foi filmada no país.

O Caçador de Pipas, por exemplo, uma grande produção americana baseada no livro do mesmo nome, foi filmado inteiramente na China. Filmar em uma zona de guerra, como no Afeganistão, tornaria o filme inviável.

Não para Sonia. Com base em fatos reais, The Black Tulip conta a história de uma família de Cabul que decide abrir um restaurante chamado The Poet's Corner, onde artistas e escritores poderiam se expressar usando o microfone permanentemente aberto. O filme se passa em um período depois dos ataques de 11 de setembro, quando os Estados Unidos e seus aliados expulsaram o Talibã do poder. Cabul vê, então, um aparente momento de liberdade com o fim do regime opressivo que proibia a música, TV e qualquer literatura que não fosse o Alcorão. Mas a família Mansouri logo percebe que a abertura cultural não era real. O Talibã ainda estava por lá, aplicando suas leis com violência e terror.
Sonia foi roteirista, produtora e diretora do filme. Além disso, desempenhou o papel principal de Farishta Mansouri, matriarca da família que administra o café. Porém, esse não era o plano original. Alguns meses antes, quando estava em Cabul trabalhando na pré-produção e no elenco do filme, ela conheceu uma atriz afegã no saguão do hotel onde estavam hospedados.
A jovem mulher chamou a atenção de Sonia: estava vestida com uma terno preto, um lenço vermelho que cobria parcialmente os cabelos e as unhas dos pés pintadas com esmalte vermelho. Uma ousadia na cultura muçulmana. Seu nome era Zarifa Jahon, ela era atriz e trabalhava no Paquistão. Sonia a convidou para estrelar seu filme.
Quando Sonia voltou a Cabul para dar início às filmagens, não conseguiu entrar em contato com a atriz. Isso era incomum, pois elas estavam trocando mensagens frequentemente nesse intervalo. Eventualmente, depois de muitas tentativas, alguém atendeu o telefone e deu a notícia devastadora: Zarifa havia sido sequestrada e punida quando o conteúdo anti-Talibã do filme veio ao conhecimento do grupo. Como castigo, ela teve seus pés amputados. Aterrorizada e mutilada, estava escondida com familiares em algum lugar remoto do país.
Aquilo serviu como um aviso para Sonia e qualquer outra pessoa que trabalhasse no filme, um aviso sobre o que poderia acontecer se continuassem com a produção. Esse foi apenas o começo dos obstáculos e perigos que ela enfrentou durante a filmagem. Ameaças de morte, extorsão, bombas... Parte da equipe, aterrorizada, abandonou as filmagens e voltou para os Estados Unidos. Não podiam confiar nem mesmo na equipe de segurança local, afinal, um simpatizante do Talibã podia estar entre eles. O sentimento de medo era constante.
Nada a demoveu de seu intento. O filme estreou em Cabul em 23 de setembro de 2010, no Cinema Ariana. Foi o primeiro filme antitalibã a ser exibido naquele teatro. Em seu livro Vou sobreviver amanhã?, onde conta os detalhes da filmagem, Sonia fala da noite de estreia:
"Os telefonemas ameaçadores não paravam de chegar me dizendo que eu levaria um tiro na cabeça se ousasse aparecer na apresentação do filme. Abrir as portas do teatro que o Talibã fechara anos antes, durante seu reinado de terror, foi um triunfo pessoal para mim como mulher e uma vitória contra o Talibã."
Na noite de estreia, ela subiu ao palco e fez um discurso emocionado. O filme The Black Tulip foi pré-indicado para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2011 e ganhou o prêmio de Melhor Filme no Boston Film Festival, no Salento Film Festival e no Beverly Hills Festival.
"Quando fui ao Afeganistão para filmar The Black Tulip, percebi que não era mais a mesma garota que havia deixado o país anos antes. A certa altura, olhei diretamente para a imagem que via no espelho e essas palavras saíram da minha boca: "Prazer em conhecê-la."
O segundo longa-metragem de Sonia, I am you, foi filmado quase inteiramente na Turquia. O filme narra a história de Massoud, um jovem que decide fugir do Afeganistão depois que seu pai é assassinado por extremistas. Seu destino, após uma jornada difícil e assustadora pelo Irã, Turquia e Grécia, é a Alemanha.


Filmando
Filmando "I am you" (Foto: Arquivo pessoal)

O longa conta uma história que dominou as notícias nos últimos anos, de todas as famílias que fogem da Síria, da África e do Afeganistão, tentando desesperadamente chegar à Europa. Mas o faz da perspectiva dos próprios refugiados - à mercê de contrabandistas, burocratas sobrecarregados e parcas ajudas humanitárias, tendo frágeis balsas como única embarcação para a travessia traiçoeira das águas - lidando com a dor, a privação e a morte a cada passo.
Sonia está procurando um distribuidor para o filme, que teve suas primeiras exibições no ano passado. "É difícil porque não tenho uma estrela de cinema'', diz. "As estrelas do meu filme são os refugiados e ninguém se importa com eles."
Mais de 70 milhões de pessoas em todo o mundo são deslocadas de suas casas - o maior número já registrado na história - fugindo de guerras, perseguições e fome. Ao mesmo tempo, muitos países, incluindo os Estados Unidos, respondem a essa crise com políticas que fecham as portas para refugiados e requerentes de asilo.
Sonia Nassery Cole ama seu país adotivo, a América. Mas, perguntada se voltaria a morar em Cabul, caso as coisas mudem por lá, responde sem hesitar. "Sim, imediatamente. Nenhum lugar pode substituir sua terra natal. As pessoas falam seu idioma, você come a comida que ama, vive entre gente com a mesma cultura que a sua."
"Os refugiados deixam seu país porque não têm escolha", diz ela. "É diferente de um imigrante que escolhe tentar a sorte em outro lugar. "Quero, por meio do meu trabalho, fazer com que o mundo abra seu coração para as pessoas mais vulneráveis e que precisam de amor e apoio. Essa tem sido minha missão de sua vida desde os 17 anos."
"O presidente Reagan me disse uma coisa quando estava naquela primeira reunião no Salão Oval que nunca esquecerei: 'É preciso apenas uma pessoa para mudar o mundo. Você quer ser essa pessoa?' A resposta foi sim, é claro."

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