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domingo, 7 de junho de 2020

A humanidade não consegue respirar quando vidas negras não importam

Revista Consultor Jurídico, 7 de junho de 2020

Não será apenas o coronavírus com a sua síndrome de insuficiência respiratória. A humanidade não consegue respirar, na asfixia mecânica de George Floyd, sufocada por racismos históricos e por ódios doentios. O mundo enfermo assistiu a barbárie e o martírio.

Vidas negras importam ("black lives matter"); não são vidas menores ou vidas inúteis, malgrado os infortúnios da indiferença social, desprezos, preconceitos ou falta de oportunidades. São famílias que precisam existir dignamente sob a confiança de uma sociedade mais justa. A melhor explicação sempre esteve na lapidar frase do poeta russo Evgeny Evtuchenko (1932-2017): "A humanidade é dividida entre homens bons e homens maus" [1]. Somente essa divisão deve separar o mundo e a primeira porção terá de ser muito predominante.

O episódio de Mineápolis, no Minnesota, norte dos Estados Unidos, em 25.05.20, revela essa terrível verdade de problemas sociais sistêmicos. Ele serve de lição e de advertência, um chamado de consciência de nossas precárias percepções de compromisso social com as diferenças. Um chefe de família afro-americano, de 46 anos, morreu por conta da "desigualdade estrutural" de sua cor.

Seu maior "crime", por certo, foi o de ser negro, quando o uso desmedido de força policial para tê-lo sob controle — algemado, já não opunha resistência alguma — o levou inevitavelmente à morte. Ele disse continuadamente: "Não consigo respirar", sufocado pela pressão constante do joelho do policial branco sobre seu pescoço; repetindo durante 8m46s. o mesmo apelo de Eric Garner, outro negro que morreu ao ser preso em Nova York (2014), pedindo também para não morrer.

O vídeo de cerca de dez minutos não precisa de legendas. É o documento de uma humanidade em crise, que não consegue respirar, sufocada diante do mal banalizado. Ele não gritou em sua morte, mas ela constitui agora um grito de paz para uma mudança cultural impostergável. Uma cultura ácida e discriminatória contra os negros está na contramão do processo civilizatório. Por isso o crime, por suas causas e efeitos, tem de ser combatido a partir da própria lei, com penas severas e sanções civis dissuasórias [2].

A insensibilidade moral no uso da força policial torna-se, outrossim, mais um problema de direitos humanos, para além das atitudes racistas. Movimentos sociais como o "Black lives matter" e o "SayHerName" denunciam a brutalidade policial que vitimiza pessoas inocentes e defendem limites e controle das intervenções policiais.

Essa falta de limites do controle policial é tamanha que governos estaduais nos EUA realizam seguros de responsabilidade civil para as eventuais ocorrências lesivas. O "Police professional liability insurance" (Seguro de Responsabilidade Profissional da Polícia) — oferece cobertura de responsabilidade para policiais e departamentos de polícia, em conjunto com atos, erros e omissões no desempenho de suas funções profissionais. As políticas públicas cobrem riscos como detenções falsas e violações de direitos civis.

No plano nacional, a decisão do ministro Edson Fachin (STF), de sexta-feira passada (5/6), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, impondo restrições, durante a pandemia, às operações policiais em comunidades pobres (que colocam em risco as populações vulneráveis), apresenta-se paradigmática e delas subtrai a aparente chancela prévia de indenidade. Em 22 de maio passado, o menor negro João Pedro Mattos Pinto, morreu dentro de casa, durante operação policial, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ).

O ministro Edson Fachin enfatizou, na liminar: "(...) nada justifica que uma criança de 14 anos seja alvejada mais de 70 vezes. O fato é indicativo, por si só, que mantido o atual quadro normativo, nada será feito para diminuir a letalidade policial, um estado de coisas que em nada respeita Constituição." Determinou, então, que referidas operações sejam somente realizadas "em hipóteses absolutamente excepcionais", com justificativas escritas e comunicações ao Ministério Público [3].

Certo é que o abuso da força policial, com suas responsabilizações cíveis e penais, está a exigir um tratamento normativo circunstanciado, em sua tipologia, com uma dogmatização apropriada. A mencionada decisão é um necessário e eloquente começo.

Pois bem. A morte de George Floyd que abalou o mundo, a de João Pedro e as muitas outras vidas interrompidas, conduz-nos, em seus fortes simbolismos, à questão social das famílias negras, como um elemento de permanente interesse jurídico e o Direito de Família(s) lhes deve reservar análises urgentes, em vanguarda de tratamentos protetivos.

Vejamos, a conferir:
(i) Desigualdade de rendas — Torna-se induvidoso que "a principal fonte de evidência sobre desigualdade de renda é a pesquisa das famílias" [4]. Em nosso país, a questão imediata situa-se em desigualdades evidenciadas no mercado de trabalho. As discrepâncias salariais afetam as famílias negras, onde um trabalhador recebe em média, 46% menos que um branco, em mesma função, não obstante tenham ambos a mesma formação técnica e estejam em uma mesma determinada classe social [5]. A propósito, em 2018, os negros já eram a maior parte da força de trabalho no Brasil — 54,9% [6].

Noutro giro, observa-se que as ocupações laborais exercidas não são igualitárias, envolvendo-se as famílias negras em atividades profissionais menos rentáveis ou mais desfavorecidas. A consequência da desigualdade de rendas impõe um menor poder aquisitivo, obrigando-lhes remetidas às comunidades periféricas, com habitações precárias e sem as infraestruturas básicas. Diante dos salários tipicamente desqualificados, a economia de desigualdade, torna-se mais contundente.

Quando o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-IBRE) divulgou (em 20/5) que a crise da atual pandemia da Covid-19 já afeta o trabalho de 53,5% das famílias brasileiras, retenha-se, de logo, que as famílias mais afetadas foram as de menor renda e que nesse contingente estão a maioria das famílias negras.

Em tais circunstâncias, impende lembrar Anthony B. Atkison, em sua obra Inequality: What can be done?, quando afirma: "a desigualdade de renda em dinheiro é menos preocupante onde o Estado fornece serviços como educação e assistência à saúde gratuitas para todos e onde a moradia e o transporte são subsidiados".

De fato. Para reduzir, substancialmente, a extensão da desigualdade, ele expõe quinze propostas de medidas, como as de renovações da seguridade social e, v.g., a de um “benefício de proteção social infantil”, para crianças de famílias de baixa renda, com a introdução de um capital mensal, em regime de poupança.
(ii) A ordem jurídica — Há um importante viés jurídico-histórico que remonta, no país, ao antigo processo abolicionista, em formação da liberdade das famílias negras que não lograram uma inclusão social imediata.

Na origem, a "Lei do Ventre Livre" ou "Lei Rio Branco" (Lei nº 2.040, de 28.09.1871), declarando livres os filhos de mulher escrava nascidos no Brasil, a partir da data da aprovação da lei, pode representar o marco histórico libertador das famílias afrodescendentes no país, durante o Império, com a alforria de gênese. Depois lhe seguiu a "Lei dos Sexagenários" (Lei nº 3.270, de 28.09.1885 - “Lei Saraiva-Cotegipe”), precursora das atuais leis de proteção ao idoso.

No presente, a Lei nº 12.288/10, de 20/7/2010, instituiu o Estatuto da Igualdade Racial [7], "destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica" (art. 1º). Segue-se o Decreto nº 8,136, de 5/11/2013, regulamentando o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) com a participação da sociedade civil [8].

Com o Estatuto, começou em nosso país uma política pública de ações afirmativas, tal como sucedeu, no Estados Unidos, por meio do "Civil Rights Act", de 1964, com fórmulas de garantia de igualdade formal em direitos civis a confirmar, na prática, o princípio de igualdade da 14ª Emenda de 1868. Mais precisamente, uma cláusula de igual proteção pela igualdade.

No entanto, cumpre em direito de família observar as famílias negras, configuradas como novos sujeitos de direitos, a partir de sua natureza de entidade, onde a promoção da diversidade constitua efetivamente uma democracia racial. Ou seja, a não depender necessariamente de políticas afirmativas pontuais, há de obter-se a permanência natural da identidade racial como algo mais democrático possível. Na aproximação dos dez anos do Estatuto, o tema suscita sua maior atualidade e novas incursões normativas igualitárias para uma nova ordem jurídica dignificante.

(iii) Famílias majoritárias — Mais da metade da população brasileira é formada por famílias negras, conforme dados e critérios do IBGE, em percentual de 56,10%. Dos atuais 209,2 milhões de habitantes do país, 19,2 milhões brasileiros se assumem como pretos, enquanto 89,7 milhões se reconhecem pardos, servindo o somatório para indicar a maioria populacional, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE.

Esse contingente predominante deve ser observado com políticas públicas de inserção social em todos os níveis de diálogo com a sociedade aberta e plural.

(iii) Vitimização negra — A vitimização das famílias negras registra dados impressionantes. Demonstrou-se em uma década (2007-2017), a maior potencialidade de morte para negros do que para não negros. Enquanto isso, a taxa de homicídios de pessoas negras elevou-se em 31,1% no mesmo período.

Dados do Atlas da Violência (2019), apontam que 75,5% das pessoas assassinadas no país, em 2017, eram pretas ou pardas, implicando o quantitativo de 49.524 vítimas. Ou seja, a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, enquanto a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Assim, proporcionalmente às respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos. Noutra perspectiva, objetivamente tem-se que "a chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é de 2,7 vezes maior do que a um jovem branco".

Lado outro, o atual contexto da pandemia da Covid-19 também tem revelado as desigualdades estruturais com as famílias negras, quando o nosso tempo de epidemia, tem vitimizado as populações mais vulneráveis. Induvidosamente a desigualdade social tem sido um fator a mais de exposição ao vírus, com maior número de contágios e de letalidade.

Os impactos do coronacrise têm mobilizado medidas antevendo a realidade futura, tornando-se imperativo um plano de ação a minimizar as sérias consequências sociais advenientes.

O governo espanhol, na sexta passada (29/5), aprovou a criação de uma “renda social mínima” para as famílias, com as seguintes destinações:
a) “família single” (adultos que morem sozinhos): 462 euros (U$515) o equivalente a R$2.700,00;
b) Núcleos familiares: ao valor da renda mínima de uma pessoa sózinha, serão acrescidos 139 euros (U$155), por mês, para cada pessoa adicional da família (adulto ou criança), até o máximo de 1.015 euros (U$ 1.130), por família.

Essa política social da Espanha vem permitir que essa nova renda mínima compatibilizada com as demais rendas, apresente a solução adequada aos trabalhos mal remunerados, assegurando uma renda média anual garantida de 10.070 euros (U$ 11.220), e beneficiando 850 mil famílias. Alcança cerca de 2,3 milhões de pessoas, onde 30% das quais são menores.

Cuide-se pensar em soluções assemelhadas, designadamente com medidas de longo alcance (não emergenciais), a exemplo das famílias endividadas, que formarão, na pós-pandemia, um dos problemas sociais mais agudos.

(iv) Reformas estruturais — Os avanços dos direitos civis não podem ser restritos apenas a um ordenamento jurídico programático. As reformas estruturais para a proteção das famílias negras demandam o implemento efetivo e pleno do princípio da paridade, nos âmbitos do trabalho privado, segurança, saúde, educação e em todos os demais segmentos sociais. As evidências da pessoa não estão na pele, se acham no interior dela.

Pode-se pensar, daí, que outro tipo de escravidão social continua, silenciosa, quase invisível, iludindo uma alegada ausência de preconceito, quando as famílias negras são inexoravelmente conduzidas a uma outra classe social e econômica.
Esses fatos já não se acham ou podem ser mais calados. Há uma travessia a ser feita, em cidadania responsável de toda a sociedade.
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. [9]
Como, de fato, somos um único povo em suas mais ricas diversidades, nessa travessia (não apenas interior), cumpre-nos construir uma mesma nação, a partir da construção da autonomia social e econômica das famílias negras. O impacto coletivo de muitas mortes étnicas sobre as nossas humanidades leva-nos a esse inadiável encontro.

A tanto, tenha-se presente a conclamação do jurista português Antônio Menezes Cordeiro [10]:
o direito não poderá ser mais condescendente com a maldade gratuita.

[1] Autor de “Uma Autobiografia Precoce”, esteve no Recife, declamando seus poemas na icônica livraria “Livro 7”, da rua Sete de Setembro, do livreiro Tarcísio Pereira.
[2] Na legislação norte-americana, diversos são os graus delitivos de um mesmo crime, importando a criminalização acertada para a devida aplicação da pena; anotando-se, no caso George Floyd, que os protestos sociais exigiram e obtiveram, a classificação cabível, do grau 1 para o 2.
[5] ATKINSON, Anthony B. Desigualdade. O que pode ser feito? Trad. Elisa Câmara, São Paulo: LeYa, 2015, 432 p.; p. 73.
[6] IBGE. Desigualdades sociais por Cor ou Raça no Brasil. Web: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf
[9] ANDRADE, Fernando Teixeira (1946-2008). Poema; “A Concha”.
[10] MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e. Tratado de Direito Civil, vol. V. Coimbra: Almedina, 2017.




 é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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