Estudo aponta que nem metade de residentes domina uso de medicamento indicado pela OMS para um aborto seguro; nomeação de Raphael Câmara, defensor da abstinência sexual, para cuidar da Atenção Primária de Saúde é criticada
“O aborto ainda tem um estigma que faz com que a faculdade de medicina não o discuta.” Esta é a conclusão do professor emérito da Unicamp Anibal Faúndes, médico formado há 65 anos e que, há 30, dedica-se à Faculdade de Ciências Médicas da instituição. A afirmativa se comprova em dados. Faúndes faz parte do grupo que analisou a percepção de residentes em ginecologia e obstetrícia de 21 hospitais sobre aborto legal medicamentoso no Brasil. E o resultado acende um alerta: a maioria não domina o uso do misoprostol, bem como desconhece que a legalização do procedimento implica em redução das taxas de aborto em um país.
Entre os participantes da pesquisa do Grupo de Estudos sobre Aborto no Brasil, realizada por pesquisadores principalmente da Unicamp, apenas 40% acertaram mais de 1/3 das respostas sobre o uso do misoprostol, medicamento que provoca contrações uterinas e é sugerido, acompanhado de mifepristone, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como método eficaz e seguro para a interrupção da gravidez. As perguntas sobre vias de administração e internações hospitalares decorrentes do método foram as que eles mais erraram.
Entre os participantes da pesquisa do Grupo de Estudos sobre Aborto no Brasil, realizada por pesquisadores principalmente da Unicamp, apenas 40% acertaram mais de 1/3 das respostas sobre o uso do misoprostol, medicamento que provoca contrações uterinas e é sugerido, acompanhado de mifepristone, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como método eficaz e seguro para a interrupção da gravidez. As perguntas sobre vias de administração e internações hospitalares decorrentes do método foram as que eles mais erraram.
Abortar é proibido no Brasil, com exceções em casos de estupro, de anencefalia do feto e risco à vida da gestante. Nesses casos, é possível fazê-lo por intervenção cirúrgica ou com uso de medicamentos. Mas o estigma citado por Faúndes atrapalha até mesmo os casos mais simples. Angélica** é uma jovem que age como facilitadora do acesso das mulheres ao aborto seguro. Ela conta que várias vezes recebe mensagens de quem, mesmo tendo passado por um aborto espontâneo, recebeu um atendimento criminalizador no sistema de saúde.
“Houve casos com riscos sérios de infecção e que a mulher foi mandada de volta para casa, para expelir o feto sozinha. Meu trabalho também é orientá-la a exigir que façam o procedimento correto”, explica.
Para Ilana Ambrogi, médica de família e comunidade e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, esse é um exemplo que mostra parte do atraso da medicina brasileira em relação ao tema, que se reflete também no ensino nas escolas médicas.
“A medicina está severamente atrasada nos conhecimentos científicos e técnicos sobre as condutas referentes ao aborto, tanto em relação às mulheres que buscam por estar dentro das questões legais, quanto para as que sofrem um aborto espontâneo. O estudo [do grupo de Faúndes] mostra a inadequação. Não existe um profissional de saúde, em particular os ginecologistas e obstetras, que ofereça atendimento adequado sem ter conhecimento adequado sobre aborto”, avalia.
E ainda há um longo caminho a ser trilhado. A pesquisa mostra que apenas metade dos residentes ouvidos disse ter tido aula sobre o processo medicamentoso na graduação e 80% do total afirmaram ter tido as aulas na residência.
É neste contexto de desinformação e preconceito que a nomeação do médico carioca bolsonarista Raphael Câmara para secretário responsável pela Atenção Primária de Saúde, no Ministério da Saúde, acende o alerta. Para os médicos que atuam pela saúde da mulher, ouvidos pela Gênero e Número, sua nomeação é desastrosa.
A Atenção Primária é a porta de entrada para a saúde básica da mulher, não só para aquelas que buscam informações sobre aborto, mas para informações sobre direitos reprodutivos. “A grande causa dos abortos clandestinos é a gravidez indesejada, evitada com educação sexual. E isso está no ‘postinho’, para grande parte da comunidade. É muito preocupante essa nomeação nesse momento de grandes retrocessos. Ele é antissaúde da mulher, não só anti-aborto”, avalia Ambrogi.
Faúndes acrescenta que, pelo retrospecto de Câmara, ele pode ser considerado inclusive contra os procedimentos legais. “Se ele fosse anti-aborto, estaria promovendo a educação, lutando pela informação sobre os métodos contraceptivos, a acessibilidade em cada posto de saúde”, afirma.
Custos financeiros e de saúde
A pesquisa do Grupo de Estudos sobre Aborto no Brasil, publicada no início deste ano, abordou 530 residentes, o que representa 30% dos residentes da área no ano de 2017, e obteve 404 respostas. No documento, os pesquisadores afirmam que os “resultados sugerem fortemente que as escolas médicas brasileiras não conseguiram preparar adequadamente os residentes para realizar a interrupção legal da gestação com medicamentos”.
Para Ilana Ambrogi, além da falha nas escolas médicas, há uma falha nas instituições, com falta dos equipamentos adequados e necessários para um melhor atendimento, além de uma barreira invisível das questões institucionais.
“Temos que formar médicos da comunidade, que a entendam. E educar, desde o colégio, para saber que a questão moral não pode virar política, e que a questão pessoal não pode virar ciência”. E exemplifica: “Se um paciente precisa de transfusão, o médico, mesmo que a religião dele não permita, faz”.
No Brasil, os gastos com aborto legal foram de R$ 415 mil em 2019, com cerca de 2 mil internações, segundo levantamento da agência de dados independente Fiquem Sabendo. Em nota técnica enviada ao Supremo Tribunal Federal em razão da ADPF 442, o Ministério da Saúde informou que, somente em 2017, o gasto com internações por interrupções de gravidez foi de cerca de R$ 50 milhões. O custo médio, de acordo com a pasta, foi 317% maior com esse tipo de internação em relação àquelas gestações que não tiveram complicações.
Uma pesquisa do Instituto Guttmacher, de 2014, mostra que um acesso digno e amplo ao aborto legal implica na redução de gastos públicos com o pós-aborto. A estimativa do instituto é que os gastos dos países em desenvolvimento com esse tópico seja de US$ 232 milhões, e seria de US$ 562 milhões se todas as mulheres buscassem o sistema de saúde após um aborto. Mas o valor poderia cair para US$ 20 milhões se todos os procedimentos fossem feitos com segurança, uma redução de 91% para os cofres públicos.
Outro fator de atenção em um acesso amplo ao aborto legal, com profissionais capacitados, é a redução no impacto da vida das mulheres. Quando o procedimento é legalizado, de acordo com pesquisa de 2017 do mesmo instituto, há um aumento na proporção de abortos seguros frente aos inseguros, sendo estes apenas 1% do total em países com leis menos restritivas.
E sem segurança no sistema público de saúde, são as mulheres mais pobres que irão se submeter a procedimentos arriscados. “Estamos vendo agora que a covid-19 para negros é mais letal, e a mesma coisa é para aborto: as pessoas negras e pobres são marginalizadas. Entre aqueles com mais educação, o aborto não é um problema”, avalia Anibal Faúndes.
Angélica, a facilitadora de procedimentos seguros ouvida pela reportagem, afirma que essa marginalização impacta diretamente na vida das dezenas de mulheres com as quais ela lida por mês. “Passou da hora de entenderem que não é capricho, é questão de saúde. Redes de apoio só existem porque a maioria das mulheres não sabe a quem recorrer e precisa de instruções ou até ser acolhida por outras. Quem não tem acesso à informação é prejudicada.”
Redução e legalização
O estudo também mostra um entendimento falho dos residentes de ginecologia e obstetrícia sobre a relação entre legalização do aborto e redução das taxas do procedimento. Apenas 1/3 dos questionados afirmou corretamente que legalização e acesso mais fácil a serviços seguros não aumentam a taxa de realização do procedimento.
Houve um cruzamento das respostas e análise sobre as características sociodemográficas dos que responderam à pesquisa, com informações sobre religião e região do país onde estudaram, por exemplo. A resposta correta sobre a redução das taxas foi “significativamente menor entre aqueles para quem a religião era muito importante”, conclui o estudo.
“Não é que o residente tem essa opinião, é que a maior parte da população tem essa opinião. A experiência mundial mostra que, depois de legalizados os abortos, eles começam a diminuir. Mas são informações que não estão disponíveis amplamente. O aborto é uma atividade muito rotineira, mas não se discute, não se conversa, não se fala. Muito menos sobre o legal”, avalia Faúndes.
Já Ilana Ambrogi alerta para boas práticas da medicina nesses casos: “A ciência médica, se estamos ensinando, não pode ser afetada por questão jurídica, de legalidade ou não, ou de ideologia pessoal. Se opor à aprendizagem adequada é se opor à saúde pública”.
Ameaça aos direitos
Raphael Câmara se tornou uma das mais potentes vozes que fazem coro às políticas contra o direito da mulher no atual governo. Ele encampa as falas sobre abstinência sexual como “método” de prevenção e fala abertamente contra o aborto. Foi, inclusive, um dos nomes ouvidos na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, em agosto de 2018, que avalia a descriminalização do procedimento até a 12ª semana de gestação.
Na ocasião, com dados deturpados, afirmou que a “ liberação do aborto, isso sim, é um problema de saúde pública”, para logo depois explicar que não é um “fanático religioso”. Ao atacar o argumento de que são as mulheres negras mais atingidas pelas mortes decorrentes de estupro, por exemplo, separou as pretas e pardas (que formam a categoria de negras) e disse que as primeiras morrem menos. Ele também questionou o conceito de estupro, que permite abortos em casos legais, exemplificando que “se uma mulher botar a mão na minha perna com lascívia, é estupro”.
Para Ilana Ambrogi, a única maneira de frear os retrocessos e evitar a perda de direitos neste momento, não só em relação à atuação profissional de Raphael Câmara, é ampliar o acesso à informação.
“Quanto mais souberem que direitos estão sendo perdidos, mais pressão podem fazer para que essas instituições se atualizem”, afirma.
*Lola Ferreira é repórter da Gênero e Número.
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