Conheça a vida e obra de Mamie Phipps Clark – cuja pesquisa sobre a reação de crianças negras a bonecas brancas convenceu a Suprema Corte a acabar com as escolas exclusivas para afro-americanos.
Por Bruno Vaiano - Publicado em 2 jun 2020
Cecil Beaton/Getty Images |
Mamie Phipps Clark nasceu em 1917 no estado do Arkansas, cuja zona rural é um conhecido reduto de racistas no sul dos EUA. O relevo montanhoso da região já serviu de esconderijo para os terroristas cristãos do CSA – e a minúscula Harrison, uma cidadezinha de 13 mil habitantes, já foi sede de uma sucursal da Ku Klux Klan (KKK).
Entre 1905 e 1909, pouco antes do nascimento de Mamie, a maior parte da população negra da cidade de Harrison fugiu, acuada por assassinatos, espancamentos e incêndios propagados por supremacistas brancos. Até hoje, o Arkansas ele faz parte de um grupo de quatro estados americanos que não possuem qualquer legislação contra crimes motivados por preconceito (os hate crimes, “crimes de ódio”).
Entre 1905 e 1909, pouco antes do nascimento de Mamie, a maior parte da população negra da cidade de Harrison fugiu, acuada por assassinatos, espancamentos e incêndios propagados por supremacistas brancos. Até hoje, o Arkansas ele faz parte de um grupo de quatro estados americanos que não possuem qualquer legislação contra crimes motivados por preconceito (os hate crimes, “crimes de ódio”).
Mas Mamie foi criada em outro canto do estado – a badalada Hot Springs, famosa pelos resorts e spas, pelo baseball e pelos jogos de azar ilegais (a cidade é um reduto tão célebre do crime organizado que hoje sedia o Museu do Gângster, cujo maior destaque é a temporada em que Al Capone passou na cidade).
Ela era filha de Harold H. Phipps, um dos únicos médicos negros que atuavam no sul do país na época. Passou a adolescência e a juventude durante a Grande Depressão – e, como todas as crianças negras da época, frequentou uma escola segregada, com um ensino deficitário em comparação ao oferecido aos brancos. Mesmo assim, Mamie já admitiu em uma entrevista que considerava sua infância mais privilegiada que a da maior parte de seus colegas.
Em 1934, Mamie terminou o Ensino Médio no colégio de Langston, e conseguiu uma bolsa para estudar na Universidade Howard, na capital Washington, uma das únicas universidades do país reservadas à população negra (a escritora Toni Morrison, prêmio Nobel de Literatura, estudou lá). Por ser mulher, teve dificuldades para ser aceita em disciplinas das áreas de Matemática e Física, em que historicamente predominavam alunos e professores homens.
Sua carreira mudou de rumo quando conheceu o futuro marido, Kenneth Clark, nascido no bairro do Harlem, em Nova York, e mestrando em psicologia. Ela se interessou e acabou mudando de curso. Se formou na mesma área do Kenneth em 1938. Na mesma época, trabalhou como secretária no escritório do advogado negro William Houston, que quartel general de ativistas do movimento por direitos civis. Lá, pela primeira vez, ela se deu conta de que era possível combater a segregação por vias legais.
Nessa altura, o leitor já deve estar curioso com a história sobre bonecas mencionada no título. Vamos a ela. Em 1939, Mamie entregou sua dissertação de mestrado, intitulada “O desenvolvimento da consciência em crianças negras de idade pré-escolar” (alguns anos depois, ela se tornaria a primeira mulher negra a obter um doutorado em psicologia na Universidade Columbia). Depois, ela expandiu esse trabalho com experimentos mais sofisticados ao longo da década de 1940 – você pode ver uma das publicações originais neste arquivo em formato PDF.
O experimento descrito no PDF ocorreu da seguinte forma: Mamie e Kenneth exibiram bonecas negras e brancas para 253 bebês e crianças entre 3 e 7 anos (as bonecas negras precisaram ser pintadas de marrom, pois não havia brinquedos que retratassem bebês afro-americanos na época). Eles, então, fizeram oito pedidos aos voluntários mirins:
1. Me dê a boneca com que você mais gosta de brincar.
2. Me dê a boneca que é uma boneca legal.
3. Me dê a boneca que é feia.
4. Me dê a boneca que tem uma cor legal.
5. Me dê a boneca que se parece com uma criança branca.
6. Me dê a boneca que se parece com uma criança de cor.
7. Me dê a boneca que se parece com uma criança negra.
8. Me dê a boneca que se parece com você.
O primeiro dado interessante foi que 93% das crianças entregavam a boneca negra na pergunta 6, mas só 66% na pergunta 8. Ou seja: embora meninos e meninas negros já demonstrem uma percepção sólida das diferenças raciais desde cedo, elas demoram um pouco mais para estabelecer sua própria identidade (as crianças de 7% se identificaram como negras em 87% dos testes, contra apenas 36% das de três anos).
Na pergunta 3, 59% das crianças disseram que a boneca feia era a boneca negra, e só 17% apontaram a boneca branca. 67% das crianças preferiram brincar com a boneca branca na pergunta 1, e 59% disseram que a boneca branca era a boneca legal na pergunta 2.
A pergunta mais traumática era sobre autoidentificação. Na parte do texto que descreve os resultados qualitativos (e não só os números), Mamie conta que muitas crianças começavam a chorar quando eram questionadas sobre com qual das bonecas mais se pareciam. Duas chegaram a correr para fora da sala, aos berros, sem responder. Outras riam e racionalizavam a situação. Uma criança de sete anos se justificou: “Eu sou marrom porque peguei um bronzeado no verão.”
Os resultados desse e de outros experimentos – além do testemunho do casal – foram elementos essenciais para o desfecho do processo Brown v. Board of Education of Topeka, em que os nove juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos declararam que a segregação racial nas escolas do país era inconstitucional. O processo começou em 1951, quando um homem negro chamado Oliver Brown, da cidade de Topeka, no Kansas, não pôde matricular sua filha no colégio mais próximo de sua casa porque a instituição era reservada a brancos.
A corte concluiu que “separar crianças negras de outras de idade e qualificação similar somente por causa de sua raça gera uma sensação de inferioridade quanto a seu status na comunidade, que pode afetar seus corações e mentes de maneiras que provavelmente jamais serão desfeitas.” Nas notas de rodapé, figuravam como fonte da afirmação os trabalhos de Mamie e Kenneth Clark.
As contribuições do casal ao movimento negro não pararam por aí – são assunto para um livro, e não para um texto jornalístico. Eles fundaram uma das primeiras clínicas de assistência psicológica a crianças negras no Harlem, historicamente um reduto da cultura afro-americana no norte de Manhattan. Lá, se deram conta do que hoje é óbvio: era impossível que crianças negras tivessem desempenho escolar igual ao das brancas se viviam em lugares pobres e violentos e frequentavam escolas piores.
Em 2005, a diretora Kiri Davis reproduziu o experimento das bonecas, em menor escala e diante das câmeras, para o minidocumentário A girl like me (em português, Uma garota como eu), um curta de 7 minutos exibido em várias emissoras de TV. De 21 crianças, 15 ainda preferiam as bonecas brancas. Sinal de que, mesmo com bonecas negras em algumas lojas e crianças negras em todas as escolas, a luta de Mamie e Kenneth ainda está apenas começando.
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