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quarta-feira, 17 de junho de 2020

Luísa Sonza, Vitão e a Síndrome de Dom Casmurro



O romance intitulado Dom Casmurro, de Machado de Assis, teve destaque pela suposta traição de Capitu contra seu marido Bentinho. O autor não concluiu se houve o adultério, mas as suposições trabalhadas durante toda a obra criaram a imagem da personagem como “dissimulada” e traidora. Ultrapassando o plano da arte, tal situação discriminatória sempre esteve presente na cultura brasileira.

Recentemente, a cantora Luísa Sonza foi alvo de severas críticas de internautas após o lançamento de um videoclipe com o cantor Vitão. Além dos impropérios desferidos contra a artista, boa parte das ofensas foram embasadas na atribuição de uma suposta traição dela com o aludido cantor, enquanto casada com o seu ex-cônjuge, Whindersson Nunes.
À vista disso, é de suma importância salientar a hipótese da responsabilidade penal pelos crimes contra a honra. Depreende-se que imputar a prática de relações extraconjugais, ainda que seja verdade, com a intenção de ofender a honra objetiva – reputação – de alguém, pode caracterizar o crime de difamação, conforme o artigo 139 do Código Penal, in verbis:
Art. 139 – Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
Outrossim, atribuir características negativas a outrem, com o escopo de ferir sua dignidade ou decoro, isto é, chamar alguém de “piranha” e outros impropérios similares contra à honra subjetiva da vítima, configura o delito de injúria, nos moldes do art. 140, do Código Penal, in verbis:
Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
Saliente-se, por oportuno, que se ambos os delitos forem praticados na internet, espaço que facilita a propagação das ofensas, haverá a incidência da causa de aumento de 1/3 da pena, prevista no art. 141, inciso III, do Código Penal.
Ocorre que, considerando a repercussão social do caso, denota-se que a opinião pública transcende o contexto virtual no momento em que inúmeras pessoas ratificam tais espécies de ofensas aos bens jurídicos intangíveis das mulheres, tais como os atributos morais, a liberdade sexual e a incolumidade psíquica.
Isto é, notadamente, as piadas sexistas e vexatórias perpetradas contra a cantora, evidenciam o retrato de uma sociedade machista que ainda obstaculiza a liberdade de escolha das mulheres e, por acinte, respalda a violência contra a mulher.
Tal cenário encontrava respaldo na antiga legislação penal brasileira e foi, rigorosamente, combatido. No período colonial, os agressores eram considerados inimputáveis quando ferissem as esposas com açoites ou pedras, sob o fundamento de eventuais castigos (sic) pela transgressão dos costumes da época, consoante a parte criminal das Ordenações Filipinas, em seu Livro V, Título 36, §1°.
Outrossim, os maridos poderiam obter uma espécie de licença legal para matar suas esposas quando suspeitassem de adultério, não sendo sequer exigidas provas robustas da traição, mas tão somente rumores da população. Inclusive, vale ressaltar que só no ano de 2005, o adultério deixou de ser considerado crime no Brasil.
Nesse sentido, embora o ex-marido da cantora tenha repudiado as críticas, o aludido julgamento social põe em risco as liberalidades de todas mulheres, tuteladas por diversos institutos normativos de prevenção e coibição da violência de gênero, tais como a Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e a qualificadora do Feminicídio (art. 121, §2°, VI, do Código Penal).
Isso porque, sabe-se que muitos agressores, que se dizem traídos por suas esposas ou companheiras, buscam o amparo social para legitimar a prática das mais diversas formas de violência – moral, física e psicológica – contra elas.
Logo, em que pese o atual nível do estágio civilizatório, resta evidente que os constantes ataques à honra da cantora Luísa Sonza remonta a tentativa de perpetuar a cultura do patriarcado e a discriminação de gênero. Impactando, portanto, no enfrentamento a violência contra a mulher.
Desta feita, é mister salientar o óbvio: a mulher tem direito à liberdade de escolha, seja do seu trabalho, da sua arte, do seu companheiro, de sua dignidade sexual. Não há amparo legal para julgamentos alheios, de estrito cunho moral, às mulheres no exercício de suas liberalidades constitucionalmente asseguradas.
A síndrome do Bentinho de Dom Casmurro – isto é, do homem supostamente traído e protegido pela sociedade patriarcal – deve ser combatida e extirpada do senso comum, pois tem dizimado a vida de inúmeras mulheres – Capitus.

REFERÊNCIAS
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado: parte especial. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

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