Revista Consultor Jurídico, 25 de junho de 2020
Desde sua promulgação, a Constituição Federal consagrou as famílias como base da sociedade [1], outorgando a elas especial proteção do Estado, determinando a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares [2].
Para não deixar dúvidas a respeito de suas intenções, a Carta Magna, em observância aos seus fundamentos [3] e objetivos [4], expressamente reconheceu como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descentes [5], ressaltando que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar e comunitária, colocando-os a salvo de toda forma de discriminação e violência [6].
Para não deixar dúvidas a respeito de suas intenções, a Carta Magna, em observância aos seus fundamentos [3] e objetivos [4], expressamente reconheceu como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descentes [5], ressaltando que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar e comunitária, colocando-os a salvo de toda forma de discriminação e violência [6].
Em linha com as determinações constitucionais, buscando a elas dar efetividade, notadamente no que toca à proteção das famílias, o Código Civil de 2002 [7] [8] prevê que a separação judicial, o divórcio, a dissolução da união estável ou o fim de qualquer espécie de relacionamento, não tem o condão de modificar os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos, muito menos o direito destes à convivência familiar saudável [9] com ambos os genitores e respectivas famílias extensas.
Tal inalterabilidade de direitos e deveres encontra razão de ser na, digamos, poética previsão constitucional que faz com que a lágrima produzida pelo fim da família tradicional ou nuclear, da conjugalidade, irrigue a semente do afeto paterno-filial, fazendo brotar do caos duas ou mais famílias monoparentais, que, de igual forma, também contam com a proteção especial do Estado.
O legislador infraconstitucional, buscando reforçar a proteção especial que as famílias devem ter do Estado, em 2010, inseriu em nosso ordenamento a guarda compartilha, passando esta, em 2014, a ser a regra legal vigente [10].
Conforme definição legal, a guarda compartilhada é a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres dos pais e das mães que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns [11], devendo, sempre que possível, tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos, o tempo de convivência destes com os seus genitores ser dividido de forma equilibrada [12].
Ocorre que alguns operadores do Direito, apesar da clareza gramatical inserta no §3°, do artigo 1.583, do Código Civil, no sentido de que "na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos", vêm buscando ou determinando a fixação de residência base ou lar de referência, o que, além de desvirtuar a determinação legal, não se amolda ao real espírito do compartilhamento da guarda, que busca o equilíbrio de direitos e deveres entre os genitores.
Na guarda compartilhada, a integralidade do poder familiar é partilhada conjuntamente por todos os genitores, notadamente no que tange à representação e assistência dos filhos, o que atrai a regra contida no artigo 76, parágrafo único, do Código Civil, que afirma que o domicílio necessário do incapaz é o dos seus representantes legais.
Dessa forma, na guarda compartilhada, as crianças ou adolescentes terão sempre dupla residência, considerando ser seus domicílios qualquer uma delas [13], ainda que localizadas em cidades distintas.
Nesse ponto, importante salientar que a duplicidade de residência e domicílio não é sinônimo de tempo de convivência repartido matematicamente entre os genitores e/ou representantes legais, pois a lei é clara ao dispor que a divisão equilibrada do tempo de convívio sempre deverá levar em conta as condições fáticas e os interesses dos filhos.
Por outro lado, questão que não pode ser desprezada é que, em nosso ordenamento, a fixação de domicílio de crianças e adolescentes só tem previsão legal como punição a ilícito civil, qual seja, abuso moral [14] e violência psicológica [15], conforme se depreende da leitura do artigo 6°, inciso VI, da Lei n° 12.318/2010, que dispõe sobre alienação parental.
Destarte, quando um magistrado fixa residência base ou lar de referência de uma criança ou adolescente, na verdade ele está punindo o genitor que não foi agraciado com tal benesse, tacitamente imputando a este a prática de um ilícito civil, assim como suspendendo parte de seu poder familiar [16], implementando verdadeira guarda unilateral travestida de compartilhada, tudo isso sem a observância do devido processo legal.
Por fim, cabe consignar que a legislação específica que regula os procedimentos de definição de guarda e convivência [17], entre outras regras e princípios, indica que na promoção dos direitos e na proteção das crianças e adolescentes deve sempre ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou os reintegrem nas suas famílias naturais [18], visando ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários [19], sendo vedado ao magistrado tomar providências não previstas em lei, que transpareça qualquer tipo de ideia ou noção de afastamento das criança ou adolescentes de qualquer uma de suas famílias [20].
Logo, estando os genitores aptos a exercer o poder familiar e todos manifestando vontade de deter a guarda dos filhos, na implementação da guarda compartilhada, em observância às normas constitucionais e legais vigentes, alternativa não resta aos magistrados senão determinar a cidade base de moradia dos filhos, declarando que estes continuarão ou passarão a ter dupla residência, evitando, desse modo, atitudes discriminatórias, que fariam acepção entre famílias que igualmente fazem jus à proteção especial do Estado, assim como criando um instrumento eficaz para tentar coibir a violência no âmbito das relações familiares, como, por exemplo, a perpetração de atos de alienação parental.
[1] Constituição, artigo 226, caput.
[2] Constituição, artigo 226, §8°.
[3] Constituição, artigo 1°, III.
[4] Constituição, artigo 3°, IV.
[5] Constituição, artigo 226, §4°.
[6] Constituição, artigo 227, caput.
[7] Código Civil, artigo 1.579, caput e parágrafo único.
[8] Código Civil, artigo 1.632.
[9] Lei 8.069/1990, artigo 19, caput e §3°.
[10] Código civil, artigo 1.584, §2°.
[11] Código Civil, artigo 1.583, §1°.
[12] Código Civil, artigo 1.582, §2°.
[13] Código Civil, artigo 71.
[14] Lei12.318/2010, artigo 3°.
[15] Lei 13.341/2017, artigo 4°, II, b.
[16] STJ. REsp 1629994.
[17] Código de Processo Civil, artigo 693, parágrafo único.
[18] Lei 8.069/1990, artigo 100, X.
[19] Lei 8.069/1990, artigo 100, caput.
[20] Lei 8.069/1990, artigo 153, parágrafo único.
Fernando Salzer e Silva é procurador do Estado de Minas Gerais e advogado especialista em Direito de Família.
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