Mesmo as que estão no grupo de risco para a covid-19 seguem presas, apesar de recomendação do CNJ relacionada à pandemia; Judiciário opta pela prisão ao invés da proteção dessas mulheres
Cristina** não controla o choro quando fala da sua família. As lembranças da Bolívia são um misto de saudade e tristeza pela vida dura que levava. Em seu país ela vendia comida nas ruas, onde ganhava até 200 bolivianos – o equivalente a 160 reais por dia. O que arrecadava não era suficiente para que a viúva, de 74 anos, cuidasse dos quatro filhos. E essa era a sua aflição de todos os dias. Seu maior sonho é comprar um “terreninho” onde possa viver com os filhos. Foi movida por esse desejo que ela aceitou a proposta de uma mulher que sequer conhecia, e trouxe drogas para o Brasil. Como pagamento, receberia mil dólares. Um dinheiro que ela nunca viu. Cristina foi presa pela Polícia Civil, em dezembro do ano passado, ao chegar na Rodoviária do Tietê, em SP.
Cristina é um retrato da realidade de diversas mulheres latino-americanas presas no Brasil; a maioria delas (75%) responde por tráfico internacional de drogas, de acordo um levantamento feito pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), organização de Direitos Humanos que visa promover o acesso à justiça e garantir os direitos das pessoas presas. A função, conhecida como mula, por vezes é atribuída à mulher. Um trabalho extremamente arriscado e de baixa remuneração. Elas viajam de um país para o outro levando drogas escondidas no corpo, em malas ou em outros objetos. Muitas dessas mulheres aceitam os riscos de serem mulas como forma de obter ou complementar a renda para o sustento da família, uma vez que a maioria é responsável pela casa.
Cristina é um retrato da realidade de diversas mulheres latino-americanas presas no Brasil; a maioria delas (75%) responde por tráfico internacional de drogas, de acordo um levantamento feito pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), organização de Direitos Humanos que visa promover o acesso à justiça e garantir os direitos das pessoas presas. A função, conhecida como mula, por vezes é atribuída à mulher. Um trabalho extremamente arriscado e de baixa remuneração. Elas viajam de um país para o outro levando drogas escondidas no corpo, em malas ou em outros objetos. Muitas dessas mulheres aceitam os riscos de serem mulas como forma de obter ou complementar a renda para o sustento da família, uma vez que a maioria é responsável pela casa.
Por fazer parte do grupo de risco da covid-19, Cristina foi uma das poucas mulheres migrantes contempladas pela recomendação 62, do Conselho Nacional de Justiça. O documento apresenta estratégias para impedir o avanço do coronavírus nos presídios brasileiros. Dentre as medidas apresentadas, está o relaxamento da pena para o cumprimento de prisão domiciliar ou até mesmo concessão de liberdade provisória. Cristina saiu do regime fechado para um abrigo em São Paulo. Atualmente, de acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), há 154 presas estrangeiras no estado: 39 em regime semiaberto e 115 cumprindo pena em regime fechado. Apenas 16 dessas mulheres conseguiram a liberdade neste momento de pandemia.
De acordo o levantamento do ITTC, ao menos 64 reeducandas estrangeiras, das 385 atendidas pela organização entre 2018 e 2019, correm risco de morte nas penitenciárias de São Paulo, por fazerem parte do grupo de risco da covid-19. A organização toma como base 293 questionários aplicados durante os atendimentos realizados nos presídios da capital paulista. Os fatores de risco analisados foram: presidiárias de 60 anos ou mais com problemas de saúde como hipertensão, diabetes, HIV, câncer, entre outras doenças; e presidiárias com até 59 anos ou com idade não identificada que possuem algum problema de saúde que se enquadra no grupo de risco.
Sem lugar para ficar
Umas das grandes dificuldades para essas mulheres saírem dos presídios é a falta de um endereço fixo, explica a defensora pública federal Nara Rivitti: “Além da resistência do Judiciário à lógica das pessoas responderem aos processos em liberdade, que persiste mesmo durante a pandemia, a gente tem enfrentado o desafio delas não terem um endereço. Isso é visto como uma possibilidade de fugirem e não pagarem a pena”. Nara também explica que em várias decisões os juízes têm optado em não soltar a migrante “pelo bem dela mesma”, já que ela não tem onde morar.
A defensora pública afirma que a grande dificuldade em encontrar um abrigo para essas mulheres é a falta de entrosamento entre as Secretarias de Assistência Social e da Administração Penitenciária: “A assistência social que administra as vagas para quem não tem onde morar não está integrada à rede da SAP”. Outro problema é a compreensão do Judiciário sobre o funcionamento da rede de assistência social. “Os juízes compreendem pouco como funciona a rede. Eles entendem que é possível conseguir uma declaração de vaga prévia, enquanto a assistência social só funciona por demanda. A demanda chega e eles encaminham para onde tem vaga. O Judiciário fica alheio, numa lógica própria, diferente de como a rede funciona”.
O ITTC identifica apenas dois abrigos direcionados para o público migrante egresso, um na cidade de São Paulo, com cerca de 80 vagas, e outro em Guarulhos, com cerca de 20 vagas para homens e mulheres migrantes egressos, mas que está fechado por causa da quarentena. Isadora Vieira Arruda, assistente de projeto da organização, afirma que a pandemia escancarou alguns problemas persistentes para as mulheres migrantes em conflito com a lei. “No contexto da pandemia, a procura por acolhimento aumentou consideravelmente e os estabelecimentos não têm dado conta de acolher as mulheres”. A assistente explica que acaba ocorrendo um movimento contraditório, em que a demanda é crescente, enquanto a oferta de vagas é reduzida. “Os abrigos têm que aumentar a distância entre os leitos, reduzir o número de pessoas por quarto, separar espaços para quarentena de pessoas com suspeita de covid-19 e para as pessoas que ingressam no serviço”.
A SAP informou que o serviço social, presente nas unidades prisionais, articula vagas em centros de acolhida da prefeitura de São Paulo. Além disso, o órgão informou que as mulheres que não têm endereço fixo são orientadas a procurar o consulado do seu país para acolhimento.
O ITTC tem auxiliado as migrantes encarceradas no contato com o consulado de seu país, embora, segundo Arruda, a questão do acolhimento seja bastante limitada: “Pouquíssimos consulados conseguem indicar lugares em que as mulheres podem ficar, uma vez fora (da prisão). A maioria deles não custeiam a estadia delas”. Ela ainda frisa que alguns países não possuem representação diplomática em São Paulo e, por vezes, nem no Brasil. “O ITTC é a única instituição que possibilita o contato com familiares e algum tipo de assistência”, completa.
A lei que não protege
Um dos gargalos da legislação brasileira é não reconhecer o contexto que levou essas mulheres a se submeterem ao transporte de drogas internacional. Nem todas têm a possibilidade de dizer sim ou não. Dados coletados pelo ITTC, de 2008 a 2019, indicam que diversas mulheres presas no Brasil sofreram ameaças, foram enganadas, ficaram em cárcere privado, tiveram documentos apreendidos, dentre outros tipos de violência. Tais características, segundo a organização, demonstram que essas mulheres são vítimas do tráfico internacional de pessoas, se for levada em conta a definição do Protocolo de Palermo – principal instrumento global de combate ao crime organizado transnacional, do qual o Brasil é signatário desde 2004.
Em um boletim publicado em março deste ano, a organização detalha a violência a que essas mulheres são expostas. No documento, o ITTC trata da irrelevância do consentimento e conhecimento da vítima sobre o transporte da droga: “A principal forma de recrutamento de vítimas de tráfico de pessoas é através de falsas propostas de trabalho. No entanto, também é possível se aproveitar da situação de vulnerabilidade das vítimas e, com isso, obter o consentimento delas”.
“Ainda vemos na aplicação da lei um certo conservadorismo. É como se as mulheres também fossem julgadas por descumprir um papel social que lhes é atribuído, o de cuidadora dócil”, afirma Isadora Arruda. Para ela, “se um juiz ou juíza não tem um olhar sensível para essa questão, é quase impossível que seja identificado o elemento de tráfico de pessoas na história dessa mulher. Até mesmo porque muitas vítimas do tráfico de pessoas não se reconhecem como vítimas”.
*Leandro Barbosa é jornalista e colaborador da Gênero e Número
**Nome fictício para preservar a entrevistada
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