Ainda que a licença paternidade acima de 20 dias seja um benefício raro, boa parte dos homens que poderiam usá-la ainda evitam. Conversamos com um executivo que fez isso, em plena pandemia.
Guilherme Martins
publicado em 12 de Junho de 2020
"Quando descobri que teria esse tempo, confesso que foi um pouco estranho pois fui acostumado, assim como todos os outros homens, a entender que o tempo necessário de licença para o pai deveria ser no máximo de até 20 dias.
Nunca tinha parado para pensar no que isso - esse tempo de licença - significa de uma forma mais profunda, passando por temas relacionados a equidade de gênero até a conexão e desenvolvimento dos primeiros vínculos entre pai e filho e com a nova composição familiar."
* * *
* * *
O Guilherme Martins é um dos primeiros homens no Brasil a receber uma licença paternidade oficial de 6 meses pela empresa. No Brasil a licença paternidade mais comum é a de 5 dias. Diversas empresas já oferecem a de 20 dias e poucas a de 6 meses. Alguns pais conseguem a extensão da licença paternidade recorrendo judicialmente caso tenham se tornado viúvos ou pais de gêmeos/trigêmeos.
O Guilherme Valadares (aqui do PdH) que trabalha com a transformação das masculinidades em empresas, contou pra gente que, mesmo nas empresas que oferecem a opção de tirar 6 meses de licença, a maioria dos pais não usam do benefício.
Pedimos então para que o Guilherme Martins, que é diretor de negócios da Diageo, contasse pra gente como tem sido a licença: medos, laços, desafios, aprendizados, um pouco de tudo
Em 2019 Guilherme descobriu que seria pai novamente. Pouco depois, a empresa anunciou uma nova política parental concedendo 6 meses de licença para todos, independente do gênero. Ele iniciou a licença em março de 2020 e, no mesmo mês, todo esse processo ainda foi abarcado pela pandemia, trazendo novas questões.
Aqui vai um pequeno índice do que você vai encontrar nesse relato:
Índice
* * *
"Nunca tinha parado pra pensar em profundidade no que esse tempo maior de licença significa"
Essa jornada de descoberta está sendo fantástica e mesmo faltando pouco mais de dois meses para o fim da licença, é possível destacar algumas fases desse processo: (1ª) anseio e preocupação; (2ª) entrega e dedicação; e (3ª) transformação.
1ª fase: Os anseios e preocupações
Acredito muito na frase “o trabalho enobrece o homem” — e a mulher. Ou seja, o ato de trabalhar é uma condição fundamental para a realização humana que, além da realização financeira, está ligado a conquistas e crescimento.
Faz alguns anos que venho refletindo mais profundamente sobre o que é ter sucesso de fato e, de uma forma geral, este conceito ainda está muito ligado a conquistas profissionais, fazendo com que uma parte de nós abra mão de outras áreas da nossa vida para construção de carreiras brilhantes.
Graças ao movimento feminista, estamos discutindo cada vez mais a ascensão profissional das mulheres, que obviamente não devem abrir mão da maternidade para alcançar o sucesso. Esse é um diálogo que ainda precisa de muita ação e, dentre elas, também precisa trazer para a mesa as questões de masculinidades e da paternidade integral para uma completa revolução.
Não é tão fácil encontrar exemplos de homens que ocupam posições de alta liderança e que genuinamente participam e dividem todas as responsabilidades na criação dos filhos.
Dá pra conciliar ambição na carreira e paternidade integral?
Minha ambição no trabalho sempre foi algo que me estimulou e estava muito ligada às possibilidades de transformar e criar. Depois de ter me tornado pai do Bernardo, há dois anos e meio, esse meu propósito veio se fortalecendo no sentido de querer quebrar estereótipos, contribuindo para novos modelos de sucesso e inspirando pessoas a se libertarem para serem elas mesmas.
No meu caso, gostaria de provar que sucesso não é abrir mão da vida pessoal e muito menos deixar de lado a dedicação real à paternidade.
Além disso, um grande aprendizado que venho tendo com a paternidade é de que não tem como ter controle de tudo, muito menos desse sentimento — que podemos banalizar ao dizer, mas nunca ao sentir — o Amor.
O Bernardo vem me fazendo colocar algumas coisas em uma nova perspectiva, principalmente o meu papel como pai na criação de um filho homem.
O nascimento do Bernardo e a primeira licença
Quando o Bernardo nasceu, em 2018, tirei 20 dias de licença. Tão importante quanto dividir as responsabilidades com a minha esposa, era estar presente nessa fase da vida do bebê.
Claro que aprendemos coisas juntos, mas esse período não foi suficiente para acompanhar e dividir as descobertas: as consultas no pediatra, os momentos de pura conexão como os banhos, as diversas “primeiras vezes” incluindo o primeiro sorriso, dentre vários outros momentos. Não posso negar que me senti bastante culpado por ter perdido vários desses momentos.
Quando voltei ao trabalho depois dos 20 dias, logo a rotina consumiu essa culpa, como acontece com muitos dos outros pais. O foco para seguir buscando aquela carreira brilhante se fez presente e foi como se essas semanas de licença não tivessem existido.
Quais são as minhas referência de sucesso?
Segui buscando grandes exemplos de sucesso nas corporações, mas passei a incluir o seguinte questionamento: do que tiveram de abrir mão para chegar lá?
Já vejo alguns exemplos que ampliam sua preocupação além do trabalho, mas ainda é algo extremamente individualista, considerando preocupações com a saúde e com o corpo. A paternidade muitas vezes vem no discurso como algo coadjuvante, o que inclusive poderia ser visto como sensibilidade ou, na visão de outros homens, “um sinal de fraqueza”, sendo um constante reforço do estereótipo.
Para as mulheres, existe outra dinâmica cruel que as mães enfrentam no mercado de trabalho: o sentimento de culpa por deixarem os filhos ao final da licença; o preconceito nos processos de seleção; o impacto no desenvolvimento de suas carreiras, entre outros.
Como se não bastasse toda a pressão social da mulher perfeita — bem-sucedida, mãe, que cuida da casa e por aí vai — muitas, inclusive, acabam sem vagas no momento do retorno da licença. Mesmo assim, penso que, para elas a transformação pessoal que é estar ao lado dos filhos nesse momento ajudaria a superar os desafios.
Estou passando por essa mistura de sentimentos. Tenho uma carreira que me orgulha muito, mas quero ter a possibilidade de mudar esse padrão do que é ser pai de verdade e do que ter sucesso na vida.
O nascimento do Joaquim e a licença de 6 meses
Desde março, comecei uma jornada de seis meses ao lado da minha família, pelo nascimento do meu segundo filho, Joaquim. A sensação é de uma grande felicidade por ficar mais tempo com eles, acompanhar mais, fazer mais e dividir, de fato, o cuidado.
Junto disso, vem uma sensação de aperto e receio com o trabalho, pois estou em um momento de carreira fantástico, recém-promovido, com uma equipe e desafios que me instigam a ser um profissional melhor. Será que algo vai mudar?
Inevitável não pensar nos possíveis impactos que essa decisão pode gerar. A mesma sensação que, imagino eu, as mulheres devem passar: "será que terei minha posição quando voltar? Será que o desenvolvimento da minha carreira terá algum impacto?"
Fora o trabalho, existe ainda uma forte pressão social. Quando falo sobre a experiência da licença com pessoas diversas (amigos, colegas de trabalho, familiares etc.), muitos perguntam o que vou fazer em casa se “a maior responsabilidade é da mulher. Perguntam se não tenho medo de ser demitido ou até se não devo usar esse “tempo livre” para pensar em outras coisas como estudar ou estruturar alguma nova ideia de um outro trabalho.
Por esses motivos que pensei, por um momento, em abrir mão do benefício, mas logo lembrei da experiência inesquecível que seria para toda a minha família, além do impacto positivo que essa decisão poderia gerar dando um novo exemplo dentro e fora da empresa.
2ª fase: Entrega e Dedicação
Cuidando de um recém-nascido na pandemia
Logo no primeiro mês, a quebra da rotina foi intensificada pelo momento de isolamento que estamos passando. Todos os planos tiveram que ser adaptados assim como aconteceu com todas as outras pessoas no mundo. Foi uma chance de rever nossos conceitos de equilíbrio, cuidado, solidariedade e, principalmente, exercer ainda mais a coletividade.
Com dois filhos e sem toda a ajuda planejada, assumimos diversas outras funções. Já sabia da necessidade e importância desse tempo em casa, principalmente na visão da minha esposa, e foi realmente essencial. Pensamos em como nos dividir com outras responsabilidades, como a comida, entretenimento, atividades e educação do filho mais velho.
Pela idade dos meus filhos (Bernardo - 2 anos e meio e Joaquim – recém-nascido), acho que seria impossível fazer tudo isso se não fosse uma dedicação integral a eles, e me parece impossível também para apenas a mulher ter essa entrega em tempo integral, principalmente nos primeiros meses após o parto.
Com isso, chego a me perguntar: como será que isso está sendo “dividido” nas outras famílias? Muito provavelmente a nova realidade em casa trará novas oportunidades de rever a equidade.
Mesmo com essa nova dinâmica familiar ocupando uma boa parte do meu tempo físico, meu tempo mental ainda foi bastante direcionado para preocupações relacionadas ao trabalho: reflexões sobre os impactos dessa crise nos negócios, nos novos desenhos de planos estratégicos, nas inúmeras reuniões, nos nossos clientes e parceiros e no quanto eu gostaria de ajudar.
Imaginei que o começo seria complicado, pela abstinência do trabalho e a adaptação da dedicação integral, mas confesso que foi mais difícil que imaginava por conta do cenário de pandemia.
Com o passar dos meses, vieram outras coisas que acabaram diminuindo essa preocupação. Tudo aquilo que falei que perdi no nascimento do primeiro filho eu consegui ver e acompanhar dessa vez. Joaquim fez 3 e depois 4 meses. Começou a interagir mais, fomos em todas as consultas no pediatra e acompanhamos bem de perto o seu desenvolvimento.
O Bernardo, precisou muito de atenção em todo nesse momento e os ciúmes do irmão vieram forte. A minha presença foi fundamental para administrar essa questão (banho, refeições, brincadeiras, aprendemos a andar de bicicleta, tiramos a fralda e por aí vai). Mas a cada dia que passa ele entende melhor como é bom para ele também a família crescer.
E aqui vai uma aspa da minha esposa sobre a diferença entre as duas licenças: “como consegui da outra vez? Seria impossível sem você”. Isso porque eu não fiz tudo certo (ou do jeito que ela esperava) mas foi dividido e realizado.
3ª fase: Transformação
Nesse momento que percebi o que é de verdade a prioridade da vida. Estar juntos deles integralmente fez eu me sentir bem-sucedido.
Não eu, ou meu filho, ou minha mulher, mas todos nós juntos.
Talvez ter sucesso é ter liberdade para ser um só, sem dividir o pessoal do profissional e, definitivamente, sem ser perfeito o tempo todo. Escancarar nossas fragilidades nos faz crescer.
A “transformação” ainda está começando e tem outros aprendizados que virão, tenho certeza. Muita coisa vai mudar depois dessa experiência:
- As pequenas felicidades: Como é importante esse momento inicial da vida dos pequenos para formar um vínculo real e profundo com os pais. As menores coisas podem trazer alegrias inesquecíveis;
- A divisão das responsabilidades: Dividir responsabilidades não é apenas executar algo no dia-a-dia, todos dias. Tem uma parte de organização mental, principalmente com a agenda dos filhos, que hoje consigo enxergar parcialmente, mas vou chegar lá. Todo mundo tem que ter o mesmo papel em casa (uma hora eu faço, outra hora minha esposa faz, mas é o mesmo papel);
- Os aprendizados da licença: Tenho que reconhecer uma habilidade fantástica da Renata em saber quando uma função começa e quando ela acaba, para que possa se dedicar de verdade ao que está fazendo naquele momento (se é o trabalho é o trabalho, se é a família é a família, não dá pra fazer um pensando no outro);
- A dinâmica do casal: Minha relação com minha mulher está mudando muito. Ainda não faço tudo aquilo que ela gostaria que eu fizesse, mas falamos muito sobre essa parceria que estamos construindo, e acho que o primeiro passo é a reflexão e reconhecer que algo pode ser melhor;
- Os planos futuros da família: Não sei se teremos mais filhos, mas pensar nisso antes dessa experiência juntos era inconcebível. Agora é possível falar do assunto. E ver a interação e até um início de admiração entre os dois fez a gente querer ter um monte desses depois;
- O desenvolvimento da masculinidade: Não sou um pai e nem um marido perfeito, mas acho que evolui como homem e como ser humano no sentido de entender mais meu papel no mundo e na vida da minha família. O exemplo de parceria talvez seja um dos melhores exemplos na criação de 2 novos homens para o mundo;
Precisamos nos cobrar mais para ser homens completos, principalmente na participação familiar de forma integral e genuína, assim como fazem as mulheres. Seria mais justo. Talvez, todo mundo se cobrando mais a gente não precisa se cobrar tanto assim."
* * *
Situação da Licença paternidade/parental
No Brasil
A licença parental a qual o Guilherme pode desfrutar ainda é exceção no Brasil e na maioria dos países do mundo.
Nacionalmente, os homens tem direito a 5 dias de licença quando seu filho nasce e apenas 12% das empresas adotam a licença paternidade estendida, a qual corresponde a 20 dias.
Marco Antonio, que participou no nosso Caixa-Preta, não usufruiu de uma licença parentalidade dada pela empresa com direitos e pagamentos, mas parou sua carreira por 1 ano para cuidar do filho.
"Não é uma questão de me anular. É uma questão de fazer o que tem que se fazer, dentro de um acordo e de uma nova experiência"
No mundo:
Ainda neste ano a Finlândia equiparou as licenças dando 6 meses para cada trabalhador independente do gênero
A Suécia foi o primeiro país do mundo a conceder a licença é parental, ou seja, garante 480 dias a serem distribuídos entre o casal conforme o combinado de cada um, sendo 90 exclusivos para a mãe.
Ainda há um longo percurso para alcançarmos a equidade quando o assunto cuidar de nossas crianças. Por hora, são poucos os pais que tem a oportunidade de viver uma licença paternidade como esta, mas queremos seguir incentivando o cuidado integral por parte do pais e que mais empresas deem condições para que ele aconteça.
Conta pra gente: Você tem filhos? Quantos dias de licença pode tirar? Gostaria de viver/ter vivido uma licença de 6 meses?
Nenhum comentário:
Postar um comentário