ONGs relatam que denúncias e pedidos de ajuda por parte de mulheres aumentaram 70% no país. Com abrigos em quarentena devido ao coronavírus, hotel de Moscou passa a abrigar mulheres vítimas de violência doméstica.
- Deutsche Welle
- 09.06.2020
- Emily Sherwin
Hotel Skazka de Moscou. Sem hóspedes, local passou a abrigar vítimas de violência doméstica
Uma escadaria de madeira azulada leva ao Hotel Skazka ‒ que se traduz por "hotel de conto de fadas". De fato, a dura realidade do tráfego moscovita ladeado por cinzentos blocos de apartamentos parece estar distante dali. O hotel se encontra escondido no meio do mercado Izmailovsky. Antes da pandemia de coronavírus, os turistas vinham ali comprar antiguidades soviéticas e reluzentes bonecas matrioscas.
Dentro do Hotel Skazka, guirlandas de luzes brilham no teto, canários cantam sobre a música ambiente e Íris, a gata, se esconde entre móveis cuidadosamente descombinados. Para Ineta Riekstynya, o hotel passou a ser um pouco como um lar. Ela vive ali há cerca de um mês ‒ desde que o marido bateu nela durante o confinamento. "Não foi a primeira vez, mesmo sem a quarentena. Mas quando você ama uma pessoa, você a perdoa", disse à DW.
Dentro do Hotel Skazka, guirlandas de luzes brilham no teto, canários cantam sobre a música ambiente e Íris, a gata, se esconde entre móveis cuidadosamente descombinados. Para Ineta Riekstynya, o hotel passou a ser um pouco como um lar. Ela vive ali há cerca de um mês ‒ desde que o marido bateu nela durante o confinamento. "Não foi a primeira vez, mesmo sem a quarentena. Mas quando você ama uma pessoa, você a perdoa", disse à DW.
"Você diz a si mesma: 'Dessa vez, ele enlouqueceu. Coisas assim acontecem.' Na segunda vez que isso acontece, você ainda acha que ele vai mudar. Mas na quarta ou na quinta, torna-se impossível suportar. Dá um clique em sua cabeça. Desta vez, isso me fez levantar e sair."
A música profissional diz que estar trancada em quarentena, sem trabalho, piorou definitivamente a situação em casa. Mas a pandemia também tornou as coisas mais difíceis quando ela saiu de lá. Os amigos estavam preocupados com o fato de acolhê-la significar violar regras de isolamento social ou arriscar infecções. E os abrigos para mulheres tiveram que recusá-la, porque eles também tiveram que entrar em confinamento e só podem aceitar mulheres que já estão em quarentena há 14 dias ou que façam um teste para provar que não têm covid-19.
"Acabei na rua com nada além de alguns pertences. Não sabia para onde ir. Estava sentada num banco do lado de fora e pensando que em breve ia escurecer", diz Ineta. Felizmente, o centro de acolhimento para mulheres Kitezh retornou a ligação e a instalou no Hotel Skazka.
A dona do hotel, Valentina Konstantinova, trabalha junto ao Kitezh desde o início de abril, acolhendo vítimas de violência doméstica de graça e sem um teste para o coronavírus. Valentina entrou em contato com as organizações de mulheres quase imediatamente após o início dos bloqueios na Rússia, no final de março.
"Se o hotel está vazio, por que não dar quartos às pessoas que precisam deles?", indaga Valentina. "Tenho muitas amigas ou conhecidas que foram vítimas de violência doméstica.
Eu nem sempre pude apoiá-las, mas agora posso ajudar outra pessoa." O Hotel Skazka também recebeu refugiados e médicos durante a pandemia. O hotel se tornou uma graça divina para grupos de mulheres.
Soando o alarme
As ONGs que trabalham para ajudar as vítimas de violência doméstica na Rússia vêm relatando um aumento desses casos desde o início do confinamento. De acordo com o Centro de Prevenção da Violência (Anna), as chamadas telefônicas para as linhas de ajuda a mulheres vítimas de violência aumentaram por volta de 74% em maio, em comparação a fevereiro.
No início de maio, a comissária russa de direitos humanos Tatyana Moskalkova elevou ainda mais o número. Ela disse que os casos de violência doméstica na Rússia mais que dobraram durante o confinamento. Sua declaração contradiz relatos anteriores da polícia russa de que os crimes domésticos caíram 13%.
Por todo o mundo, diversos países relataram um aumento nos casos de violência doméstica, já que as frustrações decorrentes do confinamento e as consequências econômicas da pandemia pioraram as tensões nos lares. Mas na Rússia, a violência doméstica é descriminalizada desde 2017.
Em vez de ofensa criminal, ela pode ser considerada agora uma ofensa administrativa. No ano passado, um grupo de legisladores russos renovou a pressão por uma lei de violência doméstica, mas sua iniciativa provocou controvérsia e protestos de grupos conservadores que argumentaram que a vida em família deveria ser sacrossanta ‒ e isenta de ingerência do governo.
Ferramentas para mudança
Maria Tvardovskaya, da organização de direitos humanos Nasilu.net ("Não à violência"), argumenta que a legislação torna as vítimas de violência doméstica na Rússia muito mais vulneráveis do que em outros países, inclusive durante o confinamento. "[Em outros países] existem ordens restritivas e leis rigorosas, existem órgãos policiais treinados para lidar com essas situações. Infelizmente, a Rússia não tem nada disso. É por isso que mais casos aqui terminam em assassinato e mais mulheres permanecem nesses relacionamentos porque elas não têm os meios para sair deles."
À medida que a Rússia relaxa lentamente o confinamento, defensores dos direitos das mulheres, como Tvardovskaya, dizem não achar que o número de mulheres precisando de ajuda irá diminuir. "Vamos lidar com as consequências dessa quarentena por um longo tempo ‒ especialmente nossos advogados e psicólogos. As pessoas vão chegar até eles com histórias horríveis, traumas enormes e graves tragédias."
Alyona Sadikova, diretora do centro de apoio Kitezh, prevê que mais mulheres continuarão deixando para trás lares agressivos. Ela diz que as chamadas telefônicas para o Kitezh aumentaram 15% durante os estágios iniciais do confinamento na Rússia, mas nas últimas semanas esse número mais que dobrou. Agora, ela teme que a "recessão econômica" no país mantenha altas as tensões nos lares, mesmo após o fim do bloqueio,fazendo as vítimas de violência doméstica perceberem que não podem simplesmente esperar o fim dos tempos difíceis.
Respirando tranquilo Com os recursos já esgotados e um carro quebrado, o Kitzeh tem problemas logísticos adicionais, assim, Alyona Sadikova se diz agradecida por poder procurar Valentina Konstantinova para alocar algumas mulheres em seu hotel, mesmo que seja apenas uma solução provisória.
A proprietária do hotel afirma estar determinada a manter alguns de seus quartos disponíveis para vítimas de violência doméstica, mesmo após o fim do confinamento em Moscou. Valentina diz que ajudar as pessoas elevou o ânimo e até a deixou "disposta a lutar" por seu hotel, pois a pandemia mantém os turistas afastados. Apesar de estar preocupada com o próprio negócio, ela acha que os hotéis não devem ver o que ela está fazendo como "um enorme sacrifício para a sociedade", acrescentando: "Não custa quase nada. Basicamente, é apenas o custo de limpar os lençóis."
Atualmente, Ineta Riekstynya chama sua estada no Hotel Skazka de "pura felicidade". Após o confinamento, ela diz querer construir uma nova vida e reiniciar seu trabalho como cantora profissional. Ela afirma que, durante suas longas caminhadas nos arredores do hotel, ela continua cantando, deixando sua voz subir acima das barracas vazias do mercado
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